☯ Olá, Guardiões de Eldarya!
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.。.:*☽* FILHAS DA LUA *☾*:.。.
Por Rayvena / Juno
.。.:*☽*Sinopse*☾*:.。.
Todo povo tem seus contos de fadas. Histórias que transmitem lições, geração após geração. Algumas permanecem vivas, outras são esquecidas com o passar do tempo. Sussurros que o tempo leva. Até mesmo os faeries. E alguns eles preferiram esquecer.
.。.:*☽*Lista de Personagens*☾*:.。.
Mia, Elise, Claude, Nevra, Leiftan, Lance.
.。.:*☽*Epílogo*☾*:.。.
Nós venceremos a guerra. Uma vitória amarga que custará a existência da nossa raça. Nenhum de nós sobreviverá a essa noite. Não haverá despedidas, abraços, adeus. Nossas almas nunca alcançarão a paz, nunca poderemos rever os que deixamos. Encaramos a escuridão contida diante de nós e iniciamos a magia que nos prenderá eternamente. Um preço pequeno a pagar por toda a vida do universo. Somos a prova de que há crimes para os quais a redenção, custa a eternidade.
( ´ ∀ `)ノ~~☆’.・.・:★’.・.・:☆ Aviso de Tradução Automática das Fadas
A fadinha da tradução usou sua magia aqui e, deixou tudo em português pois não faria diferença na nossa história esses diálogos em francês ou qualquer outro idioma. ♡( ◡‿◡ )
(✿◠‿◠)ノ~~☆’.・.・:★’.・.・:☆Aviso de Revisão para Menores
A Fadinha Revisora de Conteúdo para menores usou sua magia aqui e removeu palavrões e conteúdos impróprios. Ela fará o mesmo em toda a história. Se quiser ler o conteúdo sem a revisão da fadinha, vá no Wattpad da Autora.
.。.:*☽*1-Sete Anos Atrás*☾*:.。.
Spoiler: The Origins - Ep30 "Por Eldarya"
PDV Mia.
- Mia!
Ouço meu nome, mas meu corpo não responde mais aos meus comandos. A dor me preenche como uma onda de choque e sinto que estou perdendo os sentidos. Não sei dizer o que ou onde dói mais. Em algum lugar da minha mente eu ainda tento entender o que aconteceu, talvez eu tenha sido atropelada por um ônibus ou um caminhão desgovernado, mas eu não lembro de estar na rua... Meu último pensamento é que eu deveria ver minha vida passar diante dos meus olhos, antes da escuridão levar minha alma.
Em algum lugar...
Primeiro sinto meus dedos, mas não consigo movê-los. Então percebo o tecido macio sob meu corpo e o cheiro de mato fresco e oceano. Tento saber se morri, mas mortos sentem o corpo assim? Como um peso morto? Me sinto presa em meu corpo, mas meu cérebro está tão dopado que não sinto angústia. Tento mexer qualquer parte do meu corpo mas apenas meus olhos dentro de pálpebras fechadas respondem. Lentamente, num longo processo de dormir e despertar contínuo, permite que minha consciência crie raízes em meu corpo novamente e, aos poucos, consigo mover levemente meus dedos. Gasto um longo tempo apreciando a maciez desses lençóis. Queria sorrir mas não consigo.
Em algum momento percebo que a secura em minha boca e garganta é dolorosa. Mas de tempos em tempos alguém umedecia meus lábios gentilmente e, de alguma maneira, umedece minha boca e garganta, aliviando a secura. Eu choraria de felicidade se conseguisse, e algum momento meus canais lacrimais voltam a funcionar. E lágrimas correm pelo meu rosto quando a pessoa gentil me ajuda. Sons se reproduzem ao meu redor, mas meus ouvidos não parecem saber ouvir mais.
Acordo e durmo ainda muitas vezes até que eu consiga abrir os olhos, cansada, apenas para fechar rapidamente, assustada com a quantidade de luz que me atinge. E me dou conta que meu corpo inteiro dói demais. Alguém cobre meus olhos com um tecido e logo adormeço novamente. Quando acordo e abro os olhos, descubro uma iluminação bem mais suave, e uma mulher albina, toda vestida de branco, sorrindo para mim.
- Você acordou!
Com esforço, descolo meus lábios ressecados, mas não consigo falar.
- Calma. Vai levar um tempo para você se acostumar.
Ela primeiro umedece meus lábios, me fazendo sorrir de gratidão. E então me oferece água em um canudinho. Ela não parece ser uma enfermeira, só que estou cansada e dolorida demais para pensar. Eu estou morta? Mortos sentem tanta dor? Durmo e acordo mais vezes ainda, e minha memória parece me enganar, pois me surpreendo com ela algumas vezes, até perceber que já tinha visto ela algumas vezes. A cada vez consigo ficar acordada alguns segundos a mais e me sinto mais forte. Em uma das vezes, delirante, vejo um dragão etéreo conversando com a mulher albina, perguntando como eu estava. Em outros momentos, um homem moreno, enorme, de cabelos platinados, estava sentado do meu lado, um olhar gentil e preocupado.
Então eu vi todos reunidos com uma garotinha pequena, cabelos longos e coloridos como um arco íris de tons pastéis, vestido branco longo, descalça, um pequeno par de chifres coloridos na cabeça e um longo rabo roxinho. Ela tocou meu rosto gentil e sorriu para mim.
- Você vai ficar boa logo. Mas tudo será diferente para você a partir de agora. Nada poderá continuar como era. O que vai se tornar? Só o tempo dirá.
Não sei quanto tempo fiquei desmaiando e acordando, até conseguir pronunciar palavras e ficar acordada por tempo suficiente para escutar as respostas ou ao menos lembrar do que falei ou o que foi respondido. Eu estava dentro de uma tenda, ou o que me parecia uma tenda. E a mulher albina, tão branca quanto uma folha de papel, me olhava gentil e calma.
Depois de beber água tentei me lembrar do que eu sabia. E nada me vinha à cabeça. Eu me lembrava de conversar com pessoas. E de ter visto um dragão. Mas não me lembrava o que eu tinha falado, nem o que tinha sido respondido. Encarei os olhos violetas da mulher e perguntei com uma voz que saiu rouca, como um antigo disco LP arranhado.
- Onde eu estou?
- Em Memória. – respondeu a albina, com um sorriso.
Fechei os olhos tentando me lembrar de alguma cidade ou ponto turístico com esse nome. Mas nada me ocorreu. Contudo, ironicamente, minha memória não estava no seu auge, e eu poderia muito bem ter me esquecido.
- Onde fica?
- Num lugar seguro.
Um lugar seguro? O que isso significava? Meu cérebro lento e meu corpo dolorido não ajudavam em nada.
- Por que estou aqui?
- Para ficar segura.
- Segura? Por que preciso ficar segura?
Ela não respondeu e me olhou com tristeza. Então tocou meu rosto com carinho e sorriu, como se eu fosse uma criança a quem não se quer contar uma notícia ruim.
- Nós falaremos disso quando você ficar mais forte.
- E quando será isso?
- Em breve. Não tenha pressa.
Tentei pensar se eu precisava fazer algo, mas o cansaço chegou com força. Ao menos não me sentia dolorida o tempo todo. Curiosamente, quando despertei, me lembrei do que havia perguntado, e das respostas. Sorri satisfeita com meu avanço. Encarei aquela curiosa mulher de branco, e entre um gole e outro, matei outra sede que começava a surgir.
- Por que eu estou tão cansada?
- Você sofreu um choque. Nós estamos trabalhando para salvar sua vida.
- O que aconteceu?
- Você está em coma, em um hospital…
Confusa, falei o óbvio para aquela mulher que parecia querer complicar tudo.
- Em coma? Mas eu estou falando com você! Eu...
Ela ficou em silêncio.
- Você... você existe, não?
- Sim, eu existo. Mas não do jeito que você espera. Seu corpo está em um hospital, na Terra, em coma. Sua alma está aqui, em Memória. Nós estamos tentando te manter viva.
- Como?
Tentei me manter acordada enquanto ela respondia. Mas meus olhos se fecharam contra minha vontade. Eu precisava me lembrar. Como eu podia estar em coma e acordada? Aquilo era um delírio? Mas Morfeu é implacável e me levou para seus domínios sem hesitar.
Ao acordar, observei o ambiente ao meu redor. Não parecia um hospício. Nem um hospital. Era uma tenda, clara, com minha cama no centro, uma cadeira confortável ao lado e uma mesa de cabeceira com água. Não tinha nenhum aparelho, nada que lembrasse que eu estava doente. Olhei a mulher me sentindo confusa, e esperei uma explicação.
- Eu sei que parece confuso, mas logo tudo será esclarecido. Sua prioridade deve ser se recuperar. Nós estamos tendo sucesso e seu corpo está estável na Terra. Valkyon estabilizou ele. O plano está funcionando. Eu sei que você não acredita, mas logo você se sentirá mais forte. Apenas descanse e em breve tudo ficará mais claro.
Assenti em descrença total. Minha mente estava mais clara. Eu ainda me sentia em um estado profundo de confusão, mas ela se desfazia com o passar do tempo, e eu voltava a ter a mente ágil que sempre tive. Realmente me senti mais forte com o passar dos dias e busquei observar os que cuidavam de mim.
O tal do Valkyon vinha me ver regularmente. Uma personalidade calma, serena, firme. Ele não era de muitas palavras. Se sentava ao meu lado, me oferecia água e simplesmente ficava quieto. Como uma pessoa de personalidade também silenciosa, me sentia extremamente confortável ao lado dele, e da segurança que ele me oferecia. O conforto da sua presença me fazia dormir ainda mais, e me acalmava.
Observando bem, ele é extremamente bonito de uma forma exótica. Eu nunca vi um homem como ele. De cabelo platinado, comprido até os ombros, olhos dourados, muito alto, musculoso, e surpreendentemente bronzeado. A pele dele tinha um tom dourado incrível como se ele tomasse sol na praia diariamente. Ele usava uma roupa igualmente exótica, uma calça cinza, coberta parcialmente com peças de uma armadura, camiseta branca e um colete de pele, e peças de armadura nos ombros e braços, protegendo o corpo. E dava para ver muitas cicatrizes, me revelando que ele tinha um passado, no mínimo, conflituoso, bem diferente da calma e tranquilidade que sua expressão transmitia.
A mulher albina era extremamente pálida, os cabelos brancos e longos, os olhos violetas de tão claros. Ela e seu longo vestido branco tinham quase a mesma tonalidade, parecia até que ela usava maquiagem para ficar tão clara, pois nem o rosado natural da pele ela tinha. E isso a deixava etérea, como se um raio delicado de luar se personificasse em uma pessoa, gentil mas não humana. Era surreal.
Mais dias passaram, e quando me senti forte o suficiente, Valkyon me levava para para pequenas caminhadas, me ajudando a ganhar força nas pernas. Eu ficava deitada a céu aberto, mas nunca chovia ali, a vegetação era exuberante e completamente diferente de tudo que já vi na vida. Estava pronta para perguntar que plantas eram aquelas quando dei de cara com o dragão novamente.
- Vejo que você está bem melhor, minha criança!
Eu encarei aquele ser gigantesco sem conseguir pronunciar palavras que fizessem sentido, incerta entre o diagnóstico da loucura e da alucinação. Só não corri pois dependia do apoio do Valkyon para me manter de pé de forma estável e, naquele momento, minhas pernas eram uma gelatina e ele estava evitando que eu desmoronasse no chão. Era um dragão de verdade na minha frente. Olhei em volta e nem a mulher albina, nem o Valkyon pareciam surpresos.
- Esse é Fáfnir. – Valkyon me explicou, como se fosse normal estar frente a frente de um dragão. – Não precisa ter medo.
- Ele nos ajudou a salvá-la. – complementou a mulher albina.
- O-olá. – Tentei soar natural, mas minha voz saiu aguda irritando até meus ouvidos.
Vendo que eu estava a segundos de perder completamente a força das pernas, Valkyon me pegou no colo e me levou para um banco, onde me sentou com gentileza e depois se sentou do meu lado. Minha mente girava em formas de colocar Valkyon na minha frente caso o dragão me atacasse. Dragões comiam gente? Pensei na minha covardia, mas me consolei pensando que o Valkyon era bem maior que eu.
- Como você está, criança? – Vi a boca enorme do dragão se mover e fiquei pasma de entender o que ele falava.
- Bem... é... acho que bem.
- Você vai levar um longo tempo para realmente se reequilibrar. A solução não foi fácil e não agirá rapidamente. Serão anos até que todo o processo se complete, e nós não temos certeza de qual será o resultado.
- Certo. – eu não tinha a mínima ideia do que ele estava falando. Eu me sentia enfeitiçada vendo aquele ser gigantesco parado na minha frente, conversando como se fosse algo banal. O que ele falava? Não importava. Era um dragão! E a adrenalina estava começando a fazer efeito, pois uma agitação típica estava tomando meu corpo.
- Nós teremos tempo para explicar o que você precisa saber e o que precisa aprender.
- Sei. – um dragão estava falando comigo. Só eu fiquei chocada com esse fato? Olhei em volta e Valkyon e a albina estavam completamente indiferentes. – Você é mesmo um dragão? – a pergunta saiu rápido dos meus lábios.
- Sim. Valkyon também é.
Olhei para o Valkyon desconfiada. Ele não parecia em nada com um dragão. Eu estava do lado dele e ele era bem humano para mim. Nada de cara de dragão, nem rabo, nem asas, nem escamas... Estava listando mentalmente tudo que ele não tinha de um dragão, quando vi ele sorrindo divertido.
- Mas você também parece humana e não é. Suas habilidades provam que você não é.
Dei um pulo no banco ao lado do Valkyon. Ele lia mentes?
- No plano astral não há como esconder o que se pensa. Aqui, os pensamentos são projetados da mesma forma como a fala no plano físico.
Pensei um pouco no que ele estava falando, levando um tempo para ser atingida pelo significado das suas palavras.
- Tudo que eu penso vocês ouvem?
- Sim.
Nesse instante morri de vergonha lembrando agora há pouco em que eu estava pensando em como empurrar o Valkyon na minha frente se o Fáfnir me atacasse.
- Não se preocupe, seus pensamentos foram completamente normais para uma situação tão... singular. – Valkyon disse sorrindo, e confirmando que meus pensamentos eram sim um livro aberto para todos.
- Nós estamos acostumados, mas você está viva, e entre os vivos, o pensamento não é o meio de comunicação mais usual. – a albina me explicou.
- Isso é tão confuso... – sussurrei morta de vergonha.
- Apenas saiba que seu corpo foi estabilizado na Terra. Você ainda está em coma, mas não corre mais risco de vida. Mas sua alma ainda não pode sair de Memória, para que você não seja desligada dele.
- Desligada?
- Para que você não morra... – Valkyon me explicou, com um olhar gentil e algo, triste?
- Até que todos os seus corpos estejam devidamente estabilizados e você possa sair de Memória sem risco de morte, você ficará conosco, se reequilibrando. Nesse meio tempo, Valkyon lhe fará companhia e a treinará.
Eu estava quase dormindo de cansaço no ombro do Valkyon nesse momento. Não me ocorreu perguntar o motivo de tanto esforço para me salvarem, nem para que me treinariam, nem um monte de coisas que eu gostaria muito de ter perguntado e anotado em algum lugar da minha mente no qual eu me lembrasse posteriormente.
Eu despertei um ano e meio depois de entrar em coma subitamente, com quase nenhuma memória de quando estive em coma. Algo comum de acordo com os médicos, já que pessoas em coma passam por experiências diferentes. Nenhum médico descobriu o motivo do meu coma, de acordo com eles eu tive um mal súbito, não sofri nenhum acidente, não fiquei doente, não fui envenenada. Absolutamente nada. E quando despertei, estava mais saudável que antes. Não tinha escaras, deficiências nutricionais nem meu corpo definhou nesse meio tempo. Um verdadeiro milagre.
.。.:*☽*2 - Chicago*☾*:.。.
PDV Elise - Dias atuais.
Eu posso sentir as emoções das pessoas. Essa é uma maldição que eu carrego desde pequena. Me mantém isolada das pessoas normais. Meus pais tentaram conter como puderam, mas é mais forte do que eles. Mais forte do que eu. Nunca tive chance nenhuma contra isso. Tentei levar a vida mais normal possível, ser o mais comum que pude. Se o rio é a normalidade, eu sou um salmão apanhando dos ursos. Isso ficou ruim... Vou me corrigir. Eu tentei aparentar levar a vida mais normal e comum possível, mas eu sou o salmão que o urso devorou.
Veja bem, essa é minha primeira vez em Chicago. Uma das maiores cidades dos EUA e do mundo. Estou aqui a negócios, hospedada em um antigo prédio de escritórios cujos trinta andares superiores foram transformados recentemente em hotel. Um luxo. Recém-inaugurado, ele ainda não tem lotação completa. Na realidade, pelo que eu vi, está bem vazio. Ruim para o hotel, perfeito para mim. Ao mesmo tempo vazio o suficiente para me dar paz de espírito e descanso emocional.
Eu sou brasileira e meu voo de São Paulo para Chicago me pareceu interminável. Antigamente eu adorava voar. Eram momentos de calmaria, onde podia não fazer nada. Apenas colocar meus fones de ouvido, ligar meus ruídos brancos e descansar. Faz sete anos que tudo mudou e qualquer atividade que envolva pessoas ao meu redor, se tornou ainda mais cansativa. E há alguns dias, um novo upgrade tornou insuportável. E é por isso que, ao invés de sair e dar uma volta em Chicago, eu corri para o hotel, apaguei as luzes, fechei as cortinas, tomei a dose mais forte do meu remédio para enxaqueca e náusea, e estou agora tentando relaxar e não vomitar água com medicamento no chão do banheiro.
Sei que mergulhar na banheira com água quente me ajudará a relaxar. Então preparo a banheira com sais de lavanda, ligo a torneira e me sento com os pés dentro da banheira, esperando ela encher. Apoio a cabeça nas mãos e me concentro no som da água. Só de escutar a água enchendo a banheira já sinto a tensão no pescoço e nos ombros reduzindo. Mergulho na água quente e perfumada com um suspiro de prazer. Enrolo uma toalha e apoio minha cabeça.
Deixo meus pensamentos livres enquanto descanso. Eu não sei desde quando tenho essas habilidades. Meus pais perceberam na minha infância que eu era capaz de sentir sentimentos alheios. Bom, eles perceberam primeiro que eu era extremamente sensível a algumas pessoas. Mas até aí, tudo bem, crianças são sensíveis, certo? Mas entre meus quatro a cinco anos, quando comecei a falar o que eles estavam sentindo, eles perceberam que era mais preocupante que apenas uma sensibilidade ordinária.
Para mim, uma pessoa com emoções fortes sempre foi como estar ao lado de alguém usando um perfume forte e adocicado, impossível não sentir. E dependendo da intensidade, me faziam ficar enjoada da mesma maneira. Mas meus pais, preocupados com as consequências disso, fizeram tudo que podiam para conter algo que eu nunca controlei. Ao menos não até minha adolescência, quando descobri, acidentalmente, que conseguia forçar um pouco as coisas. Compreendi que,, se me concentrasse em alguém, mesmo distante, conseguiria saber o que a pessoa sentia.
Aos 16 descobri ter telecinesia. Nada no estilo X-men, o que teria sido útil em algumas ocasiões. Eu apenas era capaz de levantar folhas, flores, pequenos e leves objetos. Nunca contei aos meus pais sobre isso. Nem para ninguém. Eu já era estranha demais. E não queria ser Carrie: A Estranha. Ainda assim, a pressão dos meus pais ficou bem mais forte, pois eles sabiam a tentação que essa época oferece. Eles nunca me deixaram dormir na casa de amigos, nem visitar ninguém. Era de casa para escola e de lá para casa, com horários rígidos. E se eu me descontrolasse?
Estava cursando administração quando meus pais morreram em um acidente de carro. Não foi fácil. Tive depressão. Não queria ver nem ouvir ninguém. Sentir ninguém. Só queria ficar sozinha, fechada, no meu mundo. Sempre fui reservada, com notas exemplares e, depois, minhas notas caíram drasticamente. Alguns professores preocupados tentaram interviram, me indicaram uma psicóloga da universidade, acompanhamento pedagógico. Mas nada funcionou. Eu não tenho família materna ou paterna, pois meus pais se conheceram no orfanato, então literalmente fiquei sozinha.
O que me tirou do buraco foi trabalhar na no negócio do meu pai, uma oficina de conserto de joias. Apática em casa, comecei a terminar os pedidos que estavam ali, parados. Coisas que eu sabia fazer por ter crescido vendo ele fazer e por ele ter me ensinado seu ofício de ourives. O tempo passou, novas demandas chegavam, e quando percebi, eu havia assumido o negócio da minha família. Trabalhar me ajudou a superar o luto. Mas ao contrário do meu pai, comecei a fazer minhas próprias jóias nas horas vagas. Peças que as clientes viam e ficavam interessadas, comprando o que eu estava usando, e depois fazendo encomendas. Logo entendi que tinha talento e comecei a estudar e me aprofundar no ramo de designer de jóias.
Sete anos atrás, quando eu estava planejando a expansão dos negócios e prestes a abrir minha primeira joalheria, de uma hora para outra eu comecei a sentir naturalmente o que a maioria das pessoas ao meu redor sentiam. Bastava que se aproximasse de mim e eu sentia. Mesmo quem estava tranquilo e calmo. Curiosamente, uma ou outra pessoa não era assim, mas a maioria se tornou um livro aberto. É confuso sentir emoções assim. Você não sabe direito o que é seu, o que é do outro. Foi um caos, mas a duras penas aprendi a me isolar e a lidar com a situação. Descobri a identificar as mudanças bruscas de emoções, as percepções estrangeiras, que não me pertenciam.
A telecinesia também ficou mais forte, me permitindo mover objetos mais pesados como cadernos, livros e garrafas. Foi extremamente difícil conciliar essas mudanças com uma fase tão intensa, mas sempre fui igualmente boa em esconder embaixo do tapete meus sentimentos e emoções. E pela primeira vez, me beneficiei dessa habilidade. Minha habilidade me ajuda a negociar com fornecedores, com parceiros comerciais, a contratar pessoas, a atender clientes.
Cinco dias atrás, minhas habilidades se fortaleceram novamente, me deixando completamente desorientada. Por sorte estava sozinha em meu apartamento. Foi como se as portas do inferno tivessem sido abertas. Os sentimentos dos meus vizinhos chegaram todos juntos, sem que eu conseguisse entender, como se uma festa barulhenta tivesse começado naquele instante. Pensei em cancelar essa viagem, mas não vou me deixar vencer. Esse negócio é importante demais para ser afetado por isso. Eu já vivi isso antes e sobrevivi. Posso fazer isso novamente.
- Hum... a água está ficando fria... – falei comigo mesma.
Abri um olho e encarei a água, decidi entre esvaziar a banheira e encher novamente, ou ir me deitar na cama e dormir. Indecisa entre as opções, senti uma sensação estranha no estômago, uma espécie de tremor. Sem nunca ter sentido algo similar antes, não tive o bom senso de sair da banheira. Rapidamente me senti dentro de um liquidificador. A água da banheira se agitava e meu corpo sacudia como se eu fosse uma boneca. Minha cabeça afundou sem que eu conseguisse fazer nada, me afogando.
Finalmente consegui tirar a cabeça para fora d’água, e me arrastar para fora da banheira. Levei alguns minutos para parar de tossir e voltar a respirar normalmente. Só então comecei a pensar no que tinha acontecido. Poderia ter sido um terremoto? Estendi a mão e agarrei a toalha, me enrolei e fui para o quarto. Me dirigi para o espelho, largando a toalha no chão e inspecionei a imagem refletida buscando ferimentos e marcas em meu corpo, preocupada, mas parecia que estava tudo bem. Me apalpei procurando pontos doloridos e não localizei nada que me chamasse atenção. Me enrolei novamente na toalha e examinei o quarto buscando sinais de danos estruturais. Nada. Tirando algumas coisas que caíram, parecia estar tudo normal. Fui até uma das janelas e abri as cortinas, esperando ver como estava a cidade lá fora, mas ao invés da paisagem urbana de Chicago, estava olhando para um céu estrelado e picos nevados?
.。.:*☽*3 - Que Lugar é esse?*☾*:.。.
PDV Elise.
Me aproximei da janela fechada devagar, pé ante pé, sentindo os pelos do meu corpo se eriçarem. Encarei a bela paisagem nevada silenciosamente, num misto de admiração e apreensão. Eu deveria estar olhando Chicago, com seus prédios altos, luzes brilhantes, incapaz de ver toda a extensão do céu noturno devido à poluição visual urbana. Mas vejo árvores cobertas de neve em uma encosta íngreme e visivelmente perigosa de um lado, e um belo oceano a perder de vista do outro lado, iluminado por uma aurora boreal de cair o queixo. E picos nevados a perder de vista a minha frente. Mesmo à noite eu reconheceria a beleza de um cenário assim.
- Eu enlouqueci de vez? - Me perguntei fechando os olhos e então abrindo novamente algumas vezes, para confirmar o que estava vendo.
Próxima à janela olhei para baixo e nada mudou. Não era um outdoor hiper-realista, nem algum tipo de realidade virtual surreal projetada na frente da minha janela. Eu não parecia estar em nenhum tipo de experiência tecnológica inusitada. Ou aquele era o maior salto tecnológico de que eu já ouvira falar na vida. Eu realmente estava vendo... aquilo. Toquei a janela e senti o frio se transferir do vidro para minha pele, o que me fez recolher rapidamente a mão por instinto. Toquei meu cabelo e ele estava encharcado, o que não era bom no frio. Olhei de novo pela janela e confirmei uma última vez que estava vendo neve. No início do outono. E nada de Chicago. A aurora boreal atraiu meu olhar.
- Eu devo ter batido a cabeça, e deve ter sido mais forte do que eu pensei. Vou chamar a emergência.
Sentindo urgência, me sentei na cabeceira da cama, peguei o telefone, e olhei o manual para saber como chamar a recepção. Quando finalmente entendi, coloquei o telefone no ouvido e comecei a teclar. Levei alguns segundos até entender que ele não tinha sinal. Tentei mais algumas vezes sentindo uma frustração crescente. Olhei novamente a paisagem pela janela e minha mente ficou em branco. Eu não sabia o que fazer. Subitamente me lembrei do meu celular, corri até minha bolsa e liguei a tela, esperançosa. Mas não havia nenhum sinal de internet. Tentei ligar para os números de emergência dos EUA, teimosamente, mas não consegui nada além de mais irritação.
Me dei conta, subitamente, que olhar aquela janela, que já começava a acumular neve nos beirais, me deixava ansiosa. Fechei os olhos e fiz alguns exercícios de respiração, me localizando no meu corpo, olhei ao redor, me localizando no espaço. Me senti mais calma. Peguei o celular novamente e ativei o modo econômico, afinal estava em uma emergência. Nesse modo iria durar uns cinco dias, pelo menos era essa a promessa.
- Mais a bateria externa... São cinco cargas completas.
Não precisaria de tanto, mas era bom se precaver. Olhei ao redor tentando formular uma estratégia de ação. Imediatamente coloquei o roupão fofo, enrolei uma toalha no cabelo e calcei a pantufa do hotel e fui para o corredor. Talvez houvesse algum funcionário ou outros hóspedes, que pudessem me orientar e ajudar. Ao abrir a porta do quarto, fui surpreendida por um vento forte e congelante que lambeu minha pele, se infiltrando rapidamente até os meus ossos e apagando qualquer vestígio do banho quente que eu havia tomado antes mesmo que eu tivesse tempo de fechar a porta.
- Mi-mi-misericó-có-córdia! – Gemi enquanto corria e me enroscava embaixo das cobertas em busca de proteção térmica.
Gastei um tempo significativo recuperando calor corporal e tentando retomar minhas funções cerebrais congeladas. Encarei a porta perplexa durante outro longo período. De onde tinha vindo tanto frio? Após severas reflexões, concluí que, primeiro, eu tinha uma concussão grave. Era a única explicação racional. Segundo eu estava alucinando. Terceiro, eu precisava me trocar e colocar roupas quentinhas. Mesmo alucinando eu queria estar quentinha. Quarto, eu precisava descer para procurar ajuda médica. Olhei pela janela esfregando minhas mãos e pés. Senti um medo começando a nascer no cantinho da minha mente e pesar no meu peito.
Para fugir do medo, sai da proteção calorosa das cobertas, abri minha mala e olhei minhas opções. Lembrei da temperatura de Chicago quando cheguei no Hotel e decidi usar a roupa que eu tinha separado para voltar no avião. O mesmo casaco quentinho de viagem, calça preta com uma listra vermelha de cada lado, uma regata preta, um casaquinho de manga comprida leve preto, polainas vermelhas e minha bota velha de guerra. Mas adicionei duas camadas de meia calça grossa, uma blusa de manga comprida e a blusa segunda pele que eu tinha levado para o caso de esfriar, ambas pretas. E a luva que era mais charmosa que quente, mas qualquer camada ajudaria naquele momento. A lembrança do frio gélido e o visual na janela me fizeram olhar outra vez minha mala e lamentar não ter outra camada para sobrepor. Minhas outras roupas eram uma saia, um vestido e um short, que definitivamente não ajudariam a me aquecer.
Peguei minha bolsa, coloquei meus documentos, o celular com a bateria externa e saí decidida em direção ao elevador. O mesmo vento frio me recebeu assim que abri a porta, mas dessa vez estava preparada para ele. No meio do caminho lembrei que não poderia usar o elevador depois de um terremoto. Mas lá estava ele de portas abertas para mim. Ele parecia convidativo e comecei a caminhar em direção a ele. Mas algo me fez parar. Não sei, não me pareceu certo usar ele. Uma intuição. Quando eu parei, decidida a não entrar, as portas se fecharam e ele foi embora.
- Estranho...
Me virei desanimada, encarei a escadaria de emergência e suspirei alto.
- São apenas 90 andares...
Olhei de novo para o meu quarto e pensei que para uma aventura dessas eu deveria levar água e algo para comer, certo? Voltei ao quarto, peguei água e refrigerante no frigobar, os pacotes de castanhas, chocolates e balinhas, guardei tudo na bolsa e iniciei minha descida. Estava apenas no 88º andar quando comecei a ouvir o que pareciam ser gritos. Paralisei imediatamente e busquei identificar a fonte.
- Algum maluco usou o elevador! - Percebi horrorizada.
Ansiosa, esperei pelo barulho do elevador se chocando com o chão, o tremor do choque, mas ele nunca veio. Com o coração na boca, retomei minha descida. Outros gritos vieram. Não entendi o motivo das pessoas entrarem em um elevador após um terremoto. Não era procedimento comum evitar elevadores em casos de emergência?
Em vários momentos me sentei para descansar, beber e comer. Não encontrei ninguém pelo caminho. Havia me hospedado no último andar, e me sentia arrependida nesse momento. Eu cresci com uma vida econômica tranquila, e meus pais me deixaram em uma situação estável, que eu apenas expandi e melhorei. Podia me dar luxos como me hospedar na cobertura. Embora nesse momento eu desejasse ter reservado um apartamento no 61º e não no 90º, pois estaria mais próxima do térreo.
Continuei a descida eterna e, quando meus joelhos já estavam tremendo, eu finalmente alcancei o térreo. O enorme hall de entrada, antes todo de vidro, agora estava completamente destruído. Com vidro espalhado, malas caídas e neve começando a se acumular perto da entrada. As pessoas estavam reunidas diante da entrada destruída cheia de neve. Menos pessoas do que eu esperava para um prédio daquele tamanho. Ainda que apenas 1/3 fosse hotel e 2/3 comercial, deveria haver mais gente ali, não?
Assim que eu cheguei outra mulher se aproximou e puxou papo comigo.
- Você também está vendo neve, como eu estou vendo certo?
- Infelizmente, sim. Neve. - Respondi meio sem graça.
- Sim. E nada de Chicago... Tem árvores lá fora. - Completou ela, com a voz meio esganiçada.
- Você já foi lá fora? - Perguntei para ela.
- Eu não. Mas eu vi da minha janela. E aquele homem loiro alto com o taco de beisebol e o policial ao lado dele foram e viram que só tem árvores.
Ela apontou um homem loiro, vestindo uma mistura estranha de roupas. Parecia que ele tinha colocado todas as roupas que tinha na mala empilhadas sobre o corpo. E não é como se ele usasse roupas que combinasse. Eram camadas coloridas de calça, bermuda, camisas, blusas e regatas. Tudo sobreposto sem nenhuma ordem. Na realidade parecia que ele fazia questão de mostrar a sobreposição de roupas, coloridas e estampadas. Ao lado dele um policial uniformizado com um cobertor nos ombros parecia tentar usar o rádio do uniforme.
- Merda...
- Como isso aconteceu? A gente estava em Chicago! Chicago! Não tem neve em Chicago! Não agora!
- Eu não sei...
- Eu vim visitar minha filha! Ela precisa de mim!
Senti que ela estava começando e surtar. Eu não sei o que fazer com pessoas assim. Merda. Chocolate. Eu ainda tenho chocolate? Acho que tenho… Verifico minha bolsa e descubro que comi tudo no caminho. Merda, deveria ter guardado algo. Enquanto eu pensava no que fazer, uma senhora simpática que estava próxima pegou na mão dela, começou a conversar com ela e a levou para o sofá. Eu a segui automaticamente e entreguei minha meia garrafinha de água. Ela sorriu para mim e continuou acalmando a mulher, que começou a chorar.
O ruído emocional ali estava mais forte e no meu estado hipersensível, estava ficando confusa, perdida, e me dei conta que não conseguiria continuar ali muito tempo. Procurei um lugar afastado da multidão e fiquei de longe, observando. O grupo não era grande, cerca de 30 a 40 pessoas. Se entendi bem, ninguém sabe o que aconteceu, nem como chegamos aqui. Muitas teorias surgiram. Extraterrestres, ataque terrorista, teste governamental, magia, ilusão coletiva, drogas na água. Eu não sei o que pensar.
Chegou um momento em que o loiro e o policial assumiram a liderança. E a segurança do grupo se tornou uma prioridade. Ficar no térreo obviamente não era seguro, pois não sabíamos onde estávamos, nem se era perigoso. Subimos para o primeiro andar e a maioria tentou descansar. Quando o dia clareou, nos sentimos mais seguros para explorar a região ao redor do prédio. Ficou cada vez mais claro que não era uma ilusão ou alucinação, muito menos coletiva. Pois era impossível ser tão detalhista e tantas pessoas verem as mesmas coisas.
Descobrimos que Ryan, o loiro, era militar aposentado e isso fez com que ele ganhasse muito respeito no grupo. Ele e o policial, Louis, nos convenceram que ficar no prédio era perigoso, pois nossos recursos eram muito limitados, e não havia nada que demonstrasse que receberíamos ajuda. Por isso, decidimos pegar o máximo de recursos do prédio e partir em busca de ajuda. Os dois tinham percebido que havia uma enseada próxima e, se conseguíssemos descer, poderíamos achar um porto, pescar comida. Enfim, era mais fácil sobreviver no nível do mar, de acordo com eles.
Enquanto nos preparamos, me aproximei de um homem que percebi trabalhar no prédio e perguntei onde eu poderia conseguir sacos de lixo grandes. Ele me deu dois de bom grado, que guardei na bolsa. Poderia ser útil para sentar-se na neve sem molhar as calças. Grupos foram organizados para explorar o prédio e fazer buscas por produtos de sobrevivência. Pegamos comida, bebida, coisas para nos aquecer, isqueiros, fósforos, e itens úteis para caminhada na neve. Todos evitamos o elevador.
Tudo que conseguimos foi reunido no primeiro andar e distribuído o melhor que pudemos. Eu sei que teve quem escondeu coisas. E teve quem que se sentiu injustiçado. Eu não me importo muito com os outros. Faço minha parte pelo grupo e por mim. Recebi um cobertor cinza clarinho, quatro garrafinhas de água, três barras de chocolate, uma lata de refrigerante, alguns pacotes de castanhas, um pacote de biscoito e dois pacotes de salgadinhos. Era toda a comida a que eu tinha direito.
Descansamos durante a noite e, assim que a luz do dia chegou, partimos na esperança de encontrar algum lugar seguro. Várias pessoas arrumaram coisas que servissem de armas. Eu já tinha dificuldade de levar tudo que estava carregando. Senti que meu sedentarismo poderia me custar caro. Mas não era hora de pensar nisso, então não iria pensar nisso. Estava sentada esperando a hora da saída quando Ryan se aproximou com uma touca de lã.
- Usa isso. Dá dor de cabeça sair na neve sem touca.
- Obrigada, eu não tinha nenhuma. – Agradeci, peguei a touca e coloquei. Eu realmente posso dispensar qualquer fonte extra de dor de cabeça.
Reparando agora, ele parece bem mais velho do que eu. Deve ter uns 50 ou 60 anos. Parece ser forte debaixo da confusão de roupas.
- Sem problema. Tenta não ficar longe do grupo. É fácil se perder na neve. Fica colada com a gente, ok?
- Sim, senhor. – respondi por hábito.
- Ryan, pode me chamar de Ryan.
- Força do hábito. Pode deixar Ryan, vou ficar colada no grupo.
- E se estivermos rápido, nos avise. Ninguém fica para trás, ok?
- Certinho Ryan. Obrigada.
Fiquei feliz com a atenção dele. E então percebi que, Louis, o policial, fazia o mesmo com outra pessoa. E Ryan foi para outra pessoa. Os dois estavam realmente liderando. Cuidando do grupo. Uau. Chegou a hora de partir, e Ryan e o policial foram na frente guiando o grupo. Caminhamos até meio-dia sem nenhum problema. Eu acabei no final do grupo. Nunca fui esportista e caminhar na neve é difícil sem preparo físico. Mesmo que, na parte de trás, a gente não pegue o pior. Quem está na frente, a maioria são pessoas fortes, e esses enfrentam neve na altura dos joelhos, às vezes mais alta. Eles usam objetos para ajudar na caminhada, afastando a neve, pelo que vi. Nós que estamos atrás, vamos no rastro deles, o que é bem mais fácil. Mas o frio é cortante, e agora eu sei o que essa expressão quer dizer. Eu passo mais tempo olhando para baixo e evitando que o vento toque meu rosto que qualquer outra coisa.
Quando o grupo parou, para descansar e comer, ninguém realmente conversou. Estávamos cansados, com medo, ansiosos. Enquanto comia chocolate e tentava beber água desagradavelmente gelada (nunca imaginei que pensaria isso na vida) refleti sobre a loucura da situação. Ficar no prédio provavelmente era morte certa. Mas será que se aventurar naquela paisagem gélida era realmente melhor? Não parecia haver cidades próximas. Durante as duas noites anteriores ninguém havia visto iluminação no horizonte, algo típico na Terra. Qualquer cidade ilumina o horizonte. O céu aqui era limpo como eu nunca tinha visto em nenhum lugar na minha vida. Será que morreríamos congelados? Pouco a pouco, como em um filme triste? Será que estávamos indo na direção certa? Ou na direção da morte?
(/ ̄ー ̄)/~~☆’.・.・:★’.・.・:☆
Nota da autora: a fadinha da tradução usou sua magia aqui e, deixou tudo em português pois não faria diferença na nossa história esses diálogos em inglês. ♡( ◡‿◡ )/color]
.。.:*☽*4 - Balsa*☾*:.。.
PDV Mia.
Eu e Claude conseguimos entrar na última balsa de Colônia do Sacramento para Buenos Aires. Estávamos há um mês em uma road trip pela América Latina e aquele era apenas o começo de um ano que prometia ser emocionante. Quem diria que uma viagem de carro cruzando parte do continente seria tão revigorante? Apenas Claude para me propor uma loucura dessas. Mas eu estava precisando. Muito.
Eu acordei depois de um ano e meio de coma, e voltei para a casa da minha mãe, e levei alguns meses para conseguir retomar minha vida. Mas as lembranças desse período em coma ainda me assombram. Logo que despertei não lembrava de nada, mas conforme o tempo passa, às vezes me lembro de uma coisa ou outra. E a sensação que tenho é de que são lembranças, e não criações da minha mente.
O nível de detalhes com que me lembro de Valkyon, Fáfnir, a mulher albina que eu nunca descobri o nome. Os médicos afirmam que eles são apenas personagens que minha mente criou para enfrentar o coma. Mas há tanta coisa estranha envolvida. Eu já era diferente antes. Mas há coisas que aprendi no coma e que consigo fazer na vida real. Coisas que humanos não deveriam saber fazer.
Minha mãe sempre me dizia que deveríamos viver a vida com o que ela nos oferece, sem nos agarrarmos àquilo que está fora do nosso controle. Por isso, mesmo incomodada por não entender o que havia acontecido, voltei a viver minha vida. Retomei meu curso na universidade e consegui uma bolsa para o doutorado no exterior. Enquanto estudava fora, minha mãe morreu em um acidente de carro horrível.
Somente quem perdeu os pais sabe como é se tornar um passarinho sem ninho. Minha mãe foi mãe solteira e sempre se sacrificou muito para poder me criar, já que meu pai nunca me assumiu. Eu ainda tenho meus avós, mas nunca fui ligada a eles, pois eles nunca nos deram suporte, e não vi nenhum sentido em buscá-los depois da morte de minha mãe. Além disso, nessa época eu já tinha todo o apoio do Claude, meu melhor amigo, o irmão que eu nunca tive.
Além disso, eu estava seguindo a carreira dos meus sonhos. Amor dar aulas, adoro ver o brilho nos olhos de um aluno quando ele compreende uma teoria, quando rola o momento Eureka. Amo ver o caminho que um aluno toma nas suas carreiras, seja acadêmica ou não. Também sou apaixonada por pesquisa, e há anos minha vida gira em torno de publicações, projetos de pesquisa, artigos. O que vinha me sobrecarregando, e Claude sabia o quanto eu já tinha ultrapassado os meus limites de estresse.
Então ele me propôs essa Road Trip. Nós dois temos dinheiro guardado, e como ele prometeu, nos faria bem a experiência. Fora que tenho aproveitado o tempo para escrever com calma. Já publiquei dois artigos e estou com o terceiro no forno. O tempo livre tem feito bem à minha saúde mental e física, e tem sido extremamente divertido. Exceto pela última semana, quando minhas habilidades deram uma pirada. Estou mais sensível que o normal às emoções alheias, agora eu as sinto mesmo à distância. Curiosamente, Claude faz parte do seleto grupo ao qual não sou hipersensível. Pessoas que eu não sinto involuntariamente. Não tenho ideia do que causou isso tudo, mas não está sendo agradável.
- Você sentiu isso? – ouço Claude perguntar.
- O que?
Mal terminei minha frase quando fomos engolidos por um show de luzes que nos deixou cegos. A balsa se agitou de lá para cá e eu me arrependi de ter tirado o cinto de segurança pois fui sacudida da cabine. Senti os braços fortes de Claude me abraçarem para me conter e me agarrei nele também, que não tinha tirado o cinto de segurança. Ouvimos gritos do lado de fora. Repentinamente como começou, a agitação terminou. Abrimos os olhos ainda meio cegos da luz intensa anterior. As luzes da balsa, que estavam desligadas para o conforto dos viajantes, nessa viagem noturna, sendo ligadas ao nosso redor.
- Você está bem? – Claude me pergunta.
- Acho que sim.
- Tem certeza? Você se bateu muito.
Fechei os olhos e mexi meu corpo. Só então senti meu braço esquerdo.
- Meu braço esquerdo está um pouco dolorido.
- Deixa eu ver. Onde?
Indiquei onde estava doendo e nós dois pudemos ver uma região vermelha no meu antebraço. Claude movimentou meu braço em algumas posições.
- Não parece nada grave. Vamos só observar.
- Ok. O que será que aconteceu? - Perguntei observando ao redor.
- Não sei. Vamos esperar a orientação dos agentes da balsa.
A balsa não era muito grande. Era a menor das que faziam o transporte daquele trecho na realidade. Claude havia comentado que deveria caber umas 300 pessoas no máximo naquela embarcação. Mas ela estava bem vazia, o que tinha nos causado preocupação anteriormente, com a possibilidade de cancelamento. Observamos quietos enquanto os atendentes da cabine pediam calma e ignoraram as perguntas feitas. Enquanto isso, a tripulação do lado de fora da cabine, ligou os holofotes e direcionava as luzes ao redor da balsa. A equipe responsável pelos viajantes apenas nos pediam para sentar e afivelar os cintos.
- Tem algo errado.
- O que foi?
- Sente o cheiro?
Inspirei o ar profundamente, confusa com a pergunta do Claude. Não entendi de cara, mas então percebi que o ar ali me lembrava o litoral brasileiro, aquele ar fresco e salgado de maresia. Mas nós estávamos atravessando o Rio del Plata, a parte mais larga do rio. Tudo bem que mais uns bons km ele iria desaguar no Oceano Atlântico, mas era uma viagem de horas e não segundos. Como poderíamos ter ido parar num lugar de água salgada tão rapidamente?
Claude era francês e passou um tempo servindo como militar. Já eu, sempre vivi em uma cidade segura e confiava mais no instinto dele do que no meu em uma situação de perigo. Ele verificou nossos cintos de segurança com uma expressão que eu sabia que indicava preocupação.
- Como está seu celular?
Olhamos nossos celulares e nenhum tem rede, nem de emergência. Mostrei a tela para ele.
- Nada.
- Merda. – vi ele olhar em volta preocupado, batendo os dedos.
- O que foi? - Perguntei baixinho, tocando o braço dele.
Ele me encarou, depois olhou ao redor. Nós estávamos sentados próximos à janela, mais ao fundo, um pouco isolados dos demais. Na realidade quase todos sentaram um pouco isolados, talvez devido ao horário, as pessoas queriam aproveitar a viagem para descansar. Depois de inspecionar ao redor, Claude aproximou o rosto e começou a falar baixo.
- Nós não estamos onde deveríamos estar. As ondas se agitaram de repente. Essa balsa foi feita para atravessar um rio, mas nós estamos no mar. Eu fui criado na beira do oceano, eu sei reconhecer o mar quando estou diante dele.
- Ele falou perto do meu ouvido, sem tirar o olho dos arredores.
- Como viemos parar aqui? - Perguntei baixinho.
- Não sei, e duvido que alguém aqui saiba. Ajuste o colete salva-vidas e tente descansar.
- Claude, o que vai acontecer? - Perguntei depois de ajustar o colete desconfortável, que ele tinha me visto desamarrar displicentemente antes.
- O pessoal da balsa deve estar tentando entender o que aconteceu e onde estamos. O capitão em algum momento vai informar o que aconteceu. Se ele for esperto, ele deve esperar o dia clarear, para evitar desespero. Se dermos sorte, vamos ver a terra em breve.
- E se dermos azar?
Ele não me respondeu, e eu não cobrei resposta. Conferi novamente o colete salva-vidas. Ele ajeitou o banco, estendeu o braço para que eu me deitasse no peito dele. Nós tínhamos aquele tipo de intimidade, sem sermos um casal. Deitei e procurei relaxar, conscientemente, tentando dormir e ignorando a escuridão insistente do horizonte.
Eu confiava no Claude, tinha sido assim desde que nos conhecemos, quatro anos atrás, quando fiz doutorado na França. Ele estava morando com o namorado, um ruivo lindo no início da carreira de músico, e nós nos conhecemos por acaso, já que eu cursava doutorado na mesma faculdade que o namorado dele, e tínhamos alguns amigos em comum. Em uma das baladas, acabei conhecendo o Claude e nossa amizade foi imediata. Eu terminei o doutorado e Claude o namoro. Eu voltei para o Brasil e convidei ele para conhecer meu país. Ele veio, amou e ficou. Desde então moramos juntos.
Ele é loiro, alto, forte, com olhos cor de mel, um típico europeu bonitão. Ele é inteligente, e basta uma conversa para ver como ele é simpático, acessível e um cuidador típico. Ele é extremamente protetor com todos ao seu redor, e um excelente cozinheiro, o que me salva a pele, já que meu talento na cozinha é nulo e eu consigo estragar até miojo.
Acabei cochilando e, no meio da noite acordei com a agitação dentro da balsa. As luzes estavam desligadas dentro da cabine, e ligadas do lado de fora. Encarei o Claude que olhava atento pela janela e me inclinei para olhar o que ele via. Pisquei os olhos várias vezes sem acreditar no que estava encarando. Uma espécie de camarões gigantes, quase da altura de um adulto, pretos, acompanhados de alguns menores, rosados, caminhavam calmamente pela balsa.
- O que?
- Shhhh - Claude me indicou silêncio.
Logo os bichos gigantes foram embora, sem causar nenhum dano. Pareciam curiosos, mas seguiram caminho. Um silêncio seguiu a ida deles e só foi quebrado quando os primeiros raios de sol apareceram. Todos na balsa pareciam ter medo de até respirar mais alto.
- O que era aquilo, Claude?
- Não tenho ideia.
- Nem eu. Nem em livros…
Olhei pela janela e entendi que não havia terra à vista. Tínhamos passado a noite navegando e continuávamos sem referência. Resolvi lidar com os problemas conforme se apresentem e eu consiga resolver. Claude me fez comer os lanches mais calóricos e guardou os chocolates e algumas castanhas em pacotes mais silenciosos no casaco dele.
- Eu não aguento comer mais nada.
- Tudo bem. Eu também estou cheio.
- Será que podemos dar uma volta? Minhas pernas estão doendo.
- Vamos esperar o anúncio do Capitão, duvido que demore.
E realmente não demorou. Logo ele nos reuniu no local destinado para os passageiros sem carro e nos informou que não sabia onde estávamos, que nenhum sinal de SOS era respondido, e que estávamos navegando em água salgada, ao invés de água doce. Eu imaginei que haveria desespero, mas parece que o desespero havia passado ao longo da noite, quando todos se deram conta que tinha coisa errada. Houve questionamentos, dúvidas, mas não havia o que fazer. Naquele momento, o que sabíamos é que estávamos presos em uma balsa, perdidos em um mar desconhecido.
.。.:*☽*5 - Coisas Inexplicáveis*☾*:.。.
PDV Mia.
Angústia. Medo. O balanço do mar.
- Respira fundo… - Claude inspirou fundo enquanto falava e colocava um pedaço de pano molhado com água salgada na minha nuca. - Você já andou de barco antes.
Assenti com a cabeça, e encarei o vaso com traços de bile amarga. O cheiro nauseante. As pessoas no barco estavam cheias de medo, de angústia, com raiva da tripulação, do mundo, de Deus, de tudo. Fechei a tampa do vaso tentando escapar do cheiro amargo e busquei o abraço do meu amigo. Graças a Deus ele não emanava sentimentos insanamente como os demais. Era como abraçar um ponto de silêncio em meio a uma tormenta emocional.
- Eu vou morrer… - Gemi baixinho nos braços dele.
- Vai ficar tudo bem. - Ele acariciou meu cabelo e continuou aplicando água fresca e salgada na minha pele. Aquilo era bom. - Enxágua a boca para tirar o gosto ruim.
Lavei a boca na pia com enxaguante bucal agradecendo os pequenos luxos desse barco, que logo iam acabar. Claude deu descarga.
- Vem, vamos respirar ar puro. Vai te fazer bem.
Encarei minha imagem no espelho. Pálida, com olheiras e o cabelo amarrado de qualquer jeito pelo Claude. Dei de ombros. Melhor isso que cabelos com vômito. Uma pessoa entrou no banheiro atraindo meu olhar para uma das minhas múltiplas fontes de tormento. Uma mulher mais alta que eu, morena, de olhos inchados de tanto chorar, foi lavar o rosto, e emitia ondas de tristeza e medo gigantesco. Eu só queria me embolar no chão e chorar. Senti meu corpo encostar na parede e começar a descer. Eu ia me despedaçar no barco. Essas pessoas iam acabar comigo.
- Sobe em mim, Mia! - Claude falou de uma forma autoritária, mas eu não me importei. Estava triste demais para me importar com qualquer coisa. Apoiei meus braços sobre os ombros dele e apoiei minha cabeça na cabeça dele, sentindo um alívio imediato. - Eu vou pegar suas pernas. - Eu não respondi. Estava passando mal desde o início da manhã, e já não tinha tanta força para reagir. Senti suas mãos agarrarem minhas pernas e me agarrei firmemente em seu corpo.
Rapidamente saímos do banheiro. Fechei meus olhos absorvendo o silêncio que Claude me oferecia. Eu nunca tinha reparado no quão silencioso ele era. Passamos por pessoas mas me isolei o melhor que eu conseguia, agarrando meu amigo como uma tábua de salvação. Depois de um tempo, senti a brisa do mar tocar meu rosto seguida do calor agradável do sol. Abri meus olhos e vi que ele tinha saído da cabine de passageiros. A tripulação chamou atenção dele, mas ele respondeu que só precisava me levar para um lugar tranquilo, que era marinheiro e assumia a responsabilidade. Eles simplesmente estavam ocupados demais para lidar com dois passageiros irresponsáveis e deram de ombros.
Chegamos a um espaço entre os carros, vazio e isolado. Claude me colocou no chão e eu sentei, já me sentindo melhor. Encostei em um carro e fiquei sentada, tomando um banho de sol, agradecendo a sacada do meu amigo. Ele ficou sentado ao meu lado, em silêncio também.
- Vai ficar tudo bem, Mia. Nós vamos superar isso.
Eu sorri preguiçosamente. Ele não tinha como entender.
- Obrigada, Claude.
- Você pode falar comigo se sentir medo.
Virei meu rosto para ele e abri meus olhos, lutando com a luminosidade antes de realmente enxergá-lo.
- Eu estou com medo, mas não é muito. - Respirei fundo. - Eu estou sobrecarregada. Apenas isso.
- Sobrecarregada?
- Com os outros… - Comecei a explicar.
Mas Claude pegou meu queixo e me obrigou a encará-lo com muita seriedade.
- Você tem essa mania… De que querer carregar o peso dos outros nas costas. Esse não é o momento para isso, Mia! Você não precisa ser egoísta, mas em situações de vida e morte, você precisa ter certeza de que está bem, ou não poderá ajudar ninguém. O primeiro oxigênio é nosso, lembra? Só depois podemos ajudar os outros.
Sorri para o loiro bonito que eu tinha à minha frente. Cada namorado do Claude que tinha perdido aquele homem incrível era um idiota sem noção.
- Eu sei, eu sei, relaxa. Foi apenas o choque inicial. Eu só preciso de tempo para lidar com a situação.
Olhei na direção da cabine de passageiros, sem ver nada realmente, devido ao carro que estava na minha frente. Claude acompanhou meu olhar.
- Não se preocupe com isso agora.
- Eu preciso… pensar em como lidar com tantas pessoas.
- Eu nunca vi você passar mal assim. - Ouvi em sua voz o tom de preocupação.
Fechei os olhos para evitar responder. Claude achava que eu tinha demofobia. Era a teoria que ele tinha me apresentado ao perceber que eu evitava com fervor qualquer tipo de multidão ou grupo de pessoas mais significativo. Eu sou do tipo que faz todas as compras online, só vai no cinema nas últimas semanas dos filmes, e nunca coloca os pés em um shopping, a não ser que eu tenha um objetivo muito claro. Até minhas refeições são compradas por aplicativos ou telefone. Para ir em restaurantes eu sempre verifico quais os dias e horários mais calmos para poder ir e nunca coloco meus pés nos badalados.
Talvez esse fosse o tipo de situação em que eu pudesse revelar para ele que não era demofobia o que eu tinha. Tudo bem que eu não sabia o que eu tinha. Ou era.
PDV Mia - 7 anos atrás
- Sentir as emoções dos outros não é uma maldição, Mia. Pode ser uma benção.
- Não? Eu vivo me confundindo! O que é meu? Essa raiva é minha? Eu nunca sei! Não me parece uma benção. - Me virei de costas, braços cruzados e irritada.
- O que você está sentindo agora?
- Eu estou irritada! Muito irritada!
- Por que?
- Porque você disse que é uma benção! Mas não é!
- Eu não disse que era uma benção. Eu disse que pode ser. As coisas nunca são boas ou ruins. Uma pedra é só uma pedra. O que você faz da pedra é que a torna uma bênção ou maldição.
- Pois até hoje, isso aqui, só foi ruim.
Ela me deu um sorriso condescendente que me irritou ainda mais, me fazendo sair bufando e dando um grito. Uma benção! Ela tinha ideia de quantas vezes eu achei que gostava de alguém e descobri que era um colega que gostava da pessoa? Que eu vivia confundindo meus sentimentos com os das pessoas ao meu redor a ponto de não saber de quem eu gostava e de quem eu não gostava? O quão confusa era minha vida emocional? E que era isso que me forçava a ficar agarrada a fatos e objetos? Pois isso não mudava.
Acabei encontrando o Valkyon no mesmo lugar de sempre. Pelo visto ele adorava aquele lugar, no alto do penhasco com os delicados draflayels voando felizes. Sentei como uma bomba do lado dele, despencando meu corpo sobre o corpo dele, meu ombro se chocando contra o braço dele.
- Ela é irritante demais! - Reclamei sem nem hesitar.
- O que foi dessa vez? - Ele me perguntou calmo.
- Como você suporta ela? - Encarar ele tão calmo e elegante fez com que eu me sentisse levemente infantil, mas ignorei essa sensação.
Ele apenas me encarou em silêncio e então voltou a meditar. Encarei o perfil dele, me ignorando completamente e me senti frustrada. Na Terra, me apoiariam.
- Na Terra, reforçariam seu mau hábito de reclamar sem ter clareza do motivo. - Ele respondeu de olhos fechados.
A droga do pensamento! Me endireitei e mostrei a língua para ele. Tentei fechar os olhos e imitar ele, mas tudo me incomodava. Rapidamente me levantei. Eu estava irritada, irritada demais para ficar sentada.
- Eu não consigo meditar, Valkyon!
- Por que?
- Eu estou com raiva!
- Por que?
- Ela disse que sentir emoções era uma benção!
- Ela disse?
- Disse!
- O que mais ela disse?
Encarei as costas eretas e indefesas dele. Eu podia chutar ele. Estando morto, nem ia sentir. Fiquei encarando as costas dele tentando decidir se chutava ou não, até me dar conta que eu não queria realmente chutar o Valkyon. Respirei fundo e olhei os draflayels, voando felizes e imunes à minha situação. Senti minha raiva passar um pouco. Eu gostava deles.
- O que você perguntou?
- O que mais ela te disse?
Olhei os draflayels voando antes de responder.
- Resumo da ópera? Que minha habilidade não é uma benção ou maldição, o que eu faço com ela é que a torna uma ou outra coisa.
- E isso te irritou?
Mordi os lábios e me abracei.
- Minha vida toda eu venho sofrendo com a invasão dos sentimentos alheios na minha vida, Valk. Como isso pode ser uma benção? Eu não sei de quem eu gosto, de quem não gosto, se sou apaixonada ou não, se amo ou odeio. Não há um único sentimento que dure mais de 24h na minha vida. É um inferno.
- Talvez seja por que até hoje você deixou que os sentimentos dos outros decidissem os seus.
Encarei as costas relaxadas do dragão na minha frente, o cérebro em branco. Levei um tempo para absorver o que ele dizia.
- Você tá dizendo… Que tem uma maneira de eu não ser invadida pelos sentimentos dos outros? - Falei me aproximando cautelosamente. Me ajoelhei ao lado dele e voltei a olhar seu perfil calmo e bonito.
- Não sei. Você precisa perguntar para ela, pois a benção é dela. Mas eu tenho clareza, pelo que você fala, que seus sentimentos têm sido decididos pelos outros.
- E como poderia ser diferente? - Perguntei me apoiando nos joelhos dele e encarando seus olhos fechados.
- Eu estava meditando, Mia.
- Eu preciso de respostas, Dragão.
- Medite comigo.
- Olha para mim, Valk.
- Você precisa olhar dentro de si para achar respostas, Mia.
- Meditar vai me ajudar?
- Talvez. Vai me ajudar com certeza. - Ele enfatizou o "me", arrancando uma careta do meu rosto.
- Se eu encontrar seu irmão, eu vou dizer a ele que você virou um monge meditativo. - ameacei gratuitamente.
- Ele vai gostar de saber. Agora saia de cima de mim e se sente ao meu lado.
- Certo.
PDV Mia - tempos atuais.
- Mia! Acorda.
Abri meus olhos sonolenta. Eu tinha dormido? Me mexi e descobri a jaqueta do Claude cobrindo minha cabeça e braços. Me descobri e olhei em volta, confusa.
- O que?
- Come alguma coisa. - Ele estendeu um sanduíche e um copo de suco.
- Obrigada. - Me espreguicei e então peguei o sanduiche. - Eu dormi muito?
- Cerca de uma hora. Você estava precisando.
- Verdade. - Respondi de boca cheia. Eu tinha tido o mesmo sonho novamente. Aquele sonho havia sido minha referência para aprender a diferenciar o que era meu do que era dos outros. O hábito de meditar era um recurso para que eu conhecesse os meus sentimentos. Pois era quando eu me lembrava das pessoas, sozinha, e acessava meus sentimentos em relação a cada um. Esse exercício diário, me ajudava a saber, no dia a dia, quando um sentimento alienígena me invadia. Eu precisaria mais do que nunca desse exercício.
Estava na última mordida quando escutei um som bonito, parecia uma espécie de canto. Claude fez um gesto silencioso para que eu o seguisse. Fui agachada até o limite dos carros e vi a cena mais extraordinária que já tinha visto na vida. Um grupo de seres, que pareciam arraias, estavam passando pela barca. Elas emitem um som que parecia uma bela orquestra, como eu nunca tinha ouvido na vida. Mas elas sobrevoaram a água, mergulhando apenas esporadicamente, brincando. E pareciam felizes. Seus corpos eram grandes, negros do lado onde o sol toca e branco com traços azuis do lado que a água toca. E ao invés de um longo espinho, eles têm quatro caudas longas, duas negras e duas azuladas. É um animal extremamente elegante e bonito.
Ontem foram camarões gigantes, hoje são arraias que voam. Nós ainda estávamos na Terra?
.。.:*☽*6 - Uma Sombra Entre Nós*☾*:.。.
PDV Mia.
Claude me chamou para voltar para a cabine de passageiros após a aparição dos animais estranhos, que pareciam arraias, mas eu hesitei. Os camarões gigantes e as arraias não parecem agressivas, e tampouco se comportaram de forma ameaçadora. Em compensação, eu passaria mal no meio daquelas pessoas. A ameaça com o grupo era real. Com relutância, Claude me deixou sozinha e foi até a cabine, para acertar algumas coisas. Quando retornou, ele carregava um ar vitorioso, que me fez encará-lo interrogativamente.
- Expliquei ao Comandante sua situação. - Levantei minha sobrancelha indagadora e ele deu de ombros. - Agora não é o momento de ser orgulhosa, Mia. Ele vai nos colocar em uma cabine VIP e, como expliquei a ele que você tem talento para organização, você ficará responsável pela despensa, junto com Helena, que é da tripulação. O que você acha? Você precisará trabalhar com apenas uma pessoa.
Respirei fundo e encarei o céu azul. Não é como se eu pudesse ficar longe do grupo de pessoas. Mas seria difícil com as pessoas no estado em que estavam. Mas eu precisaria tentar.
- O que você fará, Claude?
- Eu vou ajudar a tripulação na manutenção da balsa, e tentaremos pescar. Precisamos de um plano até o resgate.
Abri os olhos e encarei os olhos cor de mel do meu amigo. Depois de alguns minutos de silêncio, resolvi perguntar.
- Você acredita em resgate? Depois do que vimos?
Vi seus ombros caírem, como se um peso se depositasse sobre eles. Esse gesto apagou um pouco a minha esperança.
- Nós precisamos acreditar…
Ele estava certo, nós precisávamos acreditar. Depois de alguns minutos nos levantamos e enfrentei o desafio de ir direto para o olho do furacão. As primeiras 24h foram extremamente difíceis, e quando sentia que ia explodir, buscava recantos de solidão. Normalmente cantos mais afastados da balsa. Os ânimos se acalmaram aos poucos. Uma espécie de resignação ansiosa se estabeleceu. Coisas extraordinárias eram vistas, causando espanto e nos faziam questionar onde realmente estávamos. Algumas noites, vimos cardumes de peixes que brilhavam no escuro, e durante o dia, peixes de formatos que nenhum marinheiro nunca viu. Ontem vimos uma espécie de cobra marítima gigante, com um assustador rosto de caveira, passar próximo da balsa, nos olhar, e então seguir sua viagem tranquilamente.
Todos nós questionamos o que eram esses animais. Mas ninguém soube ou se arriscou a responder. Por algum motivo, essa fauna exótica me remetia à Memória e seus seres peculiares, como os Draflayels, que eram abundantes por lá. Durante meu coma, o lugar que inventei era assim, cheio de criaturas mágicas, que faziam coisas inesperadas. Senti saudades de Valkyon e das suas aulas de luta e defesa pessoal. Mesmo que fosse apenas uma ilusão de um cérebro comatoso, minhas memórias tinham me tornado uma pessoa melhor, mais ágil, mais saudável. Anos atrás tive que aceitar que sentia saudade de alguém que não existia.
Desde o dia que chegamos o Capitão havia desligado o motor, guardando combustível para alguma emergência. Uma sensação coletiva de ansiedade, esperança e medo nos preenchia. Até agora o tempo seguia sereno. Mas bastaria uma tempestade para termos problemas sérios. Uma balsa não resistiria a uma tempestade em alto mar. O desespero que me fizera passar mal nos primeiros dias havia cedido lugar à rotina do trabalho, das conversas em grupo, das longas horas de tédio olhando o horizonte azul ou a escuridão estrelada.
Todos economizamos ao máximo as rações do barco, mas descobrimos que alguns peixes, não importa quanto se coma, não matam a fome. É como comer vento sólido. Um ou outro peixe são comestíveis, e curiosamente são parecidos com o que conhecemos, mas esses são mais ariscos, e não temos material de pesca adequado. Quando pescamos os mais nutritivos, há uma verdadeira comemoração pela adição de proteína fresca ao cardápio. Como resultado da dieta restritiva, todos estão mais magros e morenos. Até mesmo eu, que fujo do sol, estou mais bronzeada.
Somos regidos por um sentimento de solidariedade reinante, que me surpreendeu. Inicialmente fiquei assustada pois há um número pequeno de mulheres nesse grupo, somos menos de dez e bom, nenhuma mulher fica muito tranquila num grupo com tantos homens. E sei que Claude se preocupou com isso também, ou não teria me apresentado como namorada dele. Mas não me senti ameaçada em nenhum momento pelos demais membros da balsa. Na realidade, todos têm sido solidários uns com os outros, respeitando as diferenças e apoiando nas dificuldades. É algo completamente diferente do que eu esperava e do noticiado em emergências.
Todos que tinham carro na balsa finalmente puderam pegar suas bagagens. A maioria se reuniu dentro da balsa, em um grande coletivo.
- Consegui outro lugar para nós, Mia.
- Mas já estamos em uma cabine isolada.
- Eu sei… Mia… Mas um lugar com tantas pessoas juntas, basta um pequeno problema e teremos uma multidão em pânico. Se uma pessoa ficar doente pode contaminar todas as outras. Além disso… - Ele olhou em volta com a expressão carregada que o acompanhava desde o primeiro dia.
- O que foi? - Toquei seu ombro com gentileza.
- É questão de tempo até que as coisas fiquem feias.
- Nós resolvemos o problema da água. É tosco e a água tem sabor ruim, mas é potável. - Disse, considerando que ele estava sendo negativo. - E um grupo é mais forte caso apareça uma criatura hostil.
- Concordo. Mas pelo que vimos até agora, nenhuma criatura hostil cruzou nosso caminho, mas em breve nossa comida vai acabar. Quanto tempo o clima de boa vizinhança vai durar quando a comida acabar?
Nos encaramos, e não que eu estivesse animada para dormir no meio de uma multidão. Eu não estava. O ruído emocional era insuportável. Há dias eu sofria com uma enxaqueca permanente e não tinha mais remédios para aliviar. Fora a náusea permanente que tinha feito com que eu emagrecesse mais que todo mundo. Eu só tinha medo que algo hostil nos atacasse e estivéssemos em menor número. Mas eu confiava em Claude e fomos para o depósito de bagagem. um espaço maior que a cabine VIP, mas sem nenhum conforto exceto as janelas gradeadas. Usamos o equipamento de acampamento para preparar o espaço de dormir. Lá Claude reorganizou nossa bagagem, colocando o que era essencial em nossas mochilas. Incluindo garrafas com água que estavam em nossa bagagem e lanchinhos que eu tinha esquecido que tinha comprado no Uruguai. Nossas três garrafas de vinho foram compartilhadas no jantar, o mais farto dos últimos tempos. Várias pessoas compartilharam bebidas que haviam nos carros, comemos alguns peixes e o Capitão decidiu abrir uma peça de presunto espanhol que estava guardada na despensa, animando o ânimo de todos.
Haviam alguns caminhões de carga na balsa, e iniciamos uma exploração dentro deles, tentando aproveitar tudo que podíamos. Mas não havia muita comida ali. A maioria eram encomendas de tranqueiras e eletrodomésticos. Livros foram considerados preciosos, pois nos ajudariam a passar o tempo, pilhas e baterias, itens de pesca, remédios e itens de saúde, tudo que ajudasse em nossa sobrevivência ou trouxesse conforto no barco era separado como um tesouro. A consciência de nossa situação começava a tomar corpo sobre todos e as estratégias de sobrevivência começavam a ser delineadas.
De acordo com Claude, nenhum avião havia sido visto, nenhum sinal de barco, nenhum sinal de rádio. Nada. Estávamos em um total e completo isolamento. Se estivéssemos em uma viagem de navio pelo Oceano Atlântico, eu desconfiaria que a lenda do Triângulo das Bermudas era real, e que havíamos passado por ele. Mas não era o que havia acontecido, o que tornava tudo mais improvável e estranho.
Vivemos mais uma semana de paz antes que um fenômeno estranho acontecesse pela primeira vez. Hoje vi uma sombra se aproximar de nosso grupo. Eu comecei a ver essas sombras esporadicamente após o coma e sei que os outros não veem. Nunca prestei atenção nelas antes pois, honestamente, estava ocupada com minha própria vida. Eu vi dragões, tenho habilidades especiais, que diferença faz sombras?Espécie de Arraia vista por Mia
.。.:*☽*7 - Caminhada no Gelo*☾*:.。.
PDV Elise.
Afastei o pensamento negativo e olhei meus pés. Eu não sei quanto tempo consigo caminhar no gelo. Minhas botas são impermeáveis, por isso uso elas em toda viagem. São confortáveis após tanto uso, e antitérmicas, o que está protegendo meus pés do frio. Mas inferno! Até minha bunda está congelada! Nunca estive num lugar tão frio e olha que já estive em lugares bem frios como Canadá. Olhei ao meu redor e percebi que tem gente em pior situação, tremendo de frio. Pessoas com tênis e sapatos comuns, sentadas em amontoados para somar calor corporal.
Comi devagar meu salgadinho, pois precisava fazer render. Olhei meu celular, mas nada de sinal. Observei o local onde estávamos. Uma região montanhosa, com escarpas perigosas e picos íngremes, nevados. Ali, no alto da montanha, o frio parecia ser tão intenso que uma espécie de estalactites gigantes de gelo se formava na direção do vento. Era surreal. Ao invés de descer, elas iam da direita para a esquerda, enfrentando a gravidade.
Ouvimos cantos de pássaros e outros ruídos de animais, mas não vimos nenhum ser vivo ainda. Abaixo, era possível ver o oceano, nosso objetivo, mas seria necessário descer uma encosta íngreme e perigosa, cheia de rochas, pontas de gelo, uma região para a qual não tínhamos nem equipamentos, nem roupas, nem treinamento. Nossa melhor chance era achar algum trecho mais suave. Ao nosso redor, árvores altas que não pareciam nenhuma que eu já tivesse visto antes. Lembravam os pinheiros e ciprestes, mas definitivamente não eram pinheiros e ciprestes. Tinham um cheiro fresco de hortelã, mas também caramelado, o que era muito estranho. Mas eu também não era botânica e nunca fui boa com plantas.
Olhei para trás, vi o prédio que estava cada vez mais distante. Ele era tão estranho naquela paisagem. Algo extraterrestre numa paisagem que parecia selvagem e intocada. Como se ele não devesse estar ali. Nada nessa experiência me parecia muito real. às vezes fechava os olhos esperando acordar a qualquer instante. Mas o frio, esse sim era bem real.
- Onde será que estamos? - Ouvi uma senhora perguntar, abraçada à sua filha adolescente, as duas embaixo de dois cobertores.
- Talvez no inferno - respondeu um homem enrolado em um cobertor xadrez, segurando um cabo de vassoura, como quem empunha uma espada.
Um desespero começou a crescer dentro de mim. Eu estava louca e morrendo dentro da banheira? Ou era tudo real? Pessoas loucas indagam suas loucuras? Respirei fundo, me concentrei no frio que estava sentindo. Em algum lugar, me lembrei que pessoas loucas não questionam a própria sanidade, então isso deveria ser um bom sinal. E se eu estivesse louca, bom, não havia muito o que fazer, além de tentar seguir em frente em meio à loucura.
Percebi então que eu estava sobrecarregada com os sentimentos do grupo. O medo, desespero, ansiedade, frustração, medo e muitos outros. E isso estava me cansando ainda mais do que a caminhada. Se continuasse desse jeito, eu seria a primeira a cair... Senti algo gelado tocar meu nariz. Olhei o céu e vi que estava começando a nevar. Eu não sei como era possível, mas parecia que aquele lugar estava disposto a piorar as coisas para nós. Olhando para baixo, gemendo de frustração, tentei apertar o cobertor o máximo possível ao redor do meu corpo.
- É hora de continuarmos pessoal. Arrumem suas coisas e vamos. - Ouvi Ryan comentar.
- Vamos tentar caminhar mais um pouco! – foi a vez de Louis levantar a voz de forma animadora. – Não se distraiam. Fiquem atentos ao grupo.
Os dois vieram animando o grupo, nos estimulando. Levantei, juntando forças, enrolei meu cobertor de maneira que ele me cobria desde a cabeça até os pés, inclusive parte do meu rosto. Começamos a nos movimentar e segui próxima do grupo. Irritada com o frio e a neve que tinha engrossado mais. Mesmo no rastro do grupo, a neve era alta agora. Eu afundava meus pés e fiquei mais lenta ainda. A neve e o vento machucavam meus olhos, me obrigando a manter a cabeça baixa. Caminhamos cerca de três horas assim, sem sinal de internet, sem sinal de cidade, sem sinal de vida, nada. De vez em quando olhava o celular esperançosa, e nada.
E então senti algo novo, uma sensação de desconfiança, como se algo estivesse observando, e imediatamente parei, olhando em volta, amedrontada. Foi quando percebi que o grupo não estava mais na minha frente. Não estava apenas distante, eu não os via mais. Contra a vontade, me esforcei para sentir o rastro emocional deles. Somente a sensação me atingiu com força. Merda. Merda. Merda.
Acelerei meus passos, desesperada, e conforme acelerava, aquela sensação ruim aumentava. Eu estava indo na direção errada? Parei e tentei localizar o prédio, mas a neve pesada não me deixava enxergar muita coisa à minha volta. O horizonte era agora uma cortina branca e assustadora. Eu não queria ficar sozinha... Então deveria acelerar mais e alcançar o grupo, mas esse pensamento me causou um arrepio de medo. Havia algo cruel no que eu estava sentindo.
O que estava acontecendo? Eu estava com medo do grupo? Sério? E eu faria o que? Ficaria sozinha no meio do nada? E se alguma coisa estivesse me observando? Esse pensamento me fez girar em meu próprio eixo, tentando enxergar algo naquela cegueira branca. E se estivesse sendo caçada por um animal selvagem? Um urso? Voltar ao prédio! Sim, eu podia voltar! Não era tão longe! Mas voltar e ficar sozinha? Isso sim é loucura! Suicídio. Estávamos caminhando há quase um dia! Além disso, grupos têm mais chances de sobrevivência em situações adversas, não? Foquei em todas as direções pois estava perdida e senti crueldade e diversão. Na hora me lembrei daquelas cenas do Discovery Channel, quando predadores cercam presas.
Quase como uma resposta ao meu medo e ansiedade, o tempo fechava mais e mais, a neve engrossava e o vento se tornava mais cortante. Tarde demais percebi que era uma tempestade. O som do vento se tornou alto demais e ao andar era como ter alguém empurrando seu corpo para trás. Eu nunca havia enfrentado uma tempestade de neve fora de um quarto quentinho com uma lareira, chocolate quente, um bom livro e serviço de quarto. Me dei conta de que envolvida pelo cobertor cinza claro eu estava indistinguível na neve, e se eu sofresse um acidente e precisasse chamar por ajuda, não seria fácil me encontrar.
O som da tempestade parecia ensurdecedor, batendo nas árvores estranhas que se curvavam como se quisessem deitar no chão, dando espaço para a ventania. Em alguns momentos eu não soube se ouvi gritos ou se era apenas a tempestade. Minha angustia e medo cresceram numa espiral de horror e rapidamente não sabia para onde estava indo. Pensei em correr e lembrei dos precipícios que tinha observado horas mais cedo. Eu podia cair em um. Esse pensamento finalmente me paralisou. Eu não sabia para onde estava indo. Mal via as árvores ao meu redor. O frio atravessava todas as camadas que eu tinha para me cobrir e machucava minha pele.
Abri a boca para gritar por ajuda, mas fiquei com ela aberta ao me dar conta da idiotice que quase fiz. Estava em uma região montanhosa coberta de neve. Um grito e eu poderia desencadear uma avalanche! Girei perdida. Idiota! Eu deveria ter ficado mais perto do grupo! Deveria ter prestado atenção! Como podem ter desaparecido assim?
- Merda! Merda! MERDA!
Estava difícil manter os olhos abertos naquela nevasca. Cobri o rosto com os braços, encarei o chão em busca de qualquer traço, mas não conseguia distinguir nenhum rastro ou pegada. Nenhum saco, latinha, nada. Sem saber o que fazer, me aproximei da primeira árvore que vi. Um tronco largo, que parecia ter visto muitas tempestades. Me encaixei atrás do tronco me protegendo dos golpes de vento e neve e fiquei ali, agachada, quieta, encolhida, esperando a tempestade passar. Eu não sabia se chorava ou se gritava. Uma dor de cabeça começou na minha nuca. Fiquei ali, chocada, paralisada de medo. O que eu faria?
Um plano, eu precisava de um plano. Isso. Primeiro: esperar a tempestade passar. Segundo: me manter o mais aquecida possível enquanto isso. Terceiro: tentar achar o grupo assim que a tempestade passar. Ótimo. Era um plano. Eu podia me contentar com isso.
- Gelo. Gelo. Gelo. Como as pessoas sobrevivem no gelo? Como? Como? Fogo! Eu não tenho nada para fazer fogo. Sem fogo então. Pensa. Pensa. Pensa. Iglu! Pessoas no gelo fazem iglus! Deve ter um motivo! Iglu! Mas como?
Encarei o tronco e vi que havia uma direção em que a neve se acumulava ao redor do tronco largo e cavei o gelo com minha bolsa, tentando abrir espaço para meu corpo pertinho do tronco. Consegui um espaço minúsculo no meio da neve acumulada. Com dificuldade por causa do vento, amarrei com um nó com uma ponta do cobertor em um dos galhos baixos da árvore, rente ao tronco. Sentei sobre um saco de lixo, puxei as bordas soltas do cobertor e as prendi por baixo dos meus pés, depois coloquei minha bolsa em cima das bordas e pisei na bolsa. Peguei o outro saco e vesti por cima do meu casaco, abrindo um buraco apenas para minha cabeça. Talvez ajudasse a esquentar.
Meu iglu, se é que se pode chamar assim, ao menos impedia a neve de cair em mim e junto com a neve nas laterais me protegia dos golpes de vento frio. Foi surpreendentemente eficiente. Logo eu estava em um buraco na neve e o frio intenso cedeu um pouco. Cansada, sem poder me mexer, cochilei algumas vezes de exaustão. Ao acordar, finalmente sem o barulho ensurdecedor da neve, mover meu corpo foi difícil. Parecia que eu estava congelada. Aos poucos saí do meu abrigo improvisado, cavando as laterais cheias de neve, e protegida pelo saco de lixo. O cobertor cinza estava meio duro de gelo, mas resgatei ele assim mesmo. Ele tinha salvado minha vida. A neve chegava no meu quadril. Para qualquer lado que eu olhasse, a neve estava alta e fofa. Tentei me concentrar em achar o grupo, e nada. Nem sinal deles. Saco!
- Será por causa da neve que eu não os sinto mais?
Olhei em volta de novo com atenção. O prédio estava à minha direita. Lembrei da sensação de ontem e me arrepiei inteira. Eu não iria procurar o grupo sozinha. Nem fodendo. Eles eram muitos e tinham homens armados. Eu estava sozinha. Quais as minhas chances? A melhor opção era voltar para o prédio. Talvez eles notassem minha ausência e voltassem...
Me virei decidida em direção ao prédio e comecei a caminhar, o mais rápido que conseguia para tentar manter meu corpo aquecido. Ciente que eu tinha pelo menos um dia de caminhada, na melhor das hipóteses. Refleti que, estando sozinha e em uma situação adversa, poderia usar da minha telecinese para limpar um pouco do caminho, afastando a neve. Foi a caminhada mais longa que já fiz. A neve era pesada de empurrar, e eu estava cansada. A pele das minhas pernas queimava e senti bolhas se formando e eventualmente estourando em meus pés.
Evitei parar no caminho, e comi caminhando. Tinha a sensação de que, se eu parasse, não voltaria a andar tão cedo. Então eu seguia, sem parar. Minhas pernas se movimentavam como se estivessem no automático. Já estava quase chegando ao prédio quando eu congelei. Uma espécie de gato com asas estava brincando na neve com um... um... uma espécie de coelho semi transparente, cheio de neve dentro!. Quando me viram, fugiram. E eu me perguntei se eu realmente tinha visto o que tinha visto. Uma nova alucinação? Uma alucinação dentro de uma alucinação.
- Acho que eu já passei do ponto de achar que isso é uma alucinação, mas... isso... isso... não! Não. Não. Definitivamente não.
Decidi ignorar o que tinha visto. Era demais. Voltei à minha caminhada. Mas mesmo querendo ignorar, meu cérebro tinha gravado a cena a ferro e fogo no meu cérebro e eu ainda podia descrever com perfeição a transparência daquele coelho, e o branquinho perfeito com um leve azulado nas pontas do gato alado, que tinha dois pares de asas!
Quando a noite chegou, eu sabia que não conseguiria continuar se parasse. Então peguei meu celular, aqueci no meu corpo, e rezei para conseguir ligar a lanterna. Depois que consegui, mantive ele colado no meu corpo, apenas a lanterna para fora das camadas de roupa. Cada passo exigia mais do que eu tinha. Eu não sabia de onde eu tirava força, mas naquele dia, naquela caminhada, eu descobri o quão forte era meu desejo de viver. Em determinado momento eu não pensava em mais nada, meus pés apenas seguiam, guiados por uma força interna que eu desconhecia. Até que finalmente cheguei ao prédio onde tudo começou. Já era madrugada quando, de pé na entrada do que sobrou do Hall de entrada daquele prédio enorme, olhei para aquela paisagem amedrontadora e gélida.Visual da Elise
Coelho "recheado de neve" visto por Elise
Gato com asas visto por Elise
.。.:*☽*8 - De Volta Para Onde Tudo Começou*☾*:.。.
PDV Elise.
Fechei os olhos com força e um desejo infantil de que, quando eu os abrisse novamente, veria Chicago. Como qualquer desejo infantil, o meu foi despedaçado pelas luzes do prédio que estava onde não deveria estar, cercado por neve, gelo, árvores e alguns destroços da entrada do prédio. Luzes que funcionavam de forma misteriosa para mim. Entrei rápido em direção à recepção, encarei o telefone uma última vez, peguei e senti a velha esperança infantil me tomando novamente.
- Quem sabe?
Aproximei lentamente o aparelho do meu ouvido. Nada. Senti lágrimas correrem pelo meu rosto. Senti meu limite ser ultrapassado. Ou ele já tinha sido ultrapassado e agora tinha se estilhaçado? Coloquei o fone no gancho lentamente, com medo de quebrar o aparelho, ou me quebrar no processo. Minha vontade era quebrar essa porcaria em mil pedaços, mas outra parte em mim quer colocar a porra do aparelho no ouvido de novo, e de novo, e de novo. Respirei fundo e olhei em volta, então eu vi, um mapa na parede, enorme. Em caso de emergência, ali estava o mapa. Não havia uma emergência nesse prédio nem um restaurante.
- O prédio tem 90 andares. Escritórios até o 60º. E o hotel recém-inaugurado até o 90º. Não sei até onde os grupos de busca exploraram...
Respirei fundo e me concentrei. Mas eu estava cansada demais. Pensei rápido, peguei todas as chaves que encontrei, coloquei na minha bolsa, e fui na direção da escada de emergência. Pensei em subir para algum escritório, achar uma sala com chave, entrar, trancar a porta e descansar um pouco e, então, quando eu acordasse, eu poderia decidir, com calma, o que fazer. É isso.
No caminho para a escada de emergência, o elevador estava lá, convidativo. Eu quase podia ouvir seu convite para uma viagem rápida e nada cansativa até um quarto confortável. Quem sabe o meu quarto? Ele estava quentinho. Tinha luz, água. Seria tão bom. E seria seguro lá. É a cobertura. Nada iria me atacar na cobertura. E de elevador... Nada de escadas, nada de tensão, nada de medo. Apenas o conforto de uma subida horizontal e direta. Suas portas abertas são tão bonitas, a luz suave e gentil, a música confortável de elevador, daquelas que nunca incomodam uma conversa nem deixam o ambiente pesado se estiver silencioso, as portas se fechando para te levar ao seu destino... Espera. As portas se fechando????
- Não! Não! Eu não posso entrar aqui! – Minha voz saiu rouca, baixa e fraca, como minha vontade de me mexer.
Já era tarde demais. O elevador começou a se mover lentamente, como qualquer elevador. E então acelerando, acelerando, acelerando. Senti a pressão no meu corpo e comecei a apertar freneticamente todos os botões. Rápido. Emergência. Mesmo sem ser religiosa, rezei. Implorei. Sufoquei um grito com minhas mãos e escorreguei pela parede até o chão ao mesmo tempo que lágrimas escorriam pelo meu rosto.
- Eu vou morrer numa lata de sardinha. Eu não quero morrer. Por favor, eu não quero morrer. Eu não quero morrer. Não quero morrer.
Subitamente o elevador desacelerou, tão rápido que meu corpo saltou levemente no ar. Ao ver a porta se abrir, não sei de onde tirei forças, mas arrastei meu corpo o mais rápido que consegui para fora desse caixa amaldiçoada, com a cena de Resident Evil em minha cabeça. Quando meu corpo todo está do lado de fora, eu simplesmente permaneço deitada no chão e choro.
Não sei por quanto tempo fico ali chorando, exausta no corredor insosso de um hotel morto no meio do nada. Em algum momento percebo que preciso ir para o quarto, sob o risco de dormir ali mesmo, no chão duro sob a corrente de ar frio. E o elevador está ali, como um torturador cruel apreciando sua obra prima. Tocando aquela musiquinha que eu aprendi a odiar em segundos. Me levanto do chão, levanto o dedo do meio para o elevador, xingando ele mentalmente, e vejo onde estou.
- 90º andar...
Olho o elevador e mostro a língua para ele. Me recuso a agradecer o maldito. O vento frio continua me castigando. Passo pela porta de um quarto. Ela é idêntica às demais. Mas tem algo nela. É estranho, mas algo me diz que tem algo de errado ali. Uma voz na minha cabeça, um arrepio no corpo. Mas eu estou cansada demais para mais coisas estranhas. Vou para a porta do meu quarto, pego a chave na minha bolsa e entro. Sinto um prazer enorme ao constatar que a luz ainda funcionava. Será que ele iria esquentar? Meu cérebro solenemente decide ignorar qualquer estranheza que a situação normalmente me provocaria.
- É hora de dormir, né?
Enquanto me desligava do mundo, fechei a porta, coloquei uma cadeira encostada no fecho atrás por segurança, tirei toda minha roupa, senti a pele ardida nas pernas, no rosto, nos pés, nas mãos sem luvas.
- Não importa...
Peguei uma toalha, sequei meu corpo. Passei rápido um óleo hidratante no corpo todo. Tomei analgésicos e um anti-inflamatório para a enxaqueca e me deitei na cama. Mentira, despenquei na cama. Minha mente foi se esvaziando. Com prazer senti meu corpo aquecer, e minha mente finalmente adormecer.
.。.:*☽*9 - Acordar*☾*:.。.
PDV Elise
Acordo lentamente, abro os olhos e me vejo no quarto de hotel. Me sinto confusa. Fecho os olhos e tento lembrar do sonho confuso que tive, mas uma sensação me atinge e o sonho se esvai da minha mente junto com minha dignidade quando percebo que a minha cama está úmida. Abro um olho após o outro, encarando o teto, descrente e desorientada.
- Há quanto tempo estou dormindo? Hum... – me concentro
na umidade da cama e ela é gigante. Não pode ser...
Coloco uma mão na cabeça. Agradeço por estar na penumbra, pois minha cabeça dói de maneira infernal. Olho pela janela e vejo uma grossa camada de neve acumulada no beiral. Uma luz se acende em meu cérebro dolorido e distraído.
- Neve? Não deveria estar nevando. Estamos no outono...
E a realidade cai em mim como uma pedra. Gemo alto, puxo as cobertas para minha cabeça e sinto cheiro de urina?
- Mas que... Eu... tá de zoeira comigo?
Olho para o teto e fecho os olhos em seguida, cobrindo o rosto com uma mão num misto de vergonha e humilhação... Me arrasto para fora da cama fedorenta, sentindo nojo e vergonha do tanto que ela está úmida. É uma cama de casal e me dou conta que não deve ter sido apenas uma vez. Estou morta de sede, com lábios ressecados, ásperos. Percebo que preciso ir ao banheiro com urgência. Dou descarga no automático e, para minha surpresa, descubro que tem água. Imaginei que o encanamento já teria ido para o espaço a essa hora. Esse prédio continua me surpreendendo. Aproveito para beber muita água direto da pia, pois estou com uma sede infernal. Aproveito para beber junto um remédio para enxaqueca.
Olho minha imagem no espelho da pia e analiso meu rosto. Minha pele não está vermelha como eu esperava, na realidade, ela está bonita e brilhante, como se eu estivesse cuidando dela. Observo meus olhos verdes, sempre gostei deles e de como eles chamavam atenção positivamente. Minhas sobrancelhas não são muito grossas, nunca precisei tirar pelo, na realidade preciso maquiar ela um pouco, para ficar menos pálida. Meu nariz é um pouco adunco, mas hoje em dia gosto dele e meus lábios são rosados, apenas falta neles aquele delineamento bonito de algumas bocas. E nesse momento, estão completamente ressecados, com peles secas saltadas.
Aproveito para escovar os dentes e jogar uma água no rosto. Testo, esperançosa, a água morna e, por um mistério divino, ela existe. Tento usar o mínimo, deve ser a água da caixa d'água, então não sei quanto vai durar. Melhor fazer render. Olho a banheira e não consigo resistir. Tem água morninha. Esse pode ser meu último banho decente da minha vida. Com certeza será o último quente.
- O mínimo que eu mereço é um banho.
Enquanto a banheira enche eu molho bem o meu cabelo no chuveiro e desfaço o ninho de ratos que se formou em minha cabeça, desfazendo nós misteriosos e aproveitei para lavar em com o xampu e condicionador do hotel. Então hidratei com meu condicionador e aproveito para massagear o couro cabeludo dolorido, deixando minha máscara hidratante fazer sua mágica. Uso o resto dos sais hidratantes, que eu tinha recebido de brinde do hotel (adeus luxo!) na banheira e me permito relaxar um pouco. Sinto meu corpo agradecer esse mimo.
Fecho os olhos evitando pensar na merda em que me meti. Tento lembrar do meu sonho e da luxúria que eu sei que senti e vivi. Nada. Só me lembro que sonhei, mas não lembro de nada mais do meu sonho. Delírios líricos nunca estão aqui quando se precisa deles. Penso no Lucio, um amante habitual meu. Tivemos boas experiências juntos. Toco minha pele delicadamente, mas não sinto nada da luxúria que desejo sentir. Afundo um pouco na água e bufo de frustração. Estou louca para relaxar um pouco, mas nada me anima nesse momento. Fecho os olhos e curto o banho apenas. Ao sair da banheira, enquanto me enxugo, me dou conta de que não estou dolorida, e eu deveria estar após o exercício dos dois últimos dias.
- Eu sou sedentária e caminhei basicamente dois dias na neve, quase sem descanso. Senti o cansaço extremo em que estava. Basicamente desmaiei na cama. Eu deveria estar dolorida pra caralho. Uma hora de academia numa aula grátis alguns meses atrás me deixou uma semana gemendo de dor para sentar e mover os braços. E agora, depois de tudo que fiz, já estou quase recuperada?
Fui para o quarto, acendi a luz e, como sempre, senti o assombro de constatar que o aquecimento e a energia elétrica funcionavam ali. E eu sei bem que não é no hotel todo que funciona. Olhei para a cama e me perguntei quanto tempo eu dormi. O cheiro de urina atingiu meu nariz me envergonhando novamente. E dessa vez me preocupando.
Olhei meu corpo nu no grande espelho. Minha pele é branca e pálida, não importa quanto sol eu pegue. A pele do meu corpo não dá sinais de ter sido maltratada pelo frio. Puxei da memória o estado da minha pele ontem, e eu posso jurar que estava muito vermelha, queimada até. Eu sentia ardência no rosto, nas pernas e especialmente nas mãos. Mas olhando agora, não via sinal de vermelhidão nem ardência. Me sentei no sofá e olhei meus pés. Sem sinal de bolhas ou feridas.
Encarei minha imagem refletida no espelho. Gostei do que vi. Me acho bonita e sexy. Toquei meus seios. Eles são pequenos, cabem na palma da minha mão, e me permitem raramente usar sutiã, o que é libertador. Meu quadril é estreito e meu bumbum pequeno mas arrebitado. Eu tenho aquele corpo de modelo, magra alta quase sem cintura. Já me incomodei muito por ser assim, quase reta, mas hoje gosto de estar na minha pele.
Olhei minhas tatuagens, todas feitas após a morte dos meus pais. Depois de me recuperar da depressão, fui marcando meu corpo com arte. Apesar do baque, a morte deles me libertou de muitas maneiras. Imediatamente sinto culpa por pensar assim, mas não quero pensar nisso agora. Olho novamente a cama preocupada.
- Quantos dias eu dormi? – tenho certeza que a minha pele, músculos e bolhas nos pés não se recuperaram em menos de 24h.
Lembrei do celular, mas ao tentar verificar a data nele, descobri que a bateria tinha acabado. Ela não deveria ter acabado antes de cinco dias. E definitivamente ainda tinha bateria quando eu me deitei. E ele estava no modo econômico. Se bem que eu havia usado a lanterna dele também. Era fato. Decidi aceitar que eu havia dormido bem mais que um dia, mas pelo visto também teria que aceitar que eu não tinha como saber quanto tempo exatamente eu havia ficado desacordada. Resolvi tentar conectar ele na tomada. Absurdamente, começou a carregar. Coloquei a bateria externa para carregar também. E constatei mais uma vez que o quarto estava fedendo.
- Que vergonha... Preciso trocar de quarto...
Peguei um hidratante corporal e comecei a passar, fazendo uma automassagem enquanto isso. Caprichei nos pontos que ainda estavam levemente doloridos no meu corpo. Hidratei a pele do meu rosto. Sequei meu cabelo com o secador do hotel e percebi que eu não estava com nem um pingo de sono.
- Sabe Deus quanto tempo eu fiquei naquela cama.
Peguei minha mala, coloquei na mesa e abri. Não tem muitas roupas já que meus planos não incluíam uma aventura na neve nem ser transportada para um outro lugar.
- Deveria ser só uma reunião de negócios...
Eu não tinha opção além de usar as mesmas roupas usadas e peguei um caderno onde comecei uma lista do que fazer. O primeiro item era trocar de quarto, e o segundo conseguir roupas novas e lavar as minhas atuais. Liguei meu celular e descobri que duas semanas haviam se passado. Impossível. Olhei a tela do celular e decidi que o aparelho estava com problemas devido à falta de bateria e sincronização.
Ergui o queixo e sai com cautela em busca de outro quarto. Procurei sentir emoções e nada. Comecei o longo processo de testar chaves, mas nenhuma abriu a porta. Tentei outra porta e o mesmo aconteceu. Andei pelo corredor e todas as portas estavam fechadas. Joguei as chaves na última porta em um ataque de ira, como se isso fosse abrir a porta. Respirei fundo e peguei as chaves. Elas tinham que abrir alguma porta, certo? Peguei minha caderneta e adicionei mais um item: arrombar as portas dos quartos. Como se arromba uma porta?
Comecei a descer as escadas, olhando cada corredor, testando as portas dos quartos mais próximos das escadas. Tudo fechado. Frustrada, cheguei no 60º, um andar de escritórios. Ele não parecia ter sido explorado pelo grupo de busca. Neste andar parecia haver muitas salas de reunião. Descobri uma porta discreta perto do elevador, que estava trancada, mas que não foi tão difícil de forçar. Dentro dela, um mini paraíso: o carrinho da camareira do hotel e várias estantes com itens do hotel. Miniaturas de sabonetes, shampoos, sais de banho, condicionador. Além de cobertores, travesseiros, lençóis. Pela quantidade, parecia ser um ponto de apoio ou estoque. Abri algumas caixas e encontrei o que estava procurando: chocolates, bombons, castanhas, todas as guloseimas do bar. Vi também mini garrafinhas de bebidas alcoólicas, garrafas de água, umas garrafas de champanhe. Mexi no carrinho e descobri uma chave, e fiquei animada. As camareiras tinham chave mestra, certo?
Peguei a chave, bebi água e comi. Sai do paraíso, encostei a porta, e subi um andar para testar a chave mestra. Bingo! A porta abriu suavemente. Desisti de entender como a fechadura elétrica ainda funcionava e testei a energia daquele quarto. Nada funcionava. Descobri um quarto no meio do 61º andar que estava como o meu: aquecimento ligado, luzes funcionando. Outros dois quartos também tinham tudo funcionando, mas um deles estava com as janelas quebradas, e o outro estava no 89º andar.
Passei dois dias coletando toda a comida, bebida, roupas e itens que julguei úteis. Todos os dias vejo o sol nascer e se por. É lindo e solitário. Ontem vi algo passar voando por uma janela e me assustei. Mas quando criei coragem para tentar ver o que era, já tinha ido embora. Deve ser uma ave local. Será que é perigosa? Será que é estranha como o gato de asas e o coelho cheio de neve? Sinto uma força dentro de mim se firmar. Uma decisão.
- Eu não sobrevivi a uma tempestade de neve em um lugar misterioso para morrer agora. Vão ter que se esforçar mais para me matar.
No terceiro dia entendo que não vou achar mais nada dentro do prédio. Abaixo do 55º andar não há nada que não tenha sido revirado. Acima disso, as pessoas que fizeram a busca não foram caprichosas. E na área do hotel, eu já peguei tudo. Sentada diante do meu estoque percebo que não tenho nada realmente nutritivo. Em termos calóricos, consigo sobreviver bem mais que um mês, mas não mais que dois. Minha principal fonte é chocolate e castanhas. Achei um vidro de vitaminas pela metade na gaveta de algum funcionário, que decidi tomar, e deve durar um mês.
- Se eu estiver certa. Tenho cerca de um mês e meio para sair dessa situação.
Água não será problema. Mesmo se as garrafinhas acabarem, tem muita neve lá fora. Me preocupa não saber em que estação estou. Neste lugar, estou no pior do inverno ou o inverno nem começou? Sigo anotando cada reflexão em meu caderno e decido ir para o terraço. Há um tempo estou pensando em analisar com calma o horizonte. Pego duas cobertas, fecho a porta e começo a subir.
Ao caminhar pelo corredor do 90º andar, diante da porta misteriosa, decidi que era hora de investigar, então abri a porta do quarto cautelosamente. Minha intuição estava diferente. Sério, nunca tive uma sensação tão forte de algo errado. À primeira vista parecia um quarto comum do outro do hotel. Dei mais alguns passos e vi algo que se parece com uma porta rodeada por algo exótico, em uma parede que não deveria ter nada. Eu nunca vi nada assim. É uma energia completamente diferente, azulada que parece estar passando desse lado para o lado de lá. Me sinto atraída, como no elevador.
"Não passe por aí." Ouvi claramente uma voz feminina.
Olhei ao redor assustada mas não vi ninguém. Fui ao corredor e nada. Me concentrei em busca de qualquer sentimento mas não senti nada.
- Ok. Agora eu tenho minha intuição e uma voz misteriosa dizendo que não devo passar por aí.
Observei o ambiente dentro desse portal. Parecia um lugar comum da Terra. Cama feita, guarda roupa, TV. O mais importante: um programa de TV com notícias da Argentina passava na TV! Me senti imediatamente hipnotizada pelo ambiente, tentada a voltar para minha vida, mas minha intuição gritava para não fazer isso.
- Eu sou um ser racional. Um portal dimensional não é algo que já vi ou ouvi falar. Nenhum ser racional passaria por um portal sem fazer testes. - falo baixinho, comigo mesma. Me convencendo.
Observei o ambiente ao meu redor pensando no que fazer. Precisava testar a segurança de passar pelo portal, primeiramente. Animada, rasguei o lençol da cama para fazer uma espécie de cordão e amarrei em uma caneta. Me agachei em frente ao portal, a uma distância que considerei segura e joguei a caneta pelo portal suavemente, segurando o cordão. Caneta e cordão sumiram com faíscas azuladas para segundos depois aparecerem também com faíscas do outro lado.
- O que aconteceu nesses segundos em que a caneta sumiu?
Puxei de volta a caneta pelo cordão e o mesmo fenômeno aconteceu. Ao sair do portal, o que vi paralisou meus movimentos, eriçando cada pelo do meu corpo. A caneta se dobrou como um macarrão cozido puxado pelo cordão, que estava duro, rígido, tanto que caiu no chão fazendo um barulho idêntico ao de vidro. Encarei aqueles dois objetos, completamente distintos do que eu havia jogado dentro do portal.
- Mas que insanidade é essa???? Parecia estar tudo bem do outro lado!
Cutuquei a caneta com uma colher e ela parecia que eu tinha batido a colher e algo metálico. Como algo pode ser tão resistente e mole? Ao mesmo tempo? Se puxada, ela é mole, mas se empurrada, resiste como metal. Me causou mal-estar ver aquela caneta e o cordão de lençol naquele estado anormal. Puxei o cordão e a caneta se dobrou inteira como um macarrão molenga. Coloquei dentro de um prato de vidro os dois objetos bizarros. Me lembrei do gato com asas. Esse lugar não parecia obedecer às mesmas regras que eu conhecia.
Fui atrás de outra coisa. Eu precisava testar algo mais. Peguei uma saboneteira no banheiro. Ela era sólida. Parecia ser de bambu. Mas o importante é que ela tinha furinho para escorrer água. Rasguei mais uma fita de lençol, amarrei a saboneteira e fiz o mesmo. Repeti o mesmo processo, e novamente o mesmo efeito aconteceu. Mas os efeitos foram diferentes. O lençol parecia elástico. E a saboneteira se abriu como se fosse um livro, página por página. Coloquei dentro de uma jarra vazia de vidro e, assombrada pelo que vi, me levantei e saí do quarto, fechando a porta com cuidado. Anotei no caderno o que tinha visto. Eu tinha muito mais perguntas do que respostas.
- O que acontece com um ser vivo que cruze esse portal?
Fixei a porta fechada e tive medo da resposta. Será que o portal existia antes do prédio ser transportado para cá, ou o prédio se transportou para cá por causa desse portal? Ou uma coisa não se relaciona a outra? Duvidei dessa última opção. Mas eu não tinha como fazer nada além. Não ousava fazer mais testes pois o que tinha acontecido com os objetos, me causava mal-estar. Não queria olhar aquilo novamente.
Decidi ir para o terraço respirar ar puro. Eu precisava. Perto da saída da sacada notei o barulho de asas. Curiosa e precavida, olhei para fora e me surpreendi novamente com esse lugar incomum. Pequeninos dragões cor de rosa claro voavam do lado de fora da sacada. Seus corpos tinham escamas quase brancas e eu poderia jurar que eram flores em suas lindas asas. Que criaturas magníficas!
- Será que são filhotes?
Esse pensamento me preocupou. Nas histórias, os dragões eram enormes. E esses dragões, embora de variados tamanhos, não são gigantes como nas lendas. Espiei do lado de fora e não vi nenhum dragão gigante. E nenhum dos pequenos dragões me atacou. Pelo contrário, eles pareciam curiosos comigo. Sem me afastar da entrada do terraço, deixei que eles me sondassem. Depois de um tempo, perderam o interesse e continuaram a simplesmente voar ao redor do prédio.
- Espero não dar de cara com nenhuma mamãe ou papai...
Com esse pensamento em mente, decidi preparar uma mochila de fuga com um kit de sobrevivência. Esse era o terceiro ser singular que encontrava, isso se eu ignorasse a flora que eu tampouco reconhecia desse lugar. Cada vez mais eu era obrigada a reconhecer que talvez, apenas talvez, eu não estivesse mais na Terra. Mas não ousava me concentrar nesse pensamento. Como se o mero pensamento fosse capaz de tornar ele real. Como se houvesse alguma esperança de não ser.Mini Dragão Floral visto por Elise
.。.:*☽*10 - Outros*☾*:.。.
PDV Elise
Junto dos dragões florais – esse foi o nome que dei para eles – analisei o horizonte até anoitecer. O clima mais ameno, se é que eu podia chamar assim, permitiu que eu ficasse ali, observando tudo. E não consegui achar nenhuma saída. Pelo que percebi, o prédio estava próximo do topo de uma das muitas montanhas da região. Todas cobertas por neve e gelo. Existe apenas uma direção onde não há montanhas de neve. Na direção do oceano, se Ryan e o policial estiverem certos, as melhores chances de sobrevivência seriam lá.
Era preciso considerar que eu mesma não sabia caçar, ou pescar, nem fazer nada na natureza. Eu nunca acampei e minha experiência mais próxima com a natureza foi caminhar no parque. Verdade seja dita, minha melhor chance de sobrevivência, era achar quem soubesse sobreviver e convencer essa pessoa a me salvar. Frustrada, voltei para meu quarto ao escurecer.
Deitada na cama, olhei para o teto enquanto tentava pensar em alguma alternativa. Achei algumas roupas durante minha exploração, nada muito útil, mas peguei assim mesmo. Também achei a lavanderia do prédio, mas nada funcionava. Contudo, os produtos de limpeza me permitiram lavar minha roupa na banheira e eu podia usar roupas limpas. E ainda podia tomar banho, só que frio. Mas como o quarto ainda seguia quente, a água quente não me incomodava tanto. Fora os dragões voando, que pareciam gostar do prédio, e um ou outro barulho ocasional, não vi nenhum outro sinal de vida.
Estava sem ideias do que fazer a seguir quando compreendi que precisaria descer para os arredores. Eu sabia que do 50º andar para baixo tudo havia sido revirado. Mas eu poderia achar frutinhas comestíveis. Algo que o grupo não tinha visto na pressa de sair dali. Tentei achar desculpas plausíveis para não descer, mas não encontrei. Eu sabia que estava com medo de descer e enfrentar de novo a neve, o frio e a solidão fora do prédio. Nenhum cenário me parecia promissor, mas ficar parada no topo daquele prédio, era morte certa. Me movimentar me dava, ao menos, chances mínimas. Talvez um golpe de sorte. Sei lá.
- Não quero ser a pessoa que morre paralisada de medo... – falei baixinho me abraçando.
Decidi que ao amanhecer iria dar uma volta no prédio. Enfrentar esse medo. Dormi inquieta, numa noite cheia de sonhos. Acordei antes do amanhecer, ansiosa. Me arrumei, peguei minha mochila de fuga, pois nunca se sabe, olhei a escada de incêndio e o elevador. Como ele ainda está funcionando? É um mistério. Mais um entre tantos. Eu ainda estou andando com o celular na bolsa, mesmo sem sinal nem internet ou rede de telefonia. Um verdadeiro peso morto. Considerei o elevador. Minha outra opção é descer 61 andares a pé.
- Se hoje é dia de enfrentar os medos e ser corajosa, vamos lá. Vamos enfrentar o primeiro dos monstros.
Encarei o elevador de queixo erguido. Segurei meu cabo de vassoura como imagino que um cavaleiro da távola redonda seguraria sua espada e usei para apertar o botão que chama o elevador. Entrei no elevador rezando por uma descida calma. Desci ao térreo em uma viagem um pouco rápida demais e caminhei para fora do elevador com a adrenalina a mil, as pernas tremendo. É como andar de montanha russa.
Respirei fundo e verifiquei o Hall de entrada com meu tradicional misto de medo e esperança. Medo de novas surpresas, esperanças de ver Chicago. O que eu vi é a mesma cena de antes, o hall semidestruído, agora com muito mais neve acumulada. Parei um momento para ouvir qualquer ruído estranho, meus sentidos alertas. E então eu senti. Tem alguém no prédio. Eu não sei onde. Mas alguém bem ansioso está no prédio. Busquei o elevador, pronta para subir, mas ele não estava mais no andar. Olhei ao meu redor sentindo o pânico crescer em mim. Me movimentei fazendo o mínimo de barulho que consegui. Senti minha respiração acelerar.
Me dirigi para a escada de incêndio com a intenção de voltar para o andar do meu quarto o mais rápido possível. E ouvi passos ecoando na escada. Quem quer que seja estava na escada! A adrenalina tomou conta de mim e saí correndo para fora do prédio. Corri alguns minutos na neve fofa antes que a razão voltasse ao meu cérebro. Com medo de ter sido seguida, me escondi atrás de uma árvore. Longe o suficiente para ver a entrada do prédio, me sentindo idiota por ver minhas pegadas na neve. Tirei a mochila, escondendo-a na árvore, caso precisasse me defender. Sem ver ninguém na entrada do prédio, apaguei minhas pegadas à distância, atenta a qualquer movimento. Fiquei ali, recuperando o fôlego, olhando fixo esperando ver um perseguidor, mas ninguém apareceu.
Quem poderia ser? Será que mais alguém tinha voltado para o prédio? Mas eu não senti ninguém antes. Só que o prédio era enorme, se a pessoa tivesse ficado nos andares de baixo eu não sentiria mesmo. Não era como se eu estivesse procurando antes. E pode ser uma daquelas pessoas que eu não sinto naturalmente. Fora que eu não sabia o alcance da minha habilidade depois de.. Quanto tempo mesmo? Senti vontade de voltar para o prédio, mas correr para fora do prédio revelou minha presença e me deixou em desvantagem. Que burra que eu fui!
Fiquei cerca de uma hora escondida, tentando criar coragem para voltar. Foi então que vi um grupo de pessoas caminhando na direção da entrada do prédio. Eles pareciam humanos, mas tinham caudas, várias caudas, bem peludas. E orelhas. Puxei da memória onde já tinha visto esses seres e lembrei uma lenda de quando estive no Japão. Usamos essa referência para vender joias da linha teen. A cada ano lançamos uma coleção especial, inspirada em jogos, lendas e viagens. Kitsunes. São populares em jogos e tem origem em lendas japonesas. Encarei os seres que personificavam o mito de uma coleção de pingentes que desenhei na Terra. Um deles se destacava, em posição de liderança. Eu não conseguia ver detalhes, mas eles pareciam usar pouca roupa.
Será que eles eram confiáveis? Eles poderiam me ajudar. Era a melhor oportunidade que eu tinha desde minha chegada a esse lugar. Mal tinha começado a me levantar quando ouvi a mesma voz feminina de antes:
"Fique escondida."
Fiquei paralisada. Era a segunda vez que ouvia essa voz me alertando. O que ela significava? Olhei em volta e novamente não vi ninguém. Tensa, me lembrei do portal, e do que acontecia com os objetos. Essa voz tinha me alertado para evitar o portal. Mesmo frustrada, me agachei novamente. Estava olhando aqueles seres quando ouvi um som singular. Pareciam... Asas... E gritos. E foi então que vi.
- Um verdadeiro dragão...
Ele parecia os dragões florais no formato, mas imensamente maior. Olhei num misto de espanto e admiração a criatura mais majestosa e amedrontadora que eu já tinha visto na vida. Ao contrário dos dragões florais, esse parecia ser feito de gelo e músculo. Quando a luz batia em suas escamas e asas, era refletida exatamente como o gelo refletia. Um espetáculo da natureza. Ele voou para o céu e fez piruetas. Eu escutei gritos vindo de sua direção. Ele gritava como… seres humanos, o que era bizarro.
Para minha surpresa o dragão veio na direção do hotel e pousou de forma suave no chão. Ainda assim, era um dragão enorme, e senti a vibração do seu pouso transmitida pelo solo. Enquanto sentia o tremor causado pelo seu pouso, em um instante eu encarava o dragão pousado diante dos kitsunes. No outro, o solo abaixo dos meus pés começou a ceder.Coleção de Joias Contos Ancestrais Japoneses - Kitsunes
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PDV Elise
Emaranhada em neve, encarei minha situação tentando controlar o desespero e medo. Com o coração a mil, estava presa em raízes de árvores que haviam impedido minha queda em um precipício. Eu havia notado que a neve no local era fofa, mas não… Isso! Como raios aquelas árvores não despencavam? Algum tipo de engenharia natural mantinha aquelas árvores estáveis, mas elas eram uma verdadeira armadilha!
- Esse lugar quer me matar. Ou me salvar? Tem alguém brincando de jogar dados com a minha vida é?
Devagar, fui testando cada raiz. Umas quebravam me causando um mini ataque cardíaco. Mas a maioria era surpreendentemente firme e segura. Fui subindo o espaço que separava minha segurança do precipício mortal. Vi a luz do dia reduzindo rapidamente no final da minha jornada. Senti que lágrimas começaram a rolar pelo meu rosto. Eu já tinha chorado mais nesses dias que em toda minha vida.
O medo de morrer crescia como um verme em mim, me devorando por dentro. Eu nunca mais veria neve e gelo da mesma forma. Nunca mais. Quando cheguei no topo, tive ainda que me arrastar, deitada sobre as raízes agora expostas, até alcançar o solo firme. A lua brilhava no céu iluminando o pouquinho que faltava para sair daquela armadilha. Quando terminei minha jornada não me preocupei em não ser vista. Obviamente havia mais em jogo. Além disso, não havia ninguém ali.
Com a mochila, que tinha mais sorte do que eu, voltei de mansinho para o prédio. Graças às luzes que ele ainda irradiava erraticamente, era fácil achar o rumo de volta. Escutei barulhos estranhos e evitei olhar para os lados. Eu já tinha feito aquilo antes. Eu podia fazer novamente. Podia sim. Não havia sinais do monstruoso dragão de antes, para meu alívio. Eu não forraria o estômago de um dragão, mas daria um petisco. Dragões eram carnívoros, tenho certeza. Bastava uma busca na minha memória por livros, filmes e lendas, e em todas, os dragões eram bestas carnívoras. O topo da cadeia alimentar. Como eu havia me metido nisso?
Chegando na entrada vi, desolada, que havia uma fogueira no hall. Droga. Deviam ser os kitsunes. Achei que eles tinham fugido quando o dragão pousou! Um dragão comeria kitsunes tão pequenos, não comeria? Desejei que tivesse comido. Seriam os dragões domesticados? Como na animação da Pixar ou na série Game of Thrones? Não importava agora. Eu precisava achar um meio de entrar. Lembrei da entrada de serviços. Comecei a rodear o prédio buscando outra entrada. Ainda bem que não havia tempestade essa noite... Achei outra porta, tentei forçar mas ela era resistente, e não podendo fazer barulho, desisti, pois ela só abriria por dentro pelo visto, e eu não tinha a chave. Só me restava a recepção.
- Que tipo de gente dorme na recepção de um prédio? Isso é o que? Apocalipse? Saiam da da recepção seus seres das cavernas... Usem as camas! - E xinguei mentalmente esse bando de neandertais.
Irritada, percebi que ou eu contrariava a voz que me recomendou não fazer contato com os kitsunes, ou eu iria dormir no relento gelado de novo. Arriscando uma pneumonia, ou pior. Senti minha barriga roncar. E eu estava com fome e sede. A sede eu resolvi pegando neve ao meu redor e colocando na boca. O que não mata engorda. Foda-se. A fome saciei com castanhas e chocolates, dos quais já havia enjoado, já o frio e o cansaço eram outra história. Não tinha muito o que fazer por eles.
Não estava nevando e a lua estava bonita no céu. Parecia minguante. Sempre gostei da lua. Por isso tatuei todas as fases dela nas costas, não apenas quatro, mas pedi a uma artista que ilustrasse fases intermediárias ao longo da minha coluna. A lua me fascina. Estava olhando o céu quando lembrei da escada de emergência!
- É isso! Aqui nos EUA a maioria dos prédios tem a escada no lado externo! Se eu der sorte...
Voltei a rodear o prédio e, para meu azar, não vi nenhuma escada do lado externo.
- Mas nos filmes sempre tem! - falei baixinho comigo mesma. Imediatamente dei um tapinha em minha própria testa. - Burra! Você já usou a porcaria da escada no primeiro dia.
Irritada comigo mesma e com os neandertais dos kitsunes na recepção do prédio que me impediam de entrar. Achei um canto no prédio e me pus a esperar. Não havia outras opções, havia? Mais uma noite exposta. Dessa vez eu não poderia dormir. Então tentei ficar acordada, sem muito sucesso. O dia clareou lentamente, e quando fui olhar a recepção, estava ansiosa mas não vi ninguém. Me esforcei para sentir alguma coisa, e percebi ansiedade, preocupação e… animação? Sério? Quem fica animado num lugar assim?
Entrei de mansinho. Decidi ir de elevador pois era mais rápido. Entrei sem pensar duas vezes. Respirei fundo e apertei o 61º, aguentei o tranco da viagem, e quando a porta abriu descobri que estava próxima, no 54º, não era onde eu queria, mas melhor que nada. Qual seria a lógica desse elevador doido? Assim que entrei no corredor, as portas do elevador se fecharam ao mesmo tempo que uma kitsune saiu do quarto à minha direita. Ela ficou de costas para mim, não parecia ter me visto. Olhando de perto as caudas dela eram espetaculares. Branquinhas e super fofas. Seu cabelo também era branco, assim como suas orelhinhas.
Tentando não chamar atenção, fui dando passinhos delicados para a porta de emergência próxima. Passo por passo. A tensão no máximo. Antes de atingir meu objetivo, a kitsune se virou, e me viu. Seu rosto parecia apático e tinha olheiras, e ela não esboçou nenhuma reação ao me ver.
- Quem é você? - ela me perguntou com uma voz quase mecânica.
- Eu... – comecei a responder, mas ela me interrompeu.
- Não importa. Você acha que eu sou tola? Eu sei o que você quer. E você não vai conseguir! – ela falou com raiva.
Então ela começou a falar coisas estranhas e eu vi o dragão gigante aparecer na minha frente, pronto para me devorar. Dei um grito e corri para longe, escadaria abaixo. Dessa vez eu não me importava com mais nada além de fugir daquele monstro que eu tinha certeza de que iria me devorar viva. Eu precisava fugir de qualquer maneira. Na pressa, bati contra alguém que com alguma habilidade impediu que ambos rolássemos escadaria abaixo.
- Pare! Não precisa fugir! – ouvi ele gritar, em um francês com sotaque carregado.
- O que está acontecendo? – ouvi outra voz perguntar, também em francês.
Estava cega de pânico e ainda meio desequilibrada, quando alcancei outro andar e já seguia para o próximo. Não sei como aconteceu, em um instante eu descia as escadas e no outro um par de braços me agarrou me tirando do chão. Gritei e esperneei. Comecei a chutar, mas a pessoa resistiu. Me sacudi inteira. Tinha a merda de um dragão dentro do prédio, por qual razão essas pessoas não estavam fugindo também? Tentei morder a pessoa e certamente arranhei.
- Calma, calma. - Escutei uma voz masculina dizer em francês.
- Me solta! Me solta! Eu vou te matar! – xinguei entre um chute e outro - Você nunca terá filhos! – percebi que era um homem então tentei acertar entre as pernas dele.
Ele me segurava firme e continuou tentando me acalmar. Mas agora ele usou português, meu idioma natal.
- Shhhh... Calma, calma. Tudo bem. Vai ficar tudo bem.
- Vai todo mundo morrer nesse lugar! Me solta agora!
Ele continuou tranquilo. Como se eu não estivesse xingando ele e todas as gerações anteriores e posteriores a ele. Mas conforme permanecia presa, acabei me acalmando e, aos poucos, minha mente começou a obedecer a seus comandos. Meu raciocínio voltou finalmente a concatenar as ideias: Como um dragão do tamanho que eu vi lá fora poderia estar dentro do prédio? Especialmente naquele corredorzinho minúsculo? Não fazia sentido nenhum.
- Mas nada nesse lugar faz sentido…
- O que foi? - me perguntou aquele que ainda estava me contendo.
- Não falei com você. Falei comigo. Desculpe. Esse lugar é estranho. Maluco. E está me enlouquecendo junto.
- O que aconteceu?
- Nada...
- Como quiser. Mas se você não contar eu não posso ajudar. Mas a escolha é sua.
Fiquei quieta. Era racional. Mas ao mesmo tempo, eles estavam com os kitsunes. Eu vi. E aquela voz tinha me dito para ficar longe dos kitsunes. E agora, eu estava com justamente com quem? Com os kitsunes. Grande Elise, parabéns! Mordi levemente os lábios para conter um palavrão.( ´ ∀ `)ノ~~☆’.・.・:★’.・.・:☆ Aviso de Tradução Automática das Fadas
A fadinha da tradução usou sua magia aqui e, deixou tudo em português pois não faria diferença na nossa história esses diálogos em francês. ♡( ◡‿◡ )(✿◠‿◠)ノ~~☆’.・.・:★’.・.・:☆Aviso de Revisão para Menores
A Fadinha Revisora de Conteúdo para menores usou sua magia aqui e removeu palavrões e conteúdos impróprios. Ela fará o mesmo em toda a história. Se quiser ler o conteúdo sem a revisão da fadinha, vá no Wattpad da Autora.Tradução da Música Rise, Katy Perry
Erguer
Eu não vou apenas sobreviver
Oh, você me verá triunfar
Você não pode escrever a minha história
Estou além do arquétipo
Eu não vou apenas me conformar
Não importa o quanto você me desestabiliza
Porque as minhas raízes são profundas, oh
Oh, você aí, de tão pouca fé
Não duvide, não duvide
A vitória está em minhas veias
Eu sei, eu sei
E eu não vou negociar
Eu vou lutar, eu vou lutar contra isso
Vou me transformar
Quando, quando o fogo estiver novamente em meus pés
E os abutres começarem a rodear
Eles estarão sussurrando: Seu tempo acabou
Mas ainda assim eu me erguerei
Isso não é um erro, nem um acidente
Quando você achar que suas garras me pegaram, pense de novo
Não se surpreenda, eu ainda me erguerei
Preciso ficar consciente
Em meio à loucura e ao caos
Então eu chamo meus anjos
Eles dizem
Oh, você aí, de tão pouca fé
Não duvide, não duvide
A vitória está em suas veias
Você sabe, você sabe
E você não vai negociar
Apenas lute, lute contra isso
E seja transformada
Porque quando, quando o fogo estiver em meus pés novamente
E os abutres começarem a rodear
Eles estarão sussurrando: Seu tempo acabou
Mas ainda assim eu me erguerei
Isso não é um erro, nem um acidente
Quando você achar que suas garras me pegaram, pense de novo
Não se surpreenda, eu ainda me erguerei
Não duvide, não duvide
Oh, oh
Você sabe disso, você sabe disso
Ainda me erguerei
Apenas lute, lute contra isso
Não se surpreenda, eu ainda me erguerei
.。.:*☽*12 - Lance e Mateus*☾*:.。.
Spoiler do Episódio NE06
PDV Elise
- Você fala português? - perguntei e em seguida entendi que questionei o óbvio - e você poderia me soltar, por gentileza? Eu já me acalmei.
- Claro - respondeu ele abrindo os braços, e finalmente me colocando no chão - e sim, eu falo português e alguns outros idiomas.
Dessa vez notei o sotaque carregado dele sem reconhecer de onde era.
- Obrigada por me acalmar. - menti descaradamente me virando para ele. Precisava fingir que estava tudo bem até achar uma maneira de fugir deles.
E primeiro preciso ver o inimigo. E que inimigo. Eu já vi homens bonitos, mas esse certamente está no topo do top 10. Ele é alto, muito mais alto que eu. Eu tenho 1,75. Mas esse homem, ele é enorme. Eu literalmente estou olhando os ombros dele. Subo o olhar e descubro que ele tem a pele morena dourada, lábios bem delineados, não muito finos nem muito grossos. Um nariz aquilino com duas cicatrizes que parecem antigas. Que sexy. E olhos de um tom de azul claro, que na hora me lembram o oceano. Olhos do oceano.
Seu cabelo é platinado, num tom azulado. Que exótico. Meu primeiro pensamento é que seja pintado. Mas então noto que sua sobrancelha, cílios e barba, que está por fazer, também são do mesmo tom. Um pensamento se insinua na minha cabeça quando eu desço o olhar pelo corpo dele... será que todos os pelos do corpo dele são assim? E que corpo. Ele parece gastar horas na academia o ou onde quer que ele malhe. Mesmo sob a pesada armadura dá para ver que ele é malhado.
Armadura? Caramba, ele está usando uma armadura! Ou pelo menos uma espécie de armadura em tons de azul, preto e prata. É muito bonita e bem-feita. E ele tem uma espada gigante em um formato que eu nunca vi num lado da cintura e no outro lado, uma adaga. Acho que assim que se chamam essas armas. Subo meu olhar e vejo que ele está com uma expressão definitivamente curiosa e divertida. Me dou conta do que estou fazendo e fico sem graça. Penso rápido numa desculpa.
- Você tá usando uma armadura? - pergunto descrente que consegui finalmente formular uma frase coerente. Obrigada anos negociando.
- Sim.
- Cosplay de que? - falei na pressa. Me parece óbvio que seja um cosplay.
- Cos o que?
- Cosplay. Você tá fazendo cosplay, né?
- Cosplay? O que é um cosplay?
Arregalo os olhos. Como assim o que é um cosplay? É o que ele obviamente está fazendo. Ninguém se veste assim em o que? 200 anos? No mínimo. E esse tipo de espada nunca existiu na história da humanidade. Estou pronta para responder quando olho o outro homem que estava com ele. Ele parece bem mais novo. O platinado parece ter em torno de 30. O outro parece ter 20 e poucos anos. É moreno, um pouco mais baixo que o platinado, com olhos e cabelos castanhos escuros. Bonito mas bem menos que o platinado.
Ele também está com uma armadura e uma espada gigante. A maior parte da sua armadura tem tons vermelhos, dourados e prateados. Mas sua armadura tem uma bota diferente da outra. A bota diferente é dourada com detalhes em azul, além de ter bico fino. Ele está com um casacão pesado meio aberto, mas com certeza é um casacão quentinho. Se eu pudesse roubar ele... E posso sentir claramente que ele está preocupado, tenso, curioso e se divertindo. É dele a animação que eu senti antes. Tenho certeza.
- Vocês se vestem assim no dia a dia por aqui? - pergunto olhando o moreno.
Ele claramente não me entende. E o platinado me responde.
- Ele não fala português. E estamos em uma missão, por isso estamos vestidos assim.
- Missão? Que missão? Me desculpe, mas qual seu nome?
- Eu que peço desculpas pela falta de educação. Meu nome é Lance, esse é o Mateus. E você?
- Elise. Muito prazer.
- Então Elise, o que é cosplay?
Meu Deus! Ele quando agarra uma informação parece um cão com um osso! Larga isso!
- Nada não. Só uma expressão.
- Hum... - ele semicerrou os olhos na minha direção e ficou em silêncio. - Do que você estava correndo?
Refleti antes de responder. Decidi que mesclar verdade e mentira seria inteligente da minha parte. Ocultaria a parte de ter dormido no relento fugindo deles, mas diria a verdade sobre a kitsune. Ela deveria ser amiga deles, certo?
- Eu estava indo para o meu quarto, pois escutei barulhos estranhos no prédio. Então cruzei com uma mulher que tinha rabos fofos, cabelos longos e orelhas de raposa, tudo branquinho. Ela parecia uma kitsune, como aquelas lendas. Ela me perguntou quem eu era, depois disse que não importava, que ela não era burra e sabia o que eu queria. Disse palavras estranhas, e então eu vi um dragão enorme de gelo, como aquele que eu vi ontem lá fora, e ele ia me devorar viva! Eu morri de medo e saí correndo. E bom, você sabe o resto da história.
Ele me olhou de uma maneira que eu não entendi o que se passava na cabeça dele. Então trocou um olhar que parecia ter algum significado com o moreno. Senti a preocupação do moreno subir.
- Onde ela estava?
- No 54º andar.
- Venha conosco.
- Ok. - respondi hesitante. Mas que opção eu tinha. Olha o tamanho das espadas desses dois malucos! E olha o tamanho deles.
E lá fomos nós subir escadas de novo.
- Podemos ir de elevador. - sugeri - ele é um pouco maluco mas dá para o gasto.
- São apenas 5 andares, - respondeu o platinado - e eu não gostei desse tal de elevador.
- Certo. – respondi desanimada com a ideia de subir as escadas. Eu estava com fome e não tinha dormido.
Pensei em ficar para trás e fugir deles, mas enquanto o Mateus foi na frente, o tal do Lance seguiu ao meu lado, acompanhando meu ritmo lento. Subimos em silêncio. Cansada, com fome e depois de uma noite mal dormida, eu definitivamente subi como uma velha de 80 anos aqueles cinco andares. Pude sentir a ansiedade do tal do Mateus me espiando de rabo de olho, mas ignorei ele. Quando finalmente chegamos no 54º andar, o Lance falou em francês com o Mateus e fingi não entender.
- Vasculha o andar, veja se a Koori ainda está aqui. Vou ficar aqui com a Elise. Ela parece terráquea, não?
- Vou olhar. E sim, ela parece. E parece cansada demais para cinco andares. Será que está doente?
- Não sei. Ela parece pálida e desnutrida. E muito magra. Eu te espero aqui, com ela.
Fiz minha melhor cara de quem não tinha entendido nada.
- O que foi, nós não vamos entrar?
- Não. O Mateus pode ir sozinho. Pela sua descrição, a mulher que você encontrou é a Koori, nossa companheira de missão. Ela não deveria estar sozinha. Nem deveria ter te assustado.
- Me assustado? Como assim?
- Você acha que um dragão cabe dentro de um prédio?
- Hum. Eu vi dragões florais lá fora. E eles cabem aqui dentro.
- Dragões florais? - Ele me encarou claramente confuso.
- Aqueles com flores nas asas, rosadinhos. São fofinhos e lindos.
- O nome é Draflayel. Mas dragão floral combina também. - ele disse com um sorriso. - Mas não foi um draflayel que te assustou.
- Não. Foi o que eu vi ontem. Ele era enorme.
- Esse dragão que você viu ontem, ele caberia aqui dentro?
- Não. Mas eu não sei o que aconteceu. E coisas estranhas acontecem aqui. Eu vi um gato com asas!
Lance sorriu com um ar condescendente que me irritou.
- Koori tem habilidades especiais. Ela sabe conjurar magia. Especificamente ilusões. E ela é muito boa nisso. - ele falava isso me observando atentamente - normalmente ela não faria isso com alguém desarmada e aparentemente não agressiva. Então algo aconteceu para ela ter te atacado.
- Espera. Volta um pouco. – imitei o barulho de uma fita rebobinando - Você disse... Magia?
- Sim. Você morava nesse prédio?
- Não. Eu estava hospedada aqui. Ninguém mora nesse prédio, Lance. Dã. É um prédio comercial. A maior parte são escritórios. Os últimos andares são um hotel recém-inaugurado. Era onde eu estava. Uma hora tudo começou a tremer, as luzes piscaram. Parecia um terremoto. Um minuto estávamos em Chicago. Em outro, nesse lugar cheio de neve. Mas como assim, magia? Magia, magia? Fadas, Merlin, sapo virando gente e vice-versa?
Eu falei numa avalanche de informações. Há dias não tinha a chance de falar. E Lance me olhava curioso.
- Sim, magia. Sim, fadas. Merlin, mas não como você imagina. Não sei se é possível transformar uma pessoa em sapo e vice-versa. E Elise, você percebeu que não está mais na Terra, certo?
Arregalei os olhos para ele. Ele tinha feito. Encostei na parede. Fechei os olhos. Respirei fundo. O que eu não tinha feito até agora. Aquele ser desprezível tinha acabado de fazer. Como ele podia ter feito isso? Eu decidi que o odiaria a partir daquele segundo.
.。.:*☽*13 - Koori, Leiftan, Nevra, Erika e Edgard.*☾*:.。.
Spoiler do Episódio NE06
PDV Elise
- Não fala. Se você fala, você torna real... - pedi baixinho.
- A realidade é o que é, independente dos seus desejos. - respondeu Lance.
- Não estrague a filosofia também.
Abri os olhos. Tarde demais. Ele já tinha estragado meu sonho de isso ser apenas um pesadelo do qual em algum momento eu iria acordar. Agora, o peso da realidade não poderia mais ser evitado nem nos meus sonhos. Olhei aqueles olhos azuis e já não o achei tão bonito assim. Como ele ousava estragar minha ilusão? Babaca.
- E onde eu estou? - percebi que tinha raiva na minha voz.
- Em Eldarya. - ele respondeu educado. Se percebeu a raiva na minha voz, ele ignorou completamente.
- Eldarya?
- Sim. Um mundo diferente. Ligado à Terra. Todos nós viemos da Terra. Mas não estamos mais lá.
- Esse lugar tem um jeito agradável de dar boas-vindas. – falei em um tom mais amargo que eu esperava.
Ele me olhou de um jeito, que me fez desviar o olhar. Forcei minha habilidade, rebelde, e nada. Não senti nada. Cadê minha habilidade quando eu preciso dela? O que aquele ser odioso estava sentindo? Me preparei para dar uma resposta grosseira quando o Mateus voltou.
- Ela não está aqui.
- Então vamos subir.
Lance me olhou e repetiu a frase para mim em português. Concordei e subimos mais um andar. Lance permaneceu o tempo todo do meu lado. Quase um passo atrás do meu. Já na porta desse andar vimos a kitsune, Koori, com um outro homem. Os dois conversavam, ele parecia acalmar ela. Conforme nos aproximamos, ele entregou um saco para o Lance e continuou conversando com ela baixinho. Podendo observar com calma, pude ver que ela era um escândalo de tão linda. Sua roupa era branca e azul claro com detalhes dourados e moldava seu corpo perfeito de uma maneira sexy. Ela tinha uma espécie de cajado com um lindo apanhador de sonhos. Ela não sentia frio?
Voltei meu olhar para o homem com ela. Qual é? Os homens aqui têm como pré-requisito ser um escândalo de lindos? Mesmo com raiva, conseguia apreciar aquele novo pedaço de mal caminho. Ele tinha longos cabelos loiros com curiosas mechas negras, e seu cabelo estava preso numa longa trança desde a nuca. Ele também era bem alto, mas seu corpo era mais magro que o de Lance, embora seus braços revelassem músculos bem delineados, e seus gestos tivessem uma elegância que parecia nata. Seus olhos verdes me notaram com curiosidade, mas ele estava atento à conversa com a Koori. Sua roupa era bem clara com detalhes em tons de verde, azul marinho e uma calça marrom. Lance tocou meu ombro, chamando minha atenção.
- Esse é o Leiftan, e aquela é a Koori. Foi ela que você encontrou mais cedo?
- Sim. - Confirmei.
Então olhei para o Leiftan e analisei suas roupas e depois as da Koori. Nenhum dos dois parecia decentemente vestido para o frio infernal que fazia. Eu e o Mateus estávamos com casacos. Obviamente o Mateus era o mais aquecido e senti inveja dele novamente. Mas com exceção dele, todos os outros não pareciam estar nada cobertos. Perguntei impulsivamente para o Lance.
- Vocês não sentem frio?
Ele me olhou. Percebi que ele estava pensando antes de responder.
- Alguns de nós sim, como o Mateus. Mas a maioria tem uma resistência alta para o frio.
- Como assim, resistência ao frio?
- Exatamente como eu disse. A Koori é uma kitsune, e nasceu nesta região. Ela está completamente adaptada ao clima, por exemplo. Você não tem mais roupas de frio?
- Não muitas. Essas são minhas mais quentes e eu estou com 3 camadas de roupas. Eu não achei nada melhor. Apenas cobertores, mas eles não são muito bons em manter calor.
- Você esteve lá fora?
- Sim. - respondi curta e seca. Não quero falar disso.
Parece que ele entendeu.
- Você sabe onde tem algum cobertor extra para você? Vamos pegar. Você precisa permanecer aquecida. Você quer comer?
Meu estômago doeu diante da menção de comida. Sim, eu estava faminta. Especialmente se fosse por algo além de chocolate e castanhas. Fiz que sim com um gesto de cabeça e Lance abriu a mochila e me entregou um sanduíche.
- Aceita? Está frio, mas não temos como esquentar...
- Aceito sim. – respondi, rápida demais para a boa educação. - Não importa a temperatura… É melhor que chocolate e castanhas, com certeza. Obrigada.
Tentei ser educada e não uma ogra como eu queria ser e abri o sanduíche devagar para comer. Cheirei desconfiada pois eu sou alérgica a frutos do mar. Mas ninguém leva sanduíche de camarão numa "missão" na mochila, né? Camarão estraga fácil. E pelo cheiro não é camarão. Então mordi e, que delícia! Mesmo frio esse sanduíche é um espetáculo de bom.
- É... muito... bom... obrigada...
- De nada.
- O Nevra tá no último andar com a Erika e o Edgard. - avisou o Leiftan - melhor encontrarmos ele lá.
Concentrada no sanduíche, e sem pensar nada eu respondi mesmo de boca cheia:
- Vamos de elevador, eu não quero subir tantos andares. Por favor.
Surpresos, todos me olham. Lance me olha desconfiado.
- Então você fala nosso idioma?
Só nessa hora percebi que falei em francês. Droga. Estraguei meu disfarce. Estava distraída comendo o sanduíche delicioso. Tudo bem que o francês deles é carregado e diferente do meu, mas ainda assim consigo entender eles. E não estou a fim de subir até o último andar pela escada. E esse Lance parece decidido a ir de escada. Dei de ombros diante do meu ato falho.
- Desculpa. Eu... sim, eu falo. Não é meu idioma nativo, mas eu entendo bem.
- Ótimo. Isso facilita as coisas. – ele pareceu pensar por alguns momentos, me encarou e então decidiu. - Vamos no elevador.
Todos obedeceram ao Lance, o que me faz pensar que talvez ele seja algum tipo de líder. Antes ele falou com o Mateus e ele também o obedeceu prontamente. Segui no final do grupo com o Lance ao meu lado, comendo o sanduíche maravilhoso tentando ser discreta. Mateus foi na frente. Leiftan e Koori no meio. No elevador, ele nos leva direto para a cobertura sem surpresas, sem pressa. Parece até um elevador comum. Quem diria que ele seria educado.
Chegando no último andar consigo sentir claramente novas emoções. Frustração, ansiedade, medo, tristeza. Assim que olho reconheço a fonte. No corredor está um homem que parece bem comum. Mais ou menos da minha altura, ele tem olhos e cabelos castanhos, um pouco mais claros que os do Mateus. A barba por fazer de alguns dias. Ele está usando calça social escura, blusa social azul e um cobertor xadrez marrom. Suas roupas estão bem esfarrapadas. Ele tem cara de que veio da Terra comigo. E está encarando um quarto que eu conheço bem.
- Cuidado com esse quarto!
Viro para o Lance e digo para ele em português, pois esse é meu idioma natural.
- Tem uma espécie de portal naquele quarto. Avisa seus amigos.
- Você mesma pode explicar, Elise. - Lance me lembrou, em francês.
Percebi que estou sem contato humano há tempo demais, já estou meio desajeitada. Entro no quarto desconfiada e vejo mais duas pessoas. Mesmo que eles sejam maus, o que não confirmei até agora, ninguém merece o que aquela coisa faz. Eu seria um monstro se permitisse que alguém passasse por aquele portal.
- Por favor, não passem por esse portal – e apontei para o portal que o casal que vi ao chegar analisava. – Ele é bonito e atrativo. Mas é maléfico. Se você entra ali, coisas estranhas acontecem.
Depois de falar, observei a mulher morena. Ela tinha cabelos castanhos e olhos violetas expressivos. Sua roupa parecia bem quentinha, era marrom e azul. Parecia ser uma espécie de armadura feminina, com saia, botas e luvas peludinhas e um pelego maravilhoso. Logo em seguida vi um homem de cabelos negros a me encarar com um par de olhos cinzas. Que homem lindo. Por um segundo, esqueci completamente de respirar. Ele estava agachado e então se levantou lentamente com os movimentos de um felino.
- Vou repetir a pergunta, como você sabe disso?
Foi aí que eu percebi que eu não tinha ouvido ele falar da primeira vez. E agora ele estava me olhando de uma forma inquisitiva, analítica e quase ameaçadora.
.。.:*☽*14 - Problemas Internos *☾*:.。.
PDV Mia
A sombra circulou por dois dias e acabou se aproximando de um grupo particular. Um grupo religioso, discreto, educado. Um senhor e uma senhora muito gentis, dois caminhoneiros e um jovem que já era magro antes de tudo começar e agora começou a parecer doente. Eles sempre oram antes das refeições, antes de começar a trabalhar e quando terminam. Admiro a fé deles. Sempre educados, sempre gentis. Mas hoje, eu e todos os demais tripulantes da balsa encaramos assustados quando eles começaram o dia de trabalho orando especialmente alto, quase gritando, com o Sr. Gonzalez se destacando como um líder.
Me chamou atenção que a sombra se alternava entre os membros do grupo, ia até outros membros da tripulação, mas parecia descansar sobre os ombros do Sr. Gonzalez. A cada hora do dia as orações se tornavam mais ostensivas, e conforme poucos dias passaram, também se tornaram mais longas e frequentes e, estranhamente, novos adeptos se somavam ao grupo. Não me passou despercebido que os novos adeptos eram especialmente envoltos pela sombra.
- Claude, tem alguma coisa errada.
- Eu sei. O Capitão pediu que eles sejam mais discretos e respeitem as crenças dos outros, mas isso piorou e tornou eles ainda mais chamativos, como se fosse um desrespeito pedir que eles respeitem outras crenças.
- Não, eu digo. Lembra que eu falei que, às vezes, eu vejo sombras nas pessoas?
Claude me olhou de um jeito interrogativo.
- Eu vi uma sombra se aproximando do Sr. Gonzalez e seu grupo de orações antes de tudo começar e agora, essa sombra fica indo a outros membros da tripulação.
- Tem certeza?
- Sim.
- Você acha que essa sombra está influenciando as pessoas?
- Eu não tenho ideia... Mas depois de tudo que vimos, eu não posso considerar uma coincidência.
- Você já viu isso acontecer antes, Mia?
- Eu nunca parei para reparar... – disse um pouco culpada.
- Tudo bem, não tinha como imaginar. Quem iria imaginar essas coisas? - Ficamos olhando o grupo. - E você sabe como impedir isso?
- Não tenho ideia...
Aquilo começou pequeno, mas rapidamente, rápido demais para ser natural, quase toda a tripulação começou a orar várias vezes por dia, com os membros daquele culto fazendo vigílias religiosas ao longo de vinte e quatro horas. No oitavo dia desde que a sombra surgiu, começamos a ouvir o discurso de que o que estamos passando é punição por nossos pecados. Que somos pecadores e precisamos ser punidos, por isso o martírio que enfrentamos. E que devemos ter fé, e enfrentar pacientemente o suplício.
Usualmente não sou religiosa, embora tenha grande fé. Fé em algo maior que eu, mais sábio. Apenas não sou adepta de cultos religiosos. Claude simplesmente viveu coisas demais para acreditar nas religiões dos homens. No início da quarta semana o culto começou a tomar ares um pouco assustadores já que as pessoas começaram a se imolar, batendo em si mesmas com cintos, cordas e varas. Nada severo, mas ainda assim, chocante de ver.
- Não saia mais de perto de mim, Mia. – vejo a expressão severa no rosto do Claude.
- Certo.
- É sério. Essas pessoas me preocupam.
- Eu sei, eu também estou preocupada.
.。.:*☽*15 - Aprendendo a Lutar *☾*:.。.
PDV Mia - 7 anos atrás.
Valkyon estava sempre ao meu lado. Me ajudou a recuperar a força do meu corpo, exploramos juntos as terras de Memória até o limite do mar, onde as ondas mornas lambiam meus pés com suavidade. Conheci ao seu lado outros dragões, mas não me lembro dos nomes e rostos. Eu os vejo voar e, às vezes, Valkyon me leva para dentro de um santuário, onde vejo locais sagrados dos quais nunca me lembro. Ele diz que quando for a hora certa eu me lembrarei. É difícil para uma pesquisadora aceitar uma memória tão ruim. E a ironia é que eu esteja em um lugar chamado Memória?
- Por que é assim, Valkyon?
- Não sei.
Joguei uma pedrinha nas ondas do oceano, inacessível para mim. O mar era zona proibida para minha alma. Valkyon não era falante, na realidade era bem calado. Mas não me incomodava. Nosso silêncio era sempre confortável. Ele não parecia saber muito mais do que eu. Ainda assim, o que ele sabia me dava sede de conhecimento. Especialmente por saber que ele se repetia e eu seguia me esquecendo. Suspirei profundamente observando os lindos draflayels voarem, livres para ir e vir de Memória.
- Está na hora de começarmos a treinar você.
Encarei seus olhos dourados, sempre tão calmos, com curiosidade.
- Me treinar?
- Sim. Você já está saudável, com a mente ágil. Está na hora de ocupar suas horas.
- Mas o que vamos treinar?
- Vou ensiná-la a lutar.
Sorri divertida.
- Eu sou uma professora universitária, não pretendo lutar com nada além papel e caneta. Ou numa versão mais atualizada, arquivos e dados.
- É sempre bom saber se defender. - Ele se levantou, estendendo a mão em seguida.
Encarei ele curiosa e confusa.
- De que serve treinar minha alma?
- Sua mente se lembrará dos treinos, saberá como se defender.
- Eu sou contra a violência, Valk. - Falei com uma careta.
- Excelente. Todos a favor da violência deveriam ser proibidos de treinar qualquer tipo de luta.
Ele alongava o corpo forte e bem treinado. Decidi que se o tivesse conhecido enquanto vivos, eu teria me apaixonado fácil por ele. Me toquei novamente que, com certeza ele tinha "ouvido" e me senti levemente desconfortável, mas, já estava me acostumando com essa nova realidade. Percebi que ele continuava me encarando, esperando uma ação minha.
- Agora?
Ele sorriu um sorriso bonito e divertido.
- A melhor hora é agora. Você disse isso antes.
- Eu disse? - Não me lembrava de ter dito. Mas costumava falar isso para meus alunos.
Valkyon não me respondeu e seguiu para uma área aberta, onde começamos seu treinamento. Eu era um desastre completo quando se tratava de qualquer exercício físico, mas agora, surpreendentemente, eu estava me saindo bem. Era por ser minha alma? Valkyon me fez caminhar, trotar, correr em diferentes ritmos e posições. Me ensinou a posicionar meu corpo, a agachar, rolar no chão, ser silenciosa. Também começamos a treinar luta corporal, iniciando por defesa pessoal.
- Existem três reações básicas na natureza ao encontrar um oponente, Mia. Você sabe quais são? - Valkyon me perguntou um dia, e eu neguei com a cabeça. - Fugir, fingir de morto e enfrentar. Qual você acha que é melhor?
- Fugir! - Respondi rápido e rindo.
- Excelente. A maioria dos animais prefere evitar o confronto. É desgastante e perigoso. Fugir, ou evitar o confronto, é sempre a melhor opção. E qual a segunda melhor?
Dessa vez ele me pegou. Eu não sabia. Refleti um pouco mais para tentar responder.
- Enfrentar?
- Por que?
- Eu pensei que… fingir de morto me deixa muito exposta ao outro. Não me deixa nenhuma chance de defesa. E eu não sou boa em fingir. Então enfrentar é minha segunda opção.
- Muito bem. Alguns animais são muito bons em fingir de morto, e são capazes de deixar pedaços de si para trás como isca enquanto fogem. - Imediatamente lembrei de lagartixas. - Mas eu e você não regeneramos pedaços e, assim como você, eu também não sou bom em fingir. Então enfrentar acaba sendo nossa segunda opção.
Valkyon ficava mais falante quando ensinava. Nosso treino iniciou focando em formas de fugir. Haviam técnicas diferentes para escapar de um oponente mais rápido, mais forte, maior, até mesmo se eu estivesse presa. Conforme o tempo passava, eu ficava cada vez melhor em escapar e evitar o confronto. E logo os treinos começaram a incluir formas de enfrentamento.
- A primeira regra de combate que você precisa entender, Mia: a vida não é justa.
Valkyon falou isso após terminarmos um dos treinos, eu estava exausta e ele iniciou um ataque, me pegando desprevenida. Ele me prendeu e eu não consegui me soltar. Seu braço prendendo meu pescoço imediatamente me levou de volta à minha infância, e as memórias dolorosas me fizeram começar a debater, chorando. Rapidamente a prisão se tornou um abraço gentil e aconchegante.
- Desculpe. Não foi minha intenção trazer essas memórias à tona. - Valkyon disse gentil.
Mas eu não queria falar disso, então me desvencilhei dos braços dele e me afastei, tentando conter o choro. Ele me deu espaço e me deixou sozinha. Acabei em uma pequena cachoeira que caía em um pequeno e agradável lago. Molhei os pés na água do lago e me sentei na beirada. Abracei minhas pernas enquanto olhava as ondulações da água e sentia o ar fresco atingir meu rosto, umedecendo minha pele. Queria ter o poder de apagar partes da minha história.
- E então você deixaria de ser quem é.
Ergui o rosto ao ouvir a voz suave da mulher de branco e a vi calmamente sentada ao meu lado. Quando ela tinha chegado? Não importava. Virei o rosto novamente para o local onde a cachoeira encontrava o lago, agitando as águas calmas. Ficamos um longo tempo sentadas uma ao lado da outra.
- Talvez eu fosse uma versão melhor. - Falei com a voz baixa.
- Ou pior. - Ela me respondeu. - Nunca saberemos.
Um novo silêncio se instalou entre nós.
- Então eu devo só aceitar?
- Não.
- O que eu faço, então?
- Procurar ajuda. E quando encontrar, aceitar a ajuda.
- Eu não estou pronta. - Respondi enfiando o rosto em meus joelhos.
- Tudo bem.Tradução da Música "I Don't Want to Talk About It"
Eu posso dizer pelos seus olhos
I can tell by your eyes
Que você provavelmente esteve chorando para sempre
That you've probably been cryin' forever
E as estrelas no céu
And the stars in the sky
Não significa nada para você, eles são um espelho
Don't mean nothin' to you, they're a mirror
Eu não quero falar sobre isso
I don't wanna talk about it
Como você partiu meu coração
How you broke my heart
Se eu ficar aqui um pouco mais
If I stay here just a little bit longer
Se eu ficar aqui, você não vai ouvir meu coração?
If I stay here, won't you listen to my heart?
Oh, ei, coração
Oh, whoa, heart
Se eu ficar sozinho
If I stand all alone
A sombra esconderá a cor do meu coração?
Will the shadow hide the color of my heart?
Azul para as lágrimas, preto para a noite
Blue for the tears, black for the night's
Teme as estrelas no céu
Fears the stars in the sky
Não significa nada para você, eles são um espelho
Don't mean nothin' to you, they're a mirror
Eu não quero falar sobre isso
I don't wanna talk about it
Como você partiu meu coração
How you broke my heart
Se eu ficar aqui um pouco mais
If I stay here just a little bit longer
Se eu ficar aqui, você não vai ouvir meu coração?
If I stay here, won't you listen to my heart?
Oh, meu coração
Oh, my heart
Eu não quero falar sobre isso
I don't wanna talk about it
Como você quebrou esse velho coração
How you broke this old heart
Se eu ficar aqui um pouco mais
If I stay here just a little bit longer
Se eu ficar aqui, você não vai ouvir meu coração?
If I stay here, won't you listen to my heart?
Oh, meu coração
Oh, my heart
Meu coração
My heart
Oh, meu coração
Oh, my heart
.。.:*☽*16 - Eldaryanos *☾*:.。.
Spoiler do Episódio NE06
PDV Elise.
Engoli em seco e organizei meus pensamentos. Aquele moreno, o que tinha de bonito, tinha de agressivo. Pálido, alto, magro sem ser doentio, uma grande cicatriz no olho direito que me fez desconfiar que ele fosse parcialmente cego cego. Com sua aparência oriental, cabelos negros e lisos, roupas escuras, com referências que me lembram samurais japoneses, ele dominou o ambiente em segundos. Observei com calma o quimono com estampa preto, roxo e vermelho, e detalhes em amarelo que ele vestia, e vislumbrei uma longa espada em suas costas. Ele se porta como um líder. Um que não está satisfeito com minha demora. Encarei seus olhos com a mesma firmeza com que faço negócios, e decidi responder.
- Eu encontrei esse quarto dias atrás. Assim que vi esse... vou chamar de portal, por falta de conhecimento e melhor palavra para descrever. Pensei em voltar para a Terra já que, na ocasião, a TV estava ligada. - Encarei aparelho e indiquei com o dedo o aparelho desligado. Era mais doloroso do que eu imaginava. Pensar na minha vida na Terra. - Tudo parecia normal, mas eu já havia passado pelo suficiente, para ficar desconfiada. Isso e já assisti filmes o suficiente para imaginar alguns problemas com isso aí. - indiquei o portal com o queixo. - Somado a isso, eu tenho uma excelente intuição. E ela estava gritando para que eu tomasse cuidado com isso.
Quando eu disse isso, percebi que o Edgard se encolheu um pouco.
- Então decidi testar o portal. - Peguei o prato com meus testes. - Ao jogar o objeto pelo portal, ele desaparece por alguns segundos, e reaparece do outro lado, aparentemente, normal. Então eu puxei os objetos de volta, e o mesmo fenômeno aconteceu, mas ao chegar desse lado, nada estava normal. Veja esta caneta - Ergui a caneta puxando o cordão pelo lado que ainda era normal e exibi para o Nevra e depois para os demais, sentindo um mal estar ao ver o estado anormal do objeto. - Está mole como macarrão cozido ao ser puxada, mas ao ser empurrada, é resistente como metal, faz até barulho.
Incapaz de me controlar muito mais, larguei a caneta no prato e deixei o prato na estante.
- A mesma coisa aconteceu com o cordão, que parece vidro agora. E a saboneteira, meu segundo teste, parece um livro, todo fatiado. - Fiz uma careta para os objetos e encarei o Nevra. - É assim que eu sei que esse portal é perigoso. Não sei se ele existia no hotel antes de virmos para cá. Se é a causa de o hotel ter se transportado para cá. Nem se uma coisa não se relaciona à outra. Mas esse é o motivo dessa ser a única porta fechada na área do hotel. O que quer que isso seja, ninguém merece passar pelo que quer que isso faça. Seria cruel demais.
Nevra já não parecia ameaçador, e se virou para o Lance com um olhar inquisitivo.
- Essa é a Elise, Nevra. Encontrei ela agora há pouco, na escadaria. Ela encontrou a Koori antes do Leiftan conversar com ela. Elise estava no prédio quando ele se transportou para Eldarya. - Lance se virou para mim - Elise, esse é o Nevra, o líder da nossa missão. Ele é o segundo no comando da Guarda de Eel. Eu sou chefe da Guarda Obsidiana. Ao lado dele está a Érika, membro da Guarda Absinto, assim como a Koori e o Mateus. O Edgard, também estava no prédio como você, então imagino que você o conheça.
- Não, - respondi - não cheguei a conhecer ele.
- E-eu me lembro de você. Te vi sair com os outros, em busca de ajuda. - revelou o Edgard.
Todos me olharam, curiosos. Fechei os olhos lembrando daquela viagem e do grupo, que eu não sabia onde estava agora. Olhei pela janela encarando a neve enquanto respondia.
- Sim, é verdade que eu saí com o grupo. Mas eu me perdi... Teve uma tempestade de neve e me perdi. - Me abracei inconscientemente. - Tive que passar a noite lá fora, sozinha, esperando a tempestade passar. E quando o tempo limpou, eu não tive opção a não ser voltar para cá.
- Mirei o Edgar tranquila. - Mas não te vi aqui quando cheguei. E eu passei todos esses dias na área do hotel me recuperando. E depois eu achei que lá era mais seguro.
- Se recuperando? – Nevra olhou meu corpo, como quem procura sinais de machucados.
- Eu não sou esportista e caminhei quase um dia todo com o grupo, depois uma noite exposta e mais um dia caminhando para voltar. Eu cheguei aqui de madrugada, exausta e estava com queimaduras de gelo e bolhas nos pés. - Dei de ombros. - Quando cheguei aqui, eu estava tão cansada que só subi para meu quarto e apaguei. Não sei bem quantos dias passaram enquanto eu dormi. Mas agora estou bem.
Nevra não pareceu muito convencido, mas não falou nada. Lance não saiu do meu lado como se soubesse que eu planejava fugir a qualquer momento. Mateus tinha se aproximado da Erika e olhava o portal como se estivesse hipnotizado, analisando aquele cômodo.
- Nevra, posso me retirar com o Mateus? - perguntou a Erika - Se vocês não precisarem da gente, acho que um pouco de ar fresco nos faria bem.
O Nevra pareceu questionar com o olhar a Erika, que se explicou.
- Não, eu quis dizer no sentido de sair daqui e ficar entre humanos, observar os draflayels...
Humanos? O que ela quis dizer, entre humanos?
- Muito bem, vocês podem ir. Mas não se distanciem muito. - respondeu o Nevra - E fiquem atentos. Vamos embora assim que acabarmos aqui.
- Sim. E quanto mais cedo melhor. Vocês podem ir tomar um ar, mas voltem logo. - Complementou o Lance.
Observei a Erika, o Mateus e o Edgard partirem. Oi? O que eles quiseram dizer com humanos? Que a Koori não era humana eu tinha entendido, mas... Corri meus olhos no ambiente e então eu notei... O Nevra tinha orelhas pontiagudas como um elfo!
- Hã... O que vocês querem dizer com humanos? Vocês não são humanos? Você não é humano?
Nevra olhou para o Lance e, junto com a Koori, foi examinar os materiais e o portal. Lance me respondeu.
- Érika veio da Terra sete anos atrás. Mateus chegou há um ano. Você e Edgar, se nossas informações estiverem corretas, há pouco mais de três semanas... Mas de maneira geral, não existem muitos humanos em Eldarya. Na realidade, o esperado é que vocês sejam os únicos.
Sete anos atrás? Quando tudo enlouqueceu? Será coincidência? Espera. Ele falou três semanas?
- Está tudo bem? - perguntou o Nevra.
Mesmo trabalhando com a Koori, ele tinha percebido minha alteração. Não percebi que tinha ficado ofegante. Tentei responder e minha voz que saiu um pouco aguda demais até para os meus ouvidos.
- Apenas... Não me parece que estou há tanto tempo aqui...
Sentei na cama me sentindo estranha, aérea quase. Comecei a fazer as contas mentalmente. Não notei os olhares preocupados, nem ouvi o Lance me chamar. Estava de noite quando eu cheguei. Passamos a noite no primeiro andar. Um dia de preparação. Um dia de caminhada com o grupo. A noite na tempestade. Outro dia voltando para o prédio. Cheguei aqui de madrugada e desmaiei de cansaço. Faz três dias desde que eu acordei apenas. Isso dá um total de apenas 6 dias. Mas o Lance falou mais de três semanas? Eu teria que ter dormido por mais de duas semanas! É impossível.
Senti que meu cérebro entrou em uma espécie de espaço branco. Não pensei em nada realmente. Apenas olhei a neve pela janela, sentada em posição de lótus na cama. Depois deitei enquanto eles trabalhavam e fiquei ali. Minha mente parecia ter cansado de tentar entender as coisas e desligado. Senti meu corpo ser levantado rapidamente e, quando comecei a entender o que estava acontecendo, já estávamos no elevador, descendo.
- O que aconteceu? - perguntei confusa.
- Eu vi um grupo de batedores do Tenjin se aproximando. Não parece ser o exército dele, mas certamente nos causará problemas. Precisamos verificar e para isso, precisamos descer para ver melhor - explicou Nevra.
- Tenjin, quem é Tenjin? Exército? Enfrentar? Oi? Vocês vão lutar com um exército?
- Não se pudermos evitar. - respondeu o Lance.
Minha boca abriu, mas nenhum som saiu. Meu cérebro ainda estava em choque. O elevador abriu suas portas no terceiro andar. Lance e Nevra estavam na frente, deixando a mim, Leiftan e Koori atrás. Depois de confirmar que o ambiente estava seguro, nos deixaram sair. Koori sentou numa cadeira e fechou os olhos. Ela não parece estar bem. Leiftan se sentou perto dela. Acho que ele está de olho nela, para ser mais exata. Talvez para ela não usar a tal magia de ilusão. Lance estava mapeando as janelas, observando cada área. Enquanto o Nevra foi para a escadaria de emergência e ficava de olho nela e no elevador.
Me sentei próximo do Leiftan e tentei puxar papo para entender melhor o que estava acontecendo ali.
- Oi...
- Olá Elise. Como você está se sentindo?
- Hã... Bem, eu acho. Confusa, mas bem.
- Posso te ajudar?
- Sim. Quem é esse Teijin?
- Meu ex-marido. E se ele puder, vai matar todos nós. - respondeu a Koori amarga.
- Desculpe. - e fiquei em silêncio.
Leiftan me olhou como quem pede desculpas e depois olhou preocupado para a Koori. Será que era um daqueles casos de relacionamento abusivo? Ela era uma kitsune, será que o ex-marido dela também era? Isso explicaria o olhar vazio dela não? Eu também estaria assim se fosse perseguida pelo meu ex. E se ele quisesse matar todo mundo. Será que aquelas pessoas estavam ajudando-a a fugir do marido? Será que os kitsunes que a voz tinha me alertado estavam buscando-a?
Com essas perguntas em mente, vi a Erika, Mateus e Edgard chegarem. Com suas ansiedades, medos, tensões e adrenalinas a mil. Rapidamente o Nevra organizou a situação. A Erika chegou com um draflayel ferido que ele pediu que ela levasse para a Koori cuidar, o que a tirou do estado abatido. Lance também veio ver o draflayel. Em seguida o Leiftan foi até o Nevra, enquanto Mateus começou a relatar o que tinha ocorrido com eles no Terraço. Enquanto observava a Koori agir com rapidez no tratamento do draflayel ferido por uma... flecha. Ouvi o Mateus relatar o ataque de flechas que eles sofreram no terraço.
Observei o cuidado com que o Lance e a Koori cuidaram do draflayel. Ele acalmava o animalzinho ferido, o que me lembrou dele me acalmando quando eu estava apavorada e reforçou a imagem gentil dele que estava se formando na minha mente. Koori usou frascos com líquidos misteriosos, mas que pareceram eficazes no tratamento do draflayel, que se acalmou e pareceu ficar melhor. Se eu entendi bem, o ferimento tinha sido causado por flechas do exército do marido dela.
Ouvi então o Nevra nos avisar que desceria com o Mateus para analisar a situação e voltaria para nos chamar quando pudéssemos sair. Lance ficaria para nos proteger. Deveríamos ficar prontos para ir embora assim que ele nos chamasse. Olhei aquele grupo e estranhamente me senti segura com eles.
Depois de cuidar do draflayel ferido, Koori voltou ao seu estado sonolento. Leiftan voltou a sentar próximo dela, velando e cuidando da kitsune. O draflayel deitado em uma cadeira, enroladinho numa bola, nem parecia aquele dragão lindo que eu tinha visto voar antes. Lance se sentou ao lado dele, observando a entrada do salão, sua arma a postos. Edgard sentou contra um muro no canto da sala com os olhos fechados e pareceu dormir. Erika começou a mexer e brincar com os objetos do escritório.
Armaduras, espadas, adagas, flechas. Em que tempo essas pessoas estão? Idade média? E magia... Daqui a pouco vão me falar de alquimia a tudo mais. Agora tem um exército atrás vindo atrás deles e de mim por estar com eles. Eu não sou uma guerreira. E... será que posso ir com eles? Se eles estão salvando a Koori vou imaginar que eles são melhores que o marido abusivo dela. Suposições, suposições. Tudo que eu tenho são suposições e hipóteses.
Resolvi me aproximar do Lance, que até agora tinha sido o mais acessível de todos. Me sentei do outro lado da cadeira, olhei o pequeno draflayel.
- Você acha que ele vai sobreviver?
- A Koori acha que sim e eu não vejo por que não confiar nela. Mas ele vai precisar de tempo. A flecha atravessou a asa completamente... E visivelmente, as flechas dos kitsunes são feitas para fazer o máximo de dano possível.
- Dos kitsunes?
- Sim, foram eles que nos atacaram. O ex-marido da Koori.
- E vocês a estão protegendo dele?
- Se necessário, sim. Mas nossa missão é investigar o prédio, e entender como ele veio parar em Eldarya.
- E descobriram?
- Não. Mas coletamos informações. É o que podemos fazer no tempo que temos. Se os kitsunes fossem mais amigáveis, ficaríamos mais tempo investigando. Mas agora não será possível.
Fiquei olhando o draflayel. Eu queria confiar neles. Mas tinha visto os kitsunes, e em seguida eles chegaram. Era muita coincidência, não? Afinal, eles estavam ou não estavam com os perigosos kitsunes?Letra da Música Clocks - Coldplay
As luzes se apagam e eu não posso ser salvo
The lights go out and I can't be saved
Marés que eu tentei nadar contra
Tides that I tried to swim against
Você me colocou de joelhos
You've put me down upon my knees
Oh, eu imploro, imploro e imploro, cantando
Oh, I beg, I beg and plead, singing
Saia das coisas não ditas
Come out of things unsaid
Atire uma maçã da minha cabeça, e um
Shoot an apple off my head, and a
Problema que não pode ser nomeado
Trouble that can't be named
Um tigre está esperando para ser domado, cantando
A tiger's waiting to be tamed, singing
Tu es
You are
Tu es
You are
A confusão nunca para
Confusion never stops
Fechando paredes e relógios tiquetaqueando, vai
Closing walls and ticking clocks, gonna
Volte e leve você para casa
Come back and take you home
Eu não pude parar que você agora sabe, cantando
I could not stop that you now know, singing
Saia sobre meus mares
Come out upon my seas
Amaldiçoe as oportunidades perdidas, eu sou
Curse missed opportunities, am I
Uma parte da cura
A part of the cure
Ou eu sou parte da doença, cantando
Or am I part of the disease, singing
Tu es
You are
Tu es
You are
Tu es
You are
Tu es
You are
Tu es
You are
Tu es
You are
E nada mais se compara
And nothing else compares
Oh, nada mais se compara
Oh, nothing else compares
E nada mais se compara
And nothing else compares
Tu es
You are
Tu es
You are
Casa, casa, onde eu queria ir
Home, home, where I wanted to go
Casa, casa, onde eu queria ir
Home, home, where I wanted to go
Casa, casa, onde eu queria ir (você está)
Home, home, where I wanted to go (You are)
Casa, casa, onde eu queria ir (você está)
Home, home, where I wanted to go (You are)
.。.:*☽*17 - Uma Nova Jornada*☾*:.。.
Spoiler do Episódio NE06
PDV Elise.
Independente da resposta, acompanhar eles, era a melhor saída desse prédio. Ficar aqui, era morte certa. Então resolvi sondar o Lance.
- Posso ir com vocês? - perguntei.
- Com certeza, Elise. - Ele respondeu com segurança.
Respirei aliviada no mesmo instante que o draflayel se mexeu e atraiu nossa atenção. Ele bocejou? Que fofo! Ele começou a se movimentar e o Lance voltou toda a atenção para o pequenino. Ele parecia apreciar a movimentação desse bichinho. O draflayel se ajeitou e pulou no colo dele, se aconchegou e nos olhou com curiosidade. Pude ver um sorriso tímido no rosto do Lance. Feliz em saber que sairia daquele prédio, aproximei minha mão da cabeça do pequeno draflayel, como se faz com um cachorro, dando a ele a opção de escolher se afastar ou não da minha mão. Ele olhou minha mão por um instante, então esfregou sua cabecinha delicada na minha mão, e fez uns barulhinhos bonitinhos.
Rimos juntos, eu e o Lance. Não tínhamos visto a Érika se aproximar de nós. Mas o pequeno draflayel parou e a olhou nos olhos. Então ela falou para o Lance.
- Lance, acho que eu posso sentir o que esse draflayel quer. Como quando eu sinto o que o Leiftan sente. Na realidade acho que consigo entender o que ele pensa. E ele quer ficar com a gente. Na realidade com você.
Eu dei um pulo de susto. Ela também sente o que as pessoas sentem? Eu ia perguntar algo quando vi o Lance sorrir com sarcasmo.
- Claro, o mascote está falando com você. E ele te disse que gosta de mim. Você não acha isso é o que você quer ouvir?
- Eu não disse que ele gosta de você, somente que ele quer ficar com você. E você, será que não disse o que queria que eu tivesse dito? - respondeu a Erika.
Nesse meio tempo o draflayel esfregou a cabeça no Lance e voltou a fazer barulhinhos. O Lance sorriu sinceramente dessa vez e, meio sem graça, começou fazer carinho nele, como eu tinha feito antes.
- Você realmente acha que pode ler a mente dos mascotes? - perguntou Lance para Erika sem nem olhar para ela.
- Sim, ou pelo menos deste aqui. Mas essa não é a coisa mais estranha que já aconteceu comigo. É como com o Leiftan, essa coisa de sentir as emoções dele. Sei lá, ler pensamentos de um mascote não me parece tão estranho assim.
- Eu não gostaria de estar no seu lugar. O Leiftan tem sentimentos... complexos.
Entrei na conversa, pois precisava saber.
- Você é capaz de sentir o que o Leiftan sente? E de outras pessoas? - Ela seria como eu?
- Sim, do Leiftan. Mas de ninguém mais. Eu e ele sentimos os sentimentos do outro. É mútuo pelo que percebemos até agora.
- Entendi. Que diferente. Sempre foi assim?
- Não... - quando ela ia me responder o Edgard se aproximou e ela mudou de assunto. - Edgard! Como você está se sentindo? Conseguiu descansar um pouco?
- Sim! E me fez bem, estou me sentindo melhor. - ele respondeu enquanto se sentava no chão perto do Lance e olhava o draflayel - Como ele se chama?
- É um draflayel. - respondeu o Lance - Este é jovem, mesmo assim é bem maior do que o normal. Draflayels costumam ser minúsculos. Quando adultos não costumam passar dos 30cm.
- Eu achei que eles eram dragões quando eu os vi...
- Eu também! - concordei divertida.
- Mas me explicaram que não, que o dragão é... você? - o Edgard disse isso em um tom de dúvida, olhando o Lance.
Levei um susto com esse comentário e encarei o Lance. Como assim? Ele era um dragão? Olhei ele inteiro da cabeça aos pés e decidi que ele não parecia em nada com um dragão. O Lance riu divertido.
- Você não parece um dragão... Não tem escamas, nem asas, nem rabo... - eu ia elencar tudo que ele não tinha quando um pensamento me ocorreu. Lendas. Fechei os olhos e então comecei a pensar em voz alta - a não ser que você seja como nas lendas europeias. Um homem que pode se transformar em dragão ou um dragão que pode assumir a forma humana, depende da região. Nesse caso, você teria uma aparência completamente humana, exceto uma força sobre-humana, provavelmente ser bem alto, e poder usar um ou outro poder dracônico a depender da lenda, a maioria fala de bafo de dragão...
Olhando para o Lance percebi um olhar surpreso e nos demais e dei de ombros.
- Eu sou designer de joias. Já trabalhei em uma encomenda para uma coleção inspirada em personagens de jogos. Eu costumo pesquisar sobre o tema para poder me inspirar. - Expliquei superficialmente. - Me desculpa, mas... você é um dragão mesmo? Ou é um apelido?
- Sim, eu sou um dragão.
Olhei dele para o draflayel, e para ele novamente. Acho que ele percebeu onde meu pensamento me levou.
- Draflayels não são dragões. Eles estão relacionados conosco, mas não são dragões, são mascotes.
- Mascotes? – Edgard fez a pergunta mais rápido do que eu.
- Sim. Eles são como os animais da Terra. Mas não são tratados como na Terra. Eles não são caçados, vendidos, nem comidos. – explicou a Erika – E não somos nós que os adotamos, é uma escolha mútua. Quando isso acontece, temos um grande amigo e companheiro. Alguns mascotes podem ajudar em tarefas como levar mensagens e até mesmo batalhas em alguns casos.
- E existem mais deles? – Edgard sorriu curioso.
- Sim, uma variedade imensa.
Pensei na hora no gato com asas vi brincando com o coelho cheio de neve dentro dele, e perguntei para a Érika, ela parecia entender do assunto.
- Hum, pela descrição, o coelho me parece ser o bloobun. Tive oportunidade de vê-lo uma vez. Mas o outro eu não conheço... Talvez o Purreru saiba.
- Purrerru?
- O Dono da Loja dos Mascotes. Ele vende tudo que precisamos para cuidar bem dos nossos mascotes. Comidas, iscas, ferramentas. Ele também tem um orfanato. Ele entende muito de mascotes.
- Esse gato parece ser o Perceed.
O Lance respondeu ainda brincando com o Draflayel. Eu e a Érika olhamos ele.
- É difícil de encontrar esse mascote pois eles são ariscos e muito independentes.
Continuamos conversando sobre mascotes e sua variedade, um assunto fascinante para mim e para o Edgard. Nós dois queríamos conhecer mais desses seres. Afinal o draflayel era muito fofo e carinhoso no colo do Lance, com seus barulhinhos de felicidade. Havia algo que cativava nossos corações e nos dava esperanças. Algo que, pelo rosto do Edgard, e tenho certeza de que no meu também, estava claro que não tínhamos nos últimos dias.
Enquanto conversávamos olhei e vi que a Koori ainda estava dormindo, e o Leiftan prestava atenção na nossa conversa, sem deixar sua posição ao lado dela. Ele sorriu gentil para mim. Então ouvi o Lance falar.
- O Nevra e o Mateus partiram há mais de duas horas... Eles já deveriam ter voltado.
- Você acha que aconteceu alguma coisa? Será que eles caíram em alguma armadilha? – a Érika perguntou preocupada, olhando a porta.
- Eu não me preocupo com eles. Se fosse assim, o Nevra é um guerreiro excelente. Ele pode lidar tranquilamente com mais de uma dezena de kitsunes. O que me preocupa é eles terem se afastado para espionar e não conseguirem retornar ocultos.
- Por que isso aconteceria? – perguntou o Edgar?
- O caminho de volta pode estar bloqueado pelos kitsunes.
- Como assim bloqueados? Mas você disse que o Nevra poderia lidar com eles...
Lá estava o medo crescendo no Edgard. Esse medo não é meu, não é meu, repeti para mim mesma como um mantra.
- Eu disse e confirmo. Mas também disse que o Nevra desceu para espionar, não que ele desceu para enfrentar kitsunes. Isso significa que ele esperaria os kitsunes se afastarem do caminho bloqueado ou buscaria outra forma de entrar aqui. Ele prefere coletar as informações e permanecer discreto o máximo possível. Normalmente, ele só recorre à violência quando não tem escolha.
- Não tem outra forma, posso garantir.
Eu disse isso rápido. Todos me olharam curiosos. Posso ver a pergunta no olhar do Lance. Merda. Eu estou acostumada a responder rápido às perguntas ou comentários feitos próximos a mim, e a corrigir informações incorretas. Refleti bem, achei que deveria ser sincera. Era hora do tudo ou nada.
- Ontem no final da tarde, tinha um grupo de kitsunes aqui no prédio. Vocês... encontraram eles?
- Sim – foi o Lance quem me respondeu com firmeza.
- Então, eu vi esse grupo de kitsunes chegar. Eu, bom, eu estava do lado de fora do prédio quando eles chegaram. Eu acredito que eles não tenham me visto. Pelo menos não pareceu que eles me procuraram.
Nenhuma reação deles.
- Ontem eu tinha decidido descer da área do hotel e explorar a região ao redor. Tentar achar uma maneira de descer para a enseada que conseguia ver da cobertura do hotel. Talvez achar um porto... Foi o que Ryan nos disse para fazer quando partimos.
- Ryan? – inquiriu Lance.
- Sim. Ele era militar aposentado e, junto com um policial, nos liderou para fora do hotel. Eu não sei onde o grupo está agora, acho que só eu me perdi. Pois seria fácil voltar aqui para prédio se mais alguém se perdesse, não? Ele se destaca no horizonte. Eu voltei. Se mais alguém...
Me senti meio idiota de ter sido a única do grupo a se perder. Mas não era hora de autocomiseração.
- Bom, cerca de meia hora antes, eu resolvi descer. Quando cheguei no térreo eu... – hesitei. Não podia dizer que senti uma pessoa. - Ouvi passos. Meio que entrei em pânico. Não sabia quem era, podia ser alguém ruim e, olha, eu estava super tensa. O fato é que entrei em pânico e corri para fora. Acabei na área na lateral, no meio das árvores.
- Então era você! Foi você que eu ouvi correndo! – dessa vez foi o Edgard quem comentou. – Eu também me escondi com medo. Achei que eram ladrões.
- Pois é. Esperei um tempo e não vi ninguém. Eu ia tentar voltar quando vi os kitsunes. Não soube na hora que eram kitsunes, mas aí reparei na aparência e lembrei das lendas. Meio que deduzi.
Olhei para o Lance e ele balançou a cabeça me incentivando a continuar.
- Lembra que eu falei da minha intuição ser certeira? – eu não ia falar que estava ouvindo vozes, não queria parecer louca. – Então, eu pensei em pedir ajuda para eles, mas minha intuição me alertou para eles. Sei lá. Me pareceu errado, como se eles fossem perigosos.
Olhei para a Koori. Acho que minha intuição estava certa. E essa situação agora meio que provava de novo. E a voz também.
- Então eu vi um dragão voando, azulado, parecia feito de gelo. Então me ocorreu que o Lance havia dito que era um dragão. - Era você?
Ele me confirmou com a cabeça. Uau. Ele realmente era um dragão. Com asas e tudo mais.
- Quando você pousou perto dos kitsunes, bom, você não é pequeno nem leve. E eu não sabia que estava numa região instável... O chão tremeu um pouco e bom, eu caí num penhasco. Fiquei presa nas raízes das árvores. E só consegui terminar de subir no início da noite.
Tentei falar isso casualmente, como quem fala que foi comprar sorvete. Mas eu ainda sentia medo ao lembrar do penhasco sem fim abaixo de mim.
- Quando cheguei no prédio, vi a fogueira e achei que vocês eram os kitsunes. Não quis aparecer. Procurei uma entrada e não achei. Então tive que passar a noite do lado de fora.
- Você dormiu do lado de fora? Sem proteção? Só com essa roupa?
Ele olhou incrédulo para a roupa que eu estava vestindo.
- Sim. E não seria a primeira vez sabe. A primeira vez foi durante uma tempestade.
Ele me olhou em silêncio.
- Eu não acho que você seja humana.
Levei um susto com a voz da Koori. Então ela não estava dormindo, apenas ignorando todo mundo.
- Nenhum humano sobreviveria a uma tempestade de neve de Genkaku. Nem dormiria ao relento sem morrer congelado. Você sabe qual a temperatura aqui?
- Não...
Ela olhou um aparelhinho que estava na bolsa.
- Atualmente nós estamos no verão. Nesse momento, faz -15º. Ontem a noite, a média foi de -20º. As tempestades de neve chegam a -30º facilmente. Só de olhar, eu sei que sua roupa não é adequada para te aquecer o suficiente.
Ela disse isso e fechou os olhos novamente, voltando a ignorar a todos. Como se não fosse nada. Como se não tivesse jogado o balde de gelo na minha cabeça.[spoiler = Elegant Slims - Not Human]
na escuridão
Into the blackness
Seu coração é escuridão
Your heart is darkness
Aí vem a loucura
Here comes the madness
assassino gelado
Ice cold killer
Suspense de Osso Bleach
Bleach bone thriller
Você não é mais humano
You're not human anymore
Você não é mais humano
You're not human anymore
Rachando as costuras
Cracking the seams
Você está rompendo
You're breaking through
O animal dentro de você
The animal inside of you
Não é mais humano
Not human anymore
Você não é mais humano
You're not human anymore
Seus olhos ficam preto azul elétrico
Your eyes go black electric blue
O animal dentro de você
The animal inside of you
Vagueie pela câmara
Wander the chamber
Bem-vindo ao estranho
Welcome the stranger
Quando desmorona
When it falls apart
Agulha e linha
Needle and thread
Quando desmorona
When it falls apart
Tiro na cabeça
Shot to the head
assassino gelado
Ice cold killer
Suspense de Osso Bleach
Bleach bone thriller
Você não é mais humano
You're not human anymore
Você não é mais humano
You're not human anymore
Rachando as costuras
Cracking the seams
Você está rompendo
You're breaking through
O animal dentro de você
The animal inside of you
Não é mais humano
Not human anymore
Você não é mais humano
You're not human anymore
Seus olhos ficam preto azul elétrico
Your eyes go black electric blue
O animal dentro de você
The animal inside of you
A vida em uma corda
Life on a string
Assista balançar
Watch it swing
Esconda seus dentes
Hide your teeth
Deixe bater até você completar
Let it beat til' you complete
Metal para pele
Metal to skin
não é uma vida
It's not a life
Sem pecado
Without sin
Uma vez que havia brilho
Once there was luster
Agora, um verdadeiro impostor
Now, a real imposter
assassino gelado
Ice cold killer
Suspense de Osso Bleach
Bleach bone thriller
Você não é mais humano
You're not human anymore
Você não é mais humano
You're not human anymore
Rachando as costuras
Cracking the seams
Você está rompendo
You're breaking through
O animal dentro de você
The animal inside of you
Não é mais humano
Not human anymore
Você não é mais humano
You're not human anymore
Seus olhos ficam preto azul elétrico
Your eyes go black electric blue
O animal dentro de você
The animal inside of you
(Dentro de você)
(Inside of you)
(Dentro de você)
(Inside of you)
(Dentro de você)
(Inside of you)
.。.:*☽*18 - Caminhada no Gelo... Novamente*☾*:.。.
Spoiler do Episódio NE06
PDV Elise.
Nesse momento o Leiftan se levantou e veio até nós.
- O sol em breve vai se pôr. Precisamos ir embora. Não creio que temos tempo de permanecer discretos mais.
Então Edgard alertou a todos.
- Não podemos ver o céu do térreo por causa das montanhas. O Nevra pode não ter visto o tempo passar.
O Lance refletiu um pouco e pareceu se convencer.
- Leiftan, acompanhe a Koori. Ou o Nevra e o Mateus conseguiram liberar o caminho e os encontraremos nas escadas, ou eles não se deram conta da hora e precisaremos forçar para passar.
Lance olhou o draflayel no colo dele, que tinha adormecido no meio da conversa e conversou carinhoso com ele.
- Vamos, você precisa descer, precisamos ir.
O mascote não pareceu nem um pouco animado a abandonar o colo do dragão. Todos nos levantamos aos poucos, esticando os corpos.
- Vamos pequeno, desça...
Eu ri por dentro. O Lance pareceu desistir e se levantou com o mascote no colo, que ficou surpreso com a movimentação, voltou a se aconchegar e tentou dormir de novo. Fomos para a porta da escadaria.
- Todos estão prontos? Pode ser necessário lutar novamente.
Novamente? Eles tinham lutado com os kitsunes antes? A Erika tocou no meu ombro e no do Edgard e nos falou:
- Está tudo bem. Se a situação sair do controle, se escondam e fiquem longe da batalha.
Concordamos com a cabeça tensos. Olhei o draflayel no colo do Lance e cutuquei o ombro dele.
- Você vai descer com ele no colo? Eu não sei lutar mas posso carregar ele...
Lance olhou o mascote e concordou. Ele me entregou com cuidado. Ui. Ele é mais pesado do que eu imaginava. Tive uma ideia e pedi ajuda do Lance. Peguei uma echarpe extra que estava carregando na mochila, e amarrei o draflayel no meu corpo como num sling. O draflayel não pareceu gostar de tanta movimentação, mas, assim eu não corria o risco de deixar o coitado cair.
Sinto a ansiedade e culpa do Matheus antes de chegarmos ao Térreo. Lá, Nevra e Mateus estavam com as armas nas mão e eu posso jurar que a do Mateus está suja de sangue. O Mateus está ofegante. Não vejo corpos de kitsunes pelo chão mas vejo um pouco de sangue.
- Ficamos preocupados. Logo o sol vai se pôr. O que aconteceu?
- Nós nos afastamos da escadaria para investigar e o caminho de volta foi bloqueado. Esperamos um bom tempo e, quando os kitsunes finalmente foram embora, tentamos retornar. – Nevra respondeu.
- Mas um deles no viu e alertou os demais. – Mateus complementou.
- Quem será que eles viram? – Nevra perguntou parecendo irritado.
- Pois é... Impossível ter certeza. – Mateus estava vermelho... Nem preciso sentir a culpa vindo dele para saber que temos nosso culpado.
- Enfim, precisamos nos defender. – Nevra se explicou.
Lembrei que o Lance disse que ele só recorria à violência quando não tinha opção. Seria esse o caso?
- Durou uns quinze minutos. – Mateus falou.
- De qualquer maneira, eles fugiram. Provavelmente voltarão com reforços logo. Precisamos sair daqui agora.
O tom de voz do Nevra era bem urgente agora. E a liderança dele também era clara. Mesmo sendo nova naquele grupo, senti que precisava obedecer prontamente. Lance se virou para todos nós e nos orientou.
- Vamos então. E cuidado para não se distanciar um do outro, começou a nevar.
Eu já tinha ouvido um discurso parecido antes. E tinha me perdido. Dessa vez tentei ficar juntinho do grupo. Percebi que o Nevra ia na frente, com a Koori e o Leiftan. Erika, eu e o Edgar no meio. E o Lance seguiu atrás de nós. Atravessamos um planalto que ficava na frente do prédio alto. Todos andávamos o mais rápido que podíamos. Então senti uma crescente de pânico. Olhei para frente e percebi que vinha do Edgar. Com poucas pessoas, era fácil saber quem era. Pensei em falar com ele. Mas como? Iria chamar atenção de todos. Senti que a cada passo piorava, e eu não conseguia pensar em nada para acalmar ele. De repente ele paralisou.
- Edgard? O que foi Edgar? Você viu alguma coisa? – Erika perguntou preocupada para ele.
- Eu não... Não posso. Não consigo! Podemos voltar! Passar pelo portal e fugir!
- Edgard, já estamos fugindo. E precisamos ir logo. Você viu o que o portal faz com os objetos que passam por ele.
- Mas estamos no território do inimigo. Vocês disseram. Está muito frio. É uma armadilha! Nunca vamos conseguir! Vamos morrer todos aqui!
Mateus se aproximou, colocou as duas mãos nos ombros do Edgard e, olhando nos olhos deles, falou:
- Edgard, me escute. É normal você estar com medo. Mas não temos escolha. Precisamos continuar. Se ficarmos no prédio, seremos atacados. Então precisamos continuar, rápido. Nós temos um barco no porto. Ele está seguro, protegido. Chegando lá, nós vamos vazar daqui.
- Eu não acho que... Eu não acho que vou conseguir Mateus.
- Eu prometo que sim. Fique perto de mim. Vamos lá. Nós vamos te proteger. Vai ficar tudo bem.
O Edgar começou a relaxar. Mateus passou a caminhar ao lado dele e seguia com palavras de incentivo.
- Ótimo. Vamos. Quanto mais rápido andarmos, mais cedo chegaremos.
Me senti meio inútil, errada. Eu sabia o que estava acontecendo, só não podia falar. Lembrei dos meus pais falando o quanto era errado invadir as emoções alheias. Os sermões intermináveis quando eu fazia isso. Que era pecado. Lembrei das palavras da Koori “Eu não acho que você seja humana”.
Me surpreendi pelo caminho que eles escolheram. Era uma rota difícil, que dificilmente eu olharia e pensaria: “Olha, dá para caminhar por aqui!”. Mas era eficiente, realmente era possível seguir com esforço. Era muito difícil caminhar na neve alta. Percebi que o Mateus precisava ajudar o Edgard constantemente. Ele estava morto de medo, mas confiava no Mateus e nas palavras dele. Quanto a mim, carregava o draflayel, o que de certa forma era bom. Ele me dava calor e um pouco de esperança. Fiquei tentada a afastar a neve do caminho com minhas habilidades, mas ainda não me sentia confiante o suficiente neles para isso. Eu poderia precisar delas para tentar sobreviver.
Quando chegamos em um penhasco que parecia ser o fim da nossa caminhada. O Lance se transformou em dragão diante dos nossos olhos. Eu e Edgard ficamos fascinados. Koori e Leiftan foram os primeiros a subir no dragão e descer voando a encosta. Em seguida foram Mateus e Edgard. Estávamos aguardando o retorno dele quando uma chuva de flechas veio em nossa direção. Eu só vi quando elas atingiram uma barreira invisível. O Nevra ficou observando a escuridão e comentou:
- São eles, nos alcançaram. Parabéns pelo escudo, Erika. Mas você deveria ter me avisado.
Ela tinha feito isso? Olhei chocada para ela.
- Eu não tinha certeza de que tinha funcionado. – ela se justificou.
- Você acha que o escudo poderá aguentar muito tempo?
- Eu não sei...
- Tomara que aguente ao menos mais pouco. A próxima leva está chegando.
Ansiosa e ofegante eu vi a segunda onda de flechas se chocar contra uma barreira invisível novamente.
- Confiem em mim.
Nevra falou isso e então senti sua mão agarrar a minha e percebi que ele estava puxando a mim e a Erika, correndo, em direção ao penhasco. Quando percebi o que ele pretendia fazer, quase tive um troço. Meu coração pulou do peito. Ele ia nos matar. Deixasse as flechas nos alcançarem antes maluco dos infernos!
- Pulem quando eu mandar!
Eu não sei o motivo. Talvez saber que obviamente não havia chances de sobrevivência para trás. Mas quando ele mandou, eu pulei. E a Erika também. O dragão apareceu na nossa frente e, de maneira desajeitada, ele conseguiu nos pegar no ar. Eu gritei com todo ar que existia nos pulmões. Nevra e Erika mais habilidosos estavam sobre o dragão, eu precisei ser agarrada por ele. O que não foi bom. O vento era forte naquela parte do corpo dele. Quando pousamos, ele me deixou com delicadeza no chão e meus joelhos não me obedeciam muito bem, o que me obrigou a me apoiar nele. O draflayel nem parecia ter percebido o que tinha acontecido. Olhei para o Nevra e xinguei ele:
- Maluco! Quase me mijei de medo seu... seu palhaço de uma figa...
Ele me olhou com uma sobrancelha levantada, e quando notei que não apenas estava falando alto, como ele entendia português também, fiquei dividida entre a raiva e a vergonha de ter sido pega no ato, mas não de ter xingado esse biruta e tentei recuperar o fôlego e a força das pernas. Lance se transformou e esperou que eu me acalmasse. Nesse meio tempo Leiftan perguntou ao Nevra o que tinha acontecido.
- Vocês foram atacados?
- Sim. Graças à Erika estamos bem. Ela conseguiu usar o escudo dos Aengels. Mas agora precisamos sair daqui rápido. Edgard, Elise, Koori, fiquem perto da Erika. Koori, pode ser que precisemos das suas ilusões. Mateus, venha comigo na frente. Lance e Leiftan, vocês ficam por último. O que quer que aconteça, não se distanciem muito da Erika. E fiquem atentos. Eles podem ter preparado outra emboscada.
Retomamos a caminhada tensos. Eu esperava uma chuva de flechas a qualquer momento. A tensão era gigante. Tão grande que eu não diferenciava mais o que era meu e o que era do Edgard ou do Mateus. E desconfiei que Erika e Leiftan estavam tensos o suficiente para que eu os sentisse também. Apenas o mascote estava tranquilo. Sentia meu coração bater a mil e invejei a calma do draflayel no meu peito. Após cerca de uma hora de caminhada finalmente avistei um navio ancorado. Mas na frente dele diversos kitsunes nos esperavam. Inclusive o que tinha chamado minha atenção ontem. Era contra eles que a voz tinha me alertado.
Todos paramos e o Nevra nos alertou.
- Eles estão nos esperando, e não parece que desejam conversar. Fiquem perto e mantenham a posição. Acredito que precisaremos lutar. Prestem bem atenção. Eu me recuso que um de nós ataque primeiro, escutaram? Mas não creio que eles vao demorar, então estejam prontos para contra-atacar se for necessário.
Contra-atacar? Olhei os kitsunes e eles pareciam em maior número. Tudo bem que tinha um dragão do nosso lado. Mas ainda assim, eles estavam em maior número agora, e nós éramos um grupo pequeno. E eu e o Edgard. Bom. Nós éramos civis. Como iríamos lutar? Ouvi o Nevra dizer com pesar na voz.
- Evitamos ferir gravemente eles até agora. Mas se a vida de um de nós for ameaçada, vocês têm a liberdade de agir de acordo. Erika e Koori, a prioridade de vocês é proteger a Elise e o Edgard. Eles vão, sem dúvida, atacá-los. Vocês precisam defendê-los.
Eu e Edgard nos olhamos, com medo. Que situação bizarra.
- Não se preocupem, vai ficar tudo bem. Nós vamos proteger vocês. – Erika nos acalmou.
Todos desembainharam suas armas, Lance se transformou em um Dragão.
- E uma última coisa: lembrem-se por que estamos aqui. Não para vencê-los. Mas para chegar até o navio. A nossa vitória é conseguir embarcar naquele navio. Não tentem eliminá-los, embarquem assim que puderem. Boa sorte. Vamos conseguir!
O Nevra deu sinal e começamos a caminhar em direção ao navio, consequentemente em direção dos kitsunes. Quando estávamos a uma distância de uns vinte metros, vi uma chuva de flechas se chocar de novo contra uma barreira invisível. Nesse momento, o Lance voou e partindo direto para os kitsunes. Ele sobrevoou a lateral do navio, com chamas azuis saindo da boca dele. Ouvi gritos. O Nevra correu numa velocidade impressionante, que eu entendi ser sobre humana, e começou a lutar. Era difícil acompanhar a velocidade dos movimentos dele. Mateus precisou de mais tempo para alcançar ele, e começou a lutar também.
Nós começamos a correr para o navio juntos. Só é preciso atravessar o caos de um campo de batalha. Andamos alguns metros quando um grupo de guardas interrompeu nossa jornada. Erika e Koori parecem prontas para a batalha. Edgard gritou para a Eika:
- Tem mais atrás da gente, vejam!
Vi os guardas na nossa frente paralisarem e, pelos seus olhos, o terror tomou conta deles, e muitos fugiram. Vi que o bastão da Koori brilhava. A Erika se virou e enfrentou dois guardas que estavam atrás de nós. Eu vi três soldados mirando para atirar flechas em nós, e sem pensar, joguei neve em seus olhos usando minhas habilidades. Eles não esperavam essa! Largaram os arcos e estavam tentando tirar a neve dos olhos agora. Ouvi a Erika perguntar para a Koori.
- Koori, você acha que conseguimos passar?
- Precisamos tentar!
- Edgard, Elise, vocês estão prontos? Não podemos mudar de ideia no meio do caminho...
Apenas vi a Erika partir gritando na direção de outro kitsune.
- Eu não vou deixar você se aproximar da Koori! Dê mais um passo e eu te mato!
Mas ele não pareceu prestar atenção na Erika. Ele só tinha olhos para a Koori.
- Koori, meu amor! Por favor, só você pode colocar um fim na batalha. Venha comigo! Seja minha rainha, a rainha do seu povo!
Então esse era o Tenjin. O ex-marido da Koori. As palavras dele não combinavam com o olhar dele. Ele a olhava com posse, de uma maneira repulsiva. Então ouvi a Erika sufocando e pedir ajuda.
- Koori... Me ajude, eu... Koori...
Eu e Edgard não sabíamos o que fazer. De alguma maneira, o Nevra surgiu obrigando o Tenjin a se defender. Mas a Koori não parece bem. Estamos como duas baratas tontas olhando a loucura ao nosso redor. Erika está agindo estranhamente. Lance e Nevra estão lutando. Eu consegui jogar neve nos olhos de alguns outros kitsunes, mas esse truque não vai funcionar eternamente. Tento proteger o inocente draflayel com os braços, para que nada aconteça com ele. Olho o caminho até o barco, talvez...
Então ouço um baque... A Erika se jogou sobre a Koori e as duas estão no chão. Então uma pedra rolou no chão. A Koori começou a chorar, escondendo o rosto entre as mãos...
- Eu sinto muito... Eu... Eu não deveria ter... Eu estava com tanto medo... Eu não soube... Me perdoe...
A Erika estendeu a mão para a Koori e falou calma:
- Koori, olhe para mim. Você não fez nada de mal. Nada disso é culpa sua. Agora, precisamos de você para embarcar.
Koori fungou, ergueu o queixo e parece bem melhor.
- Você tem razão. Desculpe... Estou pronta, vamos lutar.
Com as duas em estado normal, eu e Edgard seguimos atrás delas e fomos na direção do barco novamente. Era surpreendente. Os kitsunes se afastavam gritando apavorados. O que me deu uma ideia do meu estado quando fugi dela e encontrei o Lance e o Mateus. Os que não fugiam, a Erika enfrentava e derrubava. Percebi que, de modo geral, todos evitavam matar. Eles estavam deixando os kitsunes desacordados ou apavorados.
Quando estávamos chegando no navio, o Edgard chamou atenção da Erika e todos nós. Um grupo de arqueiros tinha colocado fogo nas flechas. Vi a Erika se concentrar e então a neve acumulada atrás desse grupo caiu sobre eles, enterrando todos embaixo de uma camada grossa de neve. Ela era surpreendente. Consegui sentir esperança. Íamos conseguir contra toda a expectativa.
Então percebemos que o Tenjin estava na nossa frente. De alguma maneira ele estava ali, furioso. Mais rápido do que consegui ver, pareceu que ele lançou alguma coisa em nós. Senti um choque e comecei a sufocar. Cai no chão de joelhos, sem conseguir respirar, de cabeça baixa, uma dor aguda na garganta. Minha vista ficou escura e senti uma paz tomar conta de mim. Tudo passou tão repentinamente como tinha começado. Ouvia vozes, mas não escutava o que estava acontecendo. Senti alguém me arrastar em direção a algum lugar, mas não sabia o que estava acontecendo. A última coisa que percebi, foi um par de braços me agarrando antes da minha consciência me abandonar completamente.Harry Styles - Sign of the Times
Apenas pare de chorar
Just stop your crying
É um sinal dos tempos
It's a sign of the times
Bem-vindo ao show final
Welcome to the final show
Espero que você esteja vestindo suas melhores roupas
Hope you're wearing your best clothes
Você não pode subornar a porta em seu caminho para o céu
You can't bribe the door on your way to the sky
Você parece muito bem aqui embaixo
You look pretty good down here
Mas você não é muito bom
But you ain't really good
Se nunca aprendermos, já estivemos aqui antes
If we never learn, we been here before
Por que estamos sempre presos e fugindo de
Why are we always stuck and running from
As balas?
The bullets?
as balas
The bullets
Nós nunca aprendemos, já estivemos aqui antes
We never learn, we been here before
Por que estamos sempre presos e fugindo de
Why are we always stuck and running from
As balas?
The bullets?
as balas
The bullets
Apenas pare de chorar
Just stop your crying
É um sinal dos tempos
It's a sign of the times
Temos que fugir daqui
We gotta get away from here
Temos que fugir daqui
We gotta get away from here
Apenas pare de chorar
Just stop your crying
vai ficar tudo bem
It'll be alright
Eles me disseram que o fim está próximo
They told me that the end is near
Temos que fugir daqui
We gotta get away from here
Apenas pare de chorar
Just stop your crying
Tenha o tempo de sua vida
Have the time of your life
Rompendo a atmosfera
Breaking through the atmosphere
E as coisas estão muito boas daqui
And things are pretty good from here
Lembre-se que tudo ficará bem
Remember everything will be alright
Podemos nos encontrar novamente em algum lugar
We can meet again somewhere
Em algum lugar longe daqui
Somewhere far away from here
Nós nunca aprendemos, já estivemos aqui antes
We never learn, we been here before
Por que estamos sempre presos e fugindo de
Why are we always stuck and running from
As balas?
The bullets?
as balas
The bullets
Nós nunca aprendemos, já estivemos aqui antes
We never learn, we been here before
Por que estamos sempre presos e fugindo de
Why are we always stuck and running from
As balas?
The bullets?
as balas
The bullets
Apenas pare de chorar
Just stop your crying
É um sinal dos tempos
It's a sign of the times
Temos que fugir daqui
We gotta get away from here
Temos que fugir daqui
We gotta get away from here
Pare de chorar
Stop your crying
Querida, vai ficar tudo bem
Baby, it'll be alright
Eles me disseram que o fim está próximo
They told me that the end is near
Temos que fugir daqui
We gotta get away from here
Nós nunca aprendemos, já estivemos aqui antes
We never learn, we been here before
Por que estamos sempre presos e fugindo de
Why are we always stuck and running from
As balas?
The bullets?
as balas
The bullets
Nós nunca aprendemos, já estivemos aqui antes
We never learn, we been here before
Por que estamos sempre presos e fugindo de
Why are we always stuck and running from
As balas?
The bullets?
as balas
The bullets
Nós não falamos o suficiente
We don't talk enough
Devemos abrir
We should open up
Antes que seja demais
Before it's all too much
Será que algum dia aprenderemos?
Will we ever learn?
Já estivemos aqui antes
We've been here before
É apenas o que sabemos
It's just what we know
Pare de chorar, querida
Stop your crying, baby
É um sinal dos tempos
It's a sign of the times
Temos que fugir
We gotta get away
Temos que fugir
We got to get away
Temos que fugir
We got to get away
Temos que fugir
We got to get away
Temos que fugir
We got to get away
Temos que, temos que ir embora
We got to, we got to, away
Temos que, temos que ir embora
We got to, we got to, away
Temos que, temos que ir embora
We got to, we got to, away
.。.:*☽*19 - Viagem de Barco I*☾*:.。.
Spoiler do Episódio NE06
PDV Elise.
Acordei sentindo um ritmo diferente. Sentei na cama e percebi que estava em um quarto pequeno, todo feito de madeira. Prestei atenção e me pareceu que estar em um barco pois escutei o som de água batendo. Sinto fome e sede. O que será que aconteceu? Descobri uma escada e subi, me encontrando em uma espécie de cabine. Pela janela, encontrei meus companheiros. Sentindo alívio, saí para a área externa e encontrei a Erika e a Koori. Esta última ao me ver se aproximou preocupada.
- Finalmente você acordou! Como está se sentindo? Melhor?
- Sim, obrigada. Eu estou com sede... E fome. O que aconteceu? Quanto tempo passei dormindo?
- Claro. Você dormiu por um pouco mais de doze horas. – ela me respondeu enquanto me levava de volta para a cabine interna.
Lá dentro ela me ofereceu água e comida. Erika também entrou, e em seguida Nevra, Lance e Mateus. Parece que todos aproveitaram para comer. Eu não vi o Edgard mas estava faminta demais e aproveitei para comer. Descobri que o cozinheiro da Guarda de Eel se chamava Karuto, e ele era o responsável por aquelas delícias.
Todos conversamos tranquilamente. A Koori e o Lance aproveitaram para ver o mascote que dormia em um ninho improvisado. Quando terminamos, organizamos tudo e fomos para fora. Me sentia mais energizada e tranquila. Procurei o Edgard com o olhar e não encontrei. Estranhei a ausência de sensações, pois sentia apenas o Mateus. Percebendo que eu buscava alguém, o Nevra se responsabilizou em me dar as más notícias. Ele me olhou nos olhos e disse que Edgard tinha sido atingido no pescoço por uma adaga de Tenjin, e faleceu na hora. Inconscientemente, eu levei minhas mãos para o meu pescoço. Me lembrei na hora da sensação de sufocamento, a dor no pescoço, o choque que havia tomado conta de mim, e a sensação de paz que se seguiu.
- O que aconteceu com você lá, Elise? – Nevra me perguntou enquanto observava minhas reações.
- Como assim? – me fiz de desentendida.
Ele me olhou de uma maneira que me fez pensar que ele não gostou da minha resposta. Mas eu estava acostumada a disfarçar minhas habilidades, emoções e sensações. Não se abandona uma vida de hábitos em um minuto.
- Todos nós percebemos que algo aconteceu com você. Primeiro achamos que também tinha sido atingida. Mas o Nevra percebeu que não era isso. Porém você não respondia a nenhum estímulo. O Nevra teve que te carregar para o barco. É meio óbvio que algo aconteceu. – pela primeira vez ouvi a Koori falar tanto assim. - A não ser que esse seja seu jeito charmoso de seduzir alguém. - Ela piscou para mim de um jeito que não entendi se era ironia ou um comentário sério.
Olhei de um para o outro sem graça tentando achar uma explicação plausível. Crise de asma? Posso inventar uma doença. Crise de pânico? Isso seria mais plausível… enquanto pensava nas possibilidades rapidamente, Nevra falou me olhando nos olhos, de um jeito que me fez sentir como se ele soubesse que eu estava pensando em uma forma de enganá-los.
- Talvez você fique mais confortável explicando como consegue mover a neve à distância. Eu percebi que você usou esse truque algumas vezes contra os arqueiros do Tenjin durante a batalha, aliás, excelente contribuição. – o Nevra falou isso de braços cruzados e olhando sério na minha direção.
Todos me olharam surpresos, enquanto me sentia acuada. Não imaginei que alguém perceberia um detalhe desses. Foram apenas algumas vezes no meio de uma confusão completa. Como ele poderia ter notado um detalhe desses? Eu nunca falei disso com ninguém, nem com os meus pais. Eu não sabia o que fazer. Me senti em pânico, com o coração a mil. Para minha surpresa, foi a Erika quem me acudiu.
- Sabe Elise, você não precisa ter medo. Aqui em Eldarya, é comum ter habilidades especiais. Não é como na Terra. Eu sei que você deve estar assustada, eu também estaria. Mas todos aqui, exceto o Mateus, também têm habilidades. Ninguém vai te julgar estranha ou peculiar.
Conforme ela falava, ela se aproximou de mim, se sentou do meu lado, e colocou a mão no meu ombro. Mas o que ela falava, ia contra tudo que eu tinha aprendido. Contra meus pais. Não era natural. Era errado. Cada vez que eu usava, era errado. Ao mesmo tempo, ali poderia haver respostas, para o que eu sempre havia tentado entender. Minhas habilidades. O que havia acontecido sete anos atrás? E semanas atrás? Com a cabeça baixa, os braços apertados e as unhas cravadas nas mãos, eu confessei o que para mim era quase um crime.
- Eu consigo sentir as emoções da maioria das pessoas. Às vezes, sinto sensações também, se elas forem muito fortes. E consigo mover objetos à distância.
- Você sentiu o Edgard... – Erika me perguntou baixinho, chocada.
Eu fiquei em silêncio. Eu não sabia. Mas senti as lágrimas escorrerem no meu rosto. Tinha sido horrível e, até aquele momento, não tinha me dado conta realmente do que havia acontecido. A Erika me abraçou, e me senti reconfortada. Então eu comecei a falar entre soluços.
- Acho que sim. Eu nunca estive perto de alguém que morreu. Mas quando as emoções são muito fortes, fica muito difícil diferenciar o que é meu do que é do outro. Eu acabo sentindo como se fosse eu. E ontem... Foi um choque. Primeiro veio a dor aguda, a falta de ar, a confusão e então a paz.. Mas eu não conseguia mais entender o que estava acontecendo. Fiquei completamente aérea.
- O choque de sentir a morte de alguém deve ter alterado seu estado de consciência. Me surpreende você não ter desmaiado antes. – ouvi a Koori dizer e se sentar ao meu lado, me envolvendo em um abraço também.
Todos me deram tempo de me recuperar. Eles não pareciam ter pressa mais. Assim que fiquei mais calma, o Nevra voltou a fazer perguntas, mas agora com um olhar bem mais compreensivo no rosto.
- Sempre foi assim?
- Não. Não nesse nível. Quando criança eu somente sentia quando pessoas com emoções muito fortes se aproximavam. Felicidade intensa, ira, depressão.
Estranho. Achei que seria horrível falar disso. Era a primeira vez que contava sobre minhas habilidades. E estava me sentindo melhor em poder compartilhar. Me lembrei da terapia, e de como foi bom poder falar da tristeza profunda quando perdi meus pais. Acho que era a mesma coisa. Eu carregava isso sozinha há muito tempo, e finalmente podia compartilhar.
- Na adolescência eu conseguia sondar com mais facilidade. Ainda ficava cansada, mas conseguia por um ou dois minutinhos. E então alguma coisa aconteceu quando eu fiz 22 anos. De uma hora para outra, comecei a sentir as emoções de quase todo mundo que se aproximava de mim. Eu não precisava mais me esforçar, sabe? Era o tempo todo. Tive que aprender a diferenciar o que era meu e o que não era. Foi uma fase difícil. Fiquei mais isolada.
- Já tem tempo isso? – a Erika me perguntou.
- Sete anos. Mas eu só sentia as sensações de quem chegava pertinho de mim, como vocês. Mas eu não sentiria pessoas que estivessem a alguns metros de mim. Multidões se tornaram um tormento. Só que tem uns dias... Não, desculpa...
Olhei para o Lance e perguntei para ele:
- Você disse que tem quanto tempo que o prédio veio para cá?
- Três semanas – ele me respondeu.
- Certo, então tem pouco mais de um mês que minhas habilidades chegaram nesse nível aqui. Em que mesmo pessoas mais distantes me afetam, e eu sinto as emoções delas.
- Você sente as emoções de todo mundo? – Lance me perguntou.
- Não. Eu sinto a maioria. Bem. Sentia. Na Terra. - Fechei os olhos tentando organizar meus pensamentos. - Aqui no grupo... Bem, eu só sinto o Mateus. Eu sentia o Edgard também. E todo mundo do grupo... Mas de vocês eu consigo se eu me concentrar.
- Interessante. Você sabe o porquê de sentir umas pessoas e outras não? – O Nevra me perguntou.
- Não. Nunca consegui entender o motivo de algumas pessoas serem tão silenciosas. Mas é… - Refleti alguns segundos, sentindo o silêncio raro de estar envolvida por pessoas sem saber o que elas sentiam. - Agradável. Muito agradável.
- É uma hipótese, que teremos que provar posteriormente. Mas provavelmente você lê humanos com mais facilidade que faeries. - Nevra comentou, observando o Mateus.
- Não sei. Eu não consigo ler você e o Lance e vocês são faeries, não? – falei rápido.
Ele me olhou de um jeito estranho. E o Mateus me salvou do desconforto.
- Espera... esse não é o mesmo período que a Erika e o Leiftan despertaram?
- Não acredito que ela sinta o casal mais ilustre de Eldarya, Mateuzinho. - A Koori falou num tom condescendente e irônico. - Mas ela pode ter sentido o Cristal nos dois momentos. – a Koori falou. – Sete anos atrás quando ele se quebrou. E três semanas atrás quando ele se esvaziou de energia com a saída da Erika e do Leiftan.
Nevra definitivamente olhou para a Koori com cara de quem não gostou da fala dela.
- Essa é uma hipótese bastante ousada Koori.
- As datas são muito específicas Nevra. Além disso, todas as hipóteses precisam ser levantadas.
- De que cristal vocês estão falando?
- Uma longa história para a qual temos tempo. A Erika pode te contar em primeira mão. Embora nosso querido Chefe da Obsidiana possa não gostar… - O tom de voz dela era provocativo. E era intencional, obviamente.
Lance saiu da cabine em silêncio, sem esboçar nenhuma reação à provocação da kitsune. O Nevra deu um olhar de alerta para a Koori e seguiu para a fora também. Olhei para a Erika e ela não parecia feliz em me contar essa história.
- Você não precisa contar se não quiser.
- Obrigada. Não fico confortável mesmo. – e ela seguiu para fora da cabine.
- Viu o que você fez, Koori?
- É parte da história de Eldarya, Mateusinho. Cedo ou tarde ela saberá.
- Mas ela poderia saber depois.
Então Koori me contou a história de Eldarya, sua criação. Que Lance e seu irmão Valkyon eram, respectivamente, um dragão de gelo e outro de fogo. Mas nunca contaram para ninguém. Lance era Chefe da Guarda Obsidiana e Valkyon trabalhava com ele. Mas Lance sentia muita revolta pelo sacrifício dos dragões e não sentia que os faeries honravam nem mereciam esse sacrifício. Então ele fingiu a própria morte, assumiu um codinome, Ashkore, e iniciou uma guerra para destruir Eldarya.
Nessa batalha ele cativou diversos aliados, como Leiftan e Chrome, atual chefe da Guarda da Sombra e namorado da irmã caçula do Nevra. Há sete anos, a escolhida pelo Oráculo, um espírito guardião de Eldarya, trouxe Erika. Ela é meia Aengel e tem uma conexão profunda com o Oráculo. Foi uma guerra feia com muitos mortos de todos os lados. Sem saber, a Erika se apaixonou pelo Leiftan, principal aliado do Lance que, no final, se voltou contra ele. No final, o Lance venceu a batalha, destruiu o cristal, e seu irmão se deixou ser morto por ele. Mas conforme a lenda, quando matou o próprio irmão, Lance parou o ataque, arrependido, perdendo a guerra ao ganhá-la.
Com o cristal destruído, Eldarya estava se desfazendo, e todos naquele mundo iriam morrer. Então Erika e Leiftan se sacrificaram, entrando no cristal, dando a vida na esperança de salvar Eldarya. Foi o Sacrifício Branco, sete anos atrás. Depois disso Eldarya se equilibrou e a terra se tornou fértil como nunca havia sido. Eles tinham salvado Eldarya. Ninguém imaginou que eles ainda estivessem vivos. Então, há pouco mais de um mês, ambos saíram do cristal, deixando este vazio e sem energia. Fenômenos estranhos tinham começado a acontecer um pouco antes. E fenômenos estranhos tinham acontecido depois, como a chegada daquele prédio em Eldarya.
- Uau. É uma história e tanto! Parece um filme. Eu posso imaginar isso passando no cinema!
- Sim! O Mateus já me falou disso. Deve ser fascinante assistir o teatro em uma grande tela!
- É sim. Uma das coisas que mais gosto de fazer. Histórias me fascinam. Mas Koori. Eu não vejo como isso pode se relacionar comigo.
- Poderemos comparar melhor no QG Elise, mas os períodos são os mesmos, concorda comigo?
- Bom, não tenho certeza... Mas pode ser que sim.
- E coincidências precisam ser investigadas. Algo no desequilíbrio de Eldarya pode ter afetado suas habilidades. Mas não se preocupe com isso agora. Agora é hora de apreciar a viagem de volta.
.。.:*☽*20 - Viagem de Barco II*☾*:.。.
PDV Elise.
Aquela história falava muito de Eldarya e da Guarda de Eel. Em primeiro lugar, eles eram bem compreensivos e pelo visto, praticavam realmente o perdão. Afinal, aceitavam traidores como Lance, Leiftan e o tal de Chrome. Sendo que Lance e Chrome eram líderes na Guarda agora. Não parecia ser um lugar ruim para se estar. Espiei o Lance, como seria estar na pele dele? Ele tinha matado o próprio irmão. E quase destruiu um mundo. E mesmo assim, ali estava ele, aceitando ordens do Nevra. E parecia tranquilo. Mas aquilo deveria ser apenas a superfície de um oceano turbulento. Ninguém mata o irmão e sai em paz disso. Agora, pelo que entendi, ele era o último dragão vivo. Eu não queria estar na pele dele.
Desviei o olhar para o Nevra. Ele era um vampiro. Eu não me acostumei com essa ideia. Parece que o Sol em Eldarya não machucava os vampiros, ou era tudo lenda? Ele tomava sangue? Fiz uma careta ao pensar nisso. Depois reservei um tempo para analisá-lo. Com uma irmã na Guarda, que namora o tal Chrome, um lobisomem, o Nevra participou da guerra. Viu companheiros morrerem nas mãos do Lance, e mesmo assim, hoje, sete anos depois, ele confia o suficientemente no Lance para pular de um penhasco cegamente e deixar sua vida nas garras dele. Era preciso um amadurecimento grande para ser capaz de perdoar uma pessoa assim. Perdoar de verdade, a ponto de voltar a confiar nessa pessoa com a própria vida.
Me virei para observar o último aengel, Leiftan, que despertou ao lado de sua amada Erika, mas eles não parecem estar bem. Se entendi bem, ele é o último Aengel puro. Assim como o Lance, ele carrega o fardo de ser o último da sua raça. Como será? Perto dele, conversando com a Koori, estava a Érika, a escolhida do Oráculo. Salvou este mundo sacrificando a própria vida. Isso depois deles apagarem a vida dela na Terra. Ela era bastante abnegada. Duvido que eu teria feito isso. Me senti meio culpada ao pensar que teria deixado o Lance foder esse mundo. Se bem que eu teria morrido junto. Ok. Talvez eu salvasse o mundo, mas seria por egoísmo, só para salvar minha pele mesmo. Voltei a olhar para a Érika e entendi que nunca saberia o que eu teria feito no lugar dela.
Dei de ombros e concluí que muita coisa mudaria no meu futuro. Uma pontada de medo e ansiedade se acumularam no meu estômago. Como voltar para casa sabendo o que eu sabia agora? Fechei os olhos e me concentrei no vento frio e salgado.
- Como você consegue ficar com esse vento frio no rosto? É horrível! – escutei o Mateus falar e abri os olhos e o encontrei com um olhar horrorizado no rosto! Mas senti que por dentro ele estava se divertindo.
- Está uma delícia. – respondi para ele com um sorriso.
- Há! Você não é humana mesmo. Nenhum humano apreciaria um frio desse.
Olhei para ele surpresa com o comentário, e percebi, surpresa, que não estava ofendida. Ele começou a ficar sem graça, mas sorri novamente, desfazendo o clima pesado. O Mateus era uma pessoa fácil para rir e se divertir. Após três dias de navegação, o clima mudou completamente, me permitindo tirar as camadas de roupas com que estava coberta. Busquei ignorar, displicentemente, qualquer lembrança do Edgar. E não somente eu. O nome dele não foi tocado em nenhum momento. Creio que ninguém gosta de se lembrar que perdemos uma pessoa. Apreciava a visão dos belos homens ao redor, desejando internamente que eles sentissem calor e tirassem a camisa. Eu, Erika e Mateus fomos os únicos a tirar camadas de roupas.
Com calma pude apreciar cada um deles. Todos eram muito bonitos. Seria a água ou o tal de maana? A Koori era absolutamente linda. E agora que ela ria e brincava, estava mais agradável ainda. Embora ela tivesse um tipo de humor que eu, pessoalmente, não curtia. Mas ela era o tipo de mulher que, na Terra, sem o rabo e as orelhas, obviamente, causaria acidentes de trânsito. Realmente não disfarcei meu prazer em observá-la, ao ponto dela ter notado e flertado comigo. O que eu gostei. Sempre joguei nos dois times.
O Mateus me lembrava os estagiários de minhas lojas, novinho e, às vezes, um pouco tonto. Bonito e meio burro. E arrogante. Ele demorava a pegar algumas insinuações, e não que eu diga que sou melhor, especialmente por ficar perdida em algumas falas da Koori, e ela o provoca com uma gana especial. Mas ele demora bem mais que eu, e é genuino, eu posso sentir. Descobri que ele usa uma prótese, a tal bota diferente da armadura dele. Mas ele não comentou o motivo, e eu não perguntei.
Gastei longas horas observando o casalzinho da vez: Erika e Leiftan. Atraídos um pelo outro, mas se mantendo afastados. Não sei o que tá rolando ali, mas vai ter fogos de artifício quando eles fizerem as pazes. Eles orbitam um ao redor do outro, sempre se buscando com o olhar. Não sei se eles sequer notam que fazem isso. Essa coisa que alguns casais fazem mesmo brigados. É bonitinho de ver.
Já Lance e Nevra, o que eu posso dizer? Eu gosto de usar sexo como válvula de escape. Tenho meus rolos para desestressar. Nada sério. E esses dois. Tenho planos de tê-los. Definitivamente preciso relaxar depois de todo meu estresse e ambos cabem perfeitamente no papel. Mas o Nevra vive absorvido no papel de comandante, dando ordens onde quer que vá. O outro não sai dos cantos do barco. Eu sabia que aquela tranquilidade era só uma máscara, pois nos cantinhos, ele deixa o olhar de cachorro culpado aparecer sempre olhando o nada. Ao menos tenho liberdade de apreciar o corpo deles e imaginar algumas delícias, já que não temos livros, internet, TV. Como esse povo se diverte?
Acordei no quinto dia, morrendo de calor. Eu não via a hora de tomar um bom banho. Ali a higiene era básica e estou cansada disso. Tirei a última blusa de manga comprida, agradecendo por ter uma blusa por baixo. Ao menos não morreria de calor. Prendi meu cabelo e fui tomar café da manhã. Depois de comer, fui para fora e senti olhares para mim. Bom, muito bom. Sinto vontade de comer um chocolate e me lembro que tenho na minha mochila. Mas eu não a vi em lugar nenhum.
- Vocês viram minha mochila? Vocês a trouxeram?
- Sim. Ela deve estar embaixo da sua cama. – A Erika me respondeu.
- Embaixo?
- Sim, a cama é um baú. Dá para subir ela. Você não sabia?
- Não!
- Vem, eu te mostro.
Chegando lá, a Erika me mostrou o baú enorme embaixo da minha cama. Com cobertas e um travesseiro extra. E minha mochila. A Erika saiu do quarto e eu peguei minha mochila, encontrando chocolates, castanhas e garrafinhas de água. Meu celular e a bateria extra. Documentos. Encarei meus documentos, ainda voltaria a usá-los? Deixei eles sobre a cama, junto com minha bateria extra e as garrafinhas de água, e levei a mochila comigo, comigo. Fui até a Erika, o Mateus e a Koori e ofereci chocolate e castanhas. Espólios de guerra.
- Não acredito! Isso é ouro! Uhuuuu! – gritou o Mateus – Aí, vocês todos, vocês precisam comer isso. É muito bom!
Feliz, a Erika também pegou um chocolate. Dei outro para a Koori, junto com um pacote de castanhas. Subi as escadas, levei para o Leiftan, que estava mais perto de nós.
- Obrigada, Elise.
- Esse é chocolate e essas são castanhas salgadas. – Informei apontando para cada um.
Desci as escadas do outro lado e fui até o Nevra e o Lance. O Nevra abriu e mordeu o chocolate, e pela careta, não acho que ele gostou. Lance apenas guardou as guloseimas.
- Esse é um chocolate ao leite. Eles são bem doces. Eu prefiro os que são 60 ou 70% cacau, pois assim sentimos mais o sabor do cacau e tem menos açúcar. E olha que esse do hotel são bons, tem uns por aí que são horríveis, viu? – eu ri lembrando dos chocolates parafinados que já comi na vida. - Esses são os chocolates que o hotel deixou nos quartos e que eu peguei para comer. Pensando bem, tinha um monte no meu quarto, mas só lembrei agora que poderíamos ter trazido mais.
- Nós não tínhamos tempo, Elise. Nem espaço. – Lance comentou.
- Você tem tatuagens, Elise! – ouço a Koori comentar animada atrás de mim.
- Ah! Sim. – respondi, lembrando da tatuagem no meu ombro.
Essa Koori é animada agora que está longe do ex-marido. Bom, eu também seria com um ex-marido daqueles.
- É uma naja? – perguntou o Matheus.
- É uma Cobra Real, uma Hamadríade. Eu a conheci quando fui à China. Elas são lindas pessoalmente.
- Maneiro!
- Eu quase não vi tatuagens aqui em Eldarya, Koori. – O Mateus comentou, com a mão no queixo.
- Ah, é porque é difícil de fazer. A Elise sabe. Deve ter doído muito essa que ela tem.
- Na realidade não.
- Não?
- Não. – lembrei que eles aqui usavam espadas e arcos e flechas para lutar. Talvez não tivessem máquinas mais tecnológicas... - Mas pode ser o método. Na Terra fazer tatuagem é bem rápido e temos máquinas que fazem muitos furos rapidamente, então tudo fica mais rápido.
- Sério? Quanto tempo demorou para fazer a sua?
- Acho que foram umas seis horas depois que começou.
- Só isso? Esse desenho levaria dias aqui.
- Deus me livre. Se demorasse tanto eu também não faria nenhuma.
- Exatamente! E você tatuou a lua também?
- Sim, oito fases. Na coluna.
- Algum motivo especial? – perguntou o Nevra.
- Nenhum realmente… Apenas porque eu gosto da Lua.
Ficamos conversando, até anoitecer. Eu, Mateus e Erika contamos um pouco sobre a Terra. Cada um sobre seu país de origem. Quando a noite chegou, fomos jantar. O Leiftan parecia preferir ficar isolado já que ele não saía do leme do barco. Apenas o vi sair poucas vezes, sendo substituído pelo Nevra, mas voltando rapidamente. Antes de dormir, sorri comigo mesma, ao notar que Nevra e Lance me encaravam discretamente, mas com uma certa insistência. Talvez eu obtivesse diversão antes do que havia imaginado.
.。.:*☽*21 - Viagem de Barco III*☾*:.。.
PDV Elise.
No outro dia, tanto Nevra quanto Lance se aproximaram para pedir que eu fizesse tarefas que eu já estava programada para fazer. Aquilo me irritou um pouco, mas julguei que era o jeito deles se aproximarem e fui simpática. À noite, enquanto conversávamos, Nevra se aproximou de mim, e encarou meu pescoço com uma certa fixação, me deixando desconfortável. Ele queria me morder? Estava com sede de sangue? Era coisa de vampiro? Devo ter feito alguma careta pois a Koori acabou interpelando o vampiro.
- Está se sentindo bem, Nevra?
- Sim. Só estou curioso. - Ele respondeu sem parar de encarar meu pescoço. - Na Terra vocês usam tinta que aparece apenas a noite para se tatuar também, Elise?
- Sim. Existe. Tatuagem UV. - Respondi meio arisca. Cobrindo meu pescoço. - Ultravioleta. Por quê?
- Eu vi que você tem dois pontos no pescoço, no lado esquerdo, mas só aparecem a noite.
Encarei ele confusa. Do que ele está falando? Antes que eu respondesse o Lance começou a falar.
- É alguma constelação? Parece bem grande aqui no lado direito. Não temos ela em Eldarya.
Olhei para os dois e respondi com uma careta.
- Do que vocês estão falando? Eu não tenho nenhuma tatuagem no pescoço!
A Koori, o Mateus e a Erika encararam meu pescoço e logo se manifestaram.
- Realmente, não vejo nenhum ponto brilhante. Você vê algo Koori? – Mateus foi o primeiro a falar.
- Não. Nadinha. – ela se aproximou para examinar melhor meu pescoço. – Nada. Em nenhum lado.
- Eu também não vejo nada. – afirmou a Erika.
O Nevra e o Lance ficaram em silêncio. Então o Nevra olhou meu pescoço.
- Com licença. – ele se aproximou, examinou o lado esquerdo do meu pescoço. – Eu tenho certeza do que estou vendo, são dois pontos, aqui e aqui.
O Lance se aproximou, olhou onde o Nevra apontou.
- Nevra, eu não vejo dois pontos aí. – o Lance comentou e então apontou o lado direito do meu pescoço. – Você vê vários pontinhos aqui?
O Nevra olhou para o outro lado com atenção.
- Não.
Os dois se encararam visivelmente confusos.
- Vocês estão se sentindo bem? – perguntei. Alucinações em um dragão deveriam ser perigosas. Eu me lembro do tamanho dele. E vi o Nevra lutar, não quero estar presa em um barco com ambos alucinando. A Koori se aproximou de mim, olhou de novo meu pescoço de uma forma curiosa.
- Nevra, você vê apenas dois pontos do lado esquerdo do pescoço da Elise? Nada do lado direito, onde o Lance afirma ver vários pontos?
- Sim, eu tenho certeza. Estão aí.
- Lance, você vê vários pontos no lado direito do pescoço da Elise? Mas não vê nada do lado esquerdo, onde o Nevra afirma ver dois pontos?
- Sim.
- E você não viram nada durante o dia? Apenas à noite? Hoje?
- Na realidade eu vi ontem. - Era por isso que o Nevra estava me encarando ontem?
- Eu também. - A fala do lance confirmou minha suspeita.
- Vocês podem estar cansados. Ou podem estar vendo marcas que nós não conseguimos. Lance é o único dragão na Terra ou em Eldarya. E Nevra é o único vampiro nesse barco. Vocês podem ter a habilidade de ver algo que nenhum de nós está vendo. Ou, pode ser cansaço, pois nenhum dos dois tem dormido direito. Melhor que ambos descansem mais até o final da nossa viagem.
Os dois surpreendentemente concordaram. Entendi depois que como membro da Absinto mais experiente naquela missão, a Koori tinha a palavra final quanto à saúde dos membros participantes. Enquanto isso, fiquei com uma sensação desconfortável. Que marcas eram aquelas? Não bastava a desconfiança de que eu era faerie e ter que contar para todos sobre minhas habilidades? Agora eu tinha marcas invisíveis que nem eu mesma sabia que tinha?
Mais tarde, aproveitei para ir lá fora com meu celular ligado. Virei a câmera para mim e tentei olhar o meu pescoço. Usei o flash para fotografar e quando vi, Nevra, Lance e Leiftan estavam me encarando, como gaviões sobre uma presa. A mão do Lance e do Nevra estava em suas adagas!
- É só um celular gente. - Movimentei o aparelho diante deles, levantando as mãos em sinal de paz.
- Um o que? - perguntou o Nevra.
- Um celular. – mostrei o aparelho para eles.
O Nevra foi o primeiro a se aproximar, seguido do Lance e viram a foto que tirei.
- É uma foto. - Expliquei.
- A Erika já me falou disso, mas eu nunca tive a oportunidade de ver uma.
- Bom, aí está.
- Você disse que isso é um celular?
- Sim. Um tipo de celular. Esse é um moderno, é o que chamamos de Smartphones, telefones inteligentes. Pois tem muitas funções. O meu navega na internet, tira fotos e me deixa editar essas fotos, que é como pintar por cima das fotos. Ele também tem uma lanterna, calculadora, posso escrever textos e mandar para outras pessoas, pesquisar lugares e informações, ver mapas, ouvir músicas, gravar minha voz e imagem e mandar para qualquer pessoa que eu quiser...
Senti o olhar chocado dos três sobre mim.
- É bem comum na Terra. Na realidade toda pessoa que eu conheço tem um.
Eles se entreolharam. O Nevra estendeu a mão para o celular me perguntando.
- Posso olhar?
- Hã, tá bom.
Não tinha internet mesmo e em breve não teria mais bateria. Aquele celular não tinha muita utilidade mesmo. Mostrei a senha para ele, mostrei o básico do funcionamento e vi que ele e o Lance aprenderam rápido. O Leiftan continuou no leme e deixei o celular, para ir me deitar, encucada com as marcas no pescoço. Acordei de madrugada num sobressalto lembrando o tipo de imagens e fotos que estavam naquele celular.
Tinha muita coisa no meu celular e nem tudo era family friend. Eu organizava meu celular. Se eles olhassem as pastas certas, eles encontrariam muita coisa que.... Ai... Eu sempre salvava artes, desenhos e histórias eróticas. Tinha algumas pastas sobre diversos temas. E algumas fotos que eu trocava com alguns homens. Meu Deus, tinha fotos minhas... Me lembrei que as minhas fotos ficavam numa pasta segura, com uma senha que eu não tinha compartilhado. Mas o resto... Deitei na cama com os olhos bem fechados e acabei dando de ombros. Eu era uma mulher adulta com desejos como qualquer mulher adulta. E era exatamente isso que eles descobririam fuçando o aparelho.
No outro dia, durante o café da manhã, Lance e Nevra agiram como se não tivessem visto nada demais no meu celular. Que bom. Eles não devem ter encontrado as pastas, afinal não são habituados a mexer em um celular. E se viram, são educados o suficiente para serem discretos.
- Posso te fazer algumas perguntas sobre esses aparelhos?
- O Nevra me perguntou.
- Eu não sou especialista, mas o que eu souber, eu respondo.
- Você sabe como as câmeras funcionam?
- Desculpe, eu não sei como funciona um aparelho desses. Eu tenho uma ideia como as antigas máquinas fotográficas funcionavam, mas não entendo nada de tecnologias digitais. Nada que vá além do uso.
- Certo. – ele pareceu pensar um pouco, certeza que teve que mudar perguntas no cérebro dele. - Um aparelho desses, você pode guardar quantas fotografias?
Comi um pedaço do meu sanduíche pensando. E o Mateus respondeu para mim.
- Milhares! Um celular pode guardar milhares de fotografias. É muito difícil usar todo o espaço de um aparelho desses.
Olhei para o Mateus e precisei corrigir ele.
- Então. Não é bem assim. Depende de muitos fatores. Dois básicos são: memória do aparelho e qualidade da fotografia. A memória da fotografia é como... o tamanho do papel que você tem para escrever. Quanto mais papel, mais você pode escrever, concordam?
Vi que Lance, Nevra e Koori, entenderam. Ótimo, era para eles mesmos que eu estava explicando.
- Ótimo. Os celulares variam muito em tamanho de memória. Quanto mais novo e, normalmente, caro, mais memória ele tem. Também é possível aumentar a memória do celular com acessórios, como adicionar folhas de papel a um caderno. Custa um valor extra, e todo celular tem um limite de memória que eu posso adicionar, assim como um caderno, tem um limite de folhas que eu posso adicionar. Mas é possível.
Olhei em volta e todos pareciam compreender. Ótimo.
- A qualidade da fotografia é o segundo fator. A qualidade de uma fotografia é como a letra que eu uso para escrever na folha. Uma letra pequena, é como uma foto de pequena qualidade. Ocupa pouco espaço, mas não me permite ver detalhes e pode até ser difícil de ler se for muito pequena e mal feita. Quanto maior a letra, melhor vai ficando a qualidade da leitura. O mesmo acontece com a foto. Quanto mais qualidade, mais espaço de memória ela vai ocupar, porém, mais detalhes ela vai ter. Inclusive, boas fotos você pode ampliar muito para ver detalhes que não se pode ver a olho nu, mas que a câmera captura. Querem ver?
Peguei meu próprio celular e abri uma foto que fiz de Chicago. Mostrei para o Nevra, o Lance e a Koori como era possível aumentar uma foto e ver detalhes. Eles se espantaram.
- Portanto, se você tiver um aparelho com pouca memória e fizer fotos com alta qualidade, com certeza não poderá ter milhares de fotos. Mas se fizer fotos de baixa qualidade, pode ter milhares. Por outro lado, se tiver um aparelho com muita memória e fizer fotos de alta qualidade, ainda assim poderá ter milhares de fotos. Mas se fizer fotos de baixa qualidade, pode ter milhões de fotos. Por isso eu disse que a quantidade altera bastante.
- Certo. E todos tem esse tipo de aparelho?
- Basicamente. Sim, é bem comum. Muitas pessoas têm mais de um aparelho. E existem países muito pobres onde ainda existem pessoas que não tem celulares, ou tribos e povos selvagens que não usam celulares. Mas a maioria da população mundial tem sim.
- E vocês também se comunicam por isso?
- Sim. Se tivesse rede de celular. E não me pergunte como uma rede de celular funciona. Eu poderia ligar agora mesmo para qualquer pessoa do mundo – bastaria eu ter o contato dela, o número do telefone, e-mail, perfil público em uma rede social. Se ela estivesse disponível e quisesse me atender, poderíamos conversar usando apenas a voz, ou por vídeo, que é voz e aparência.
Peguei o celular, mirei eles gravando. Então virei o celular e mostrei eles na tela em vídeo.
- E você ainda pode fazer muitas outras coisas, inclusive escrever documentos e mandar por esse aparelho?
- Sim. Inclusive posso escrever o documento e mandar imprimir. Já fiz isso muito. Antes que me perguntem, – falei isso olhando o Lance com um sorriso – Imprimir é como chamamos quando mandamos um documento digital, feito em um aparelho como este celular, e mandamos uma impressora, que é outro aparelho, escrever ele em um papel para nós.
- Qual o sentido de ter dois aparelhos para fazer o que você pode fazer sozinha? – perguntou a Koori.
Peguei meu aparelho, abri meu aplicativo para ditar textos e comecei a falar.
- “É mais rápido escrever nos aparelhos e se eu errar posso apagar sem deixar marcas no papel também posso apenas ditar o texto e o aparelho irá escrever para mim deixando minhas mãos livres para fazer qualquer outra coisa ponto final depois preciso apenas revisar e mandar imprimir ponto final”.
Mostrei para eles o texto que eu tinha acabado de ditar e a Koori entendeu a vantagem.
- E isso é apenas o que um celular pode fazer. Computadores são ainda mais potentes. E claro que estou falando de um celular, que tenta ser multifuncional. E como tudo que é multifuncional, ele não é profissional em nada. Se você pegar uma câmera fotográfica profissional, aí sim a coisa chega em outro nível. Você pode tirar uma foto a quilômetros de distância e ver os poros de uma pessoa. É surreal a potência. Fora os satélites que também mapeiam toda a superfície do planeta e tiram fotos...
- Acho que eles entenderam, Elise.
A Erika me chamou atenção. Eu olhei para os três na minha frente e a expressão deles era, para dizer o mínimo, tensa.
- O que foi?
- A tecnologia humana avançou muito.
- Sim. Bastante. Especialmente nos últimos anos.
- Obrigada, Elise.
- De nada.
Nevra e Lance se levantaram e saíram juntos. Acho que vão conversar.
- Eles ficaram preocupados. – disse a Erika.
- Com o que?
- Pode haver humanos em Eldarya. E a relação de humanos com os faeries nunca foi boa.
Me lembrei de como meus pais sempre me aterrorizaram para nunca deixar ninguém saber sobre minhas habilidades. Será que eles eram faeries? Será que sabiam e nunca me contaram? Faria sentido todo o medo. O ser humano sempre teve medo do desconhecido. Somos uma raça capaz de grandes sacrifícios e grandes terrores. E nossa história não é nada pacífica. Não me causa estranheza essa preocupação. E se os eldaryanos tiverem que enfrentar os humanos com flechas, espadas e adagas. Não há dúvida de que lado vencerá... de lavada.
.。.:*☽*22 - O Preço do Fanatismo*☾*:.。.
PDV Mia.
Estamos há um mês na balsa e, milagrosamente, não enfrentamos nenhuma tempestade, nenhum ataque de nenhuma fera, nada de ruim tinha realmente acontecido. Ninguém acreditava mais estar na Terra. Não depois de tanto tempo sem resposta de rádio, sem sinal de vida, seja um avião no céu, um navio no horizonte, qualquer coisa que nos lembrasse de casa. Exceto por nós mesmos, tudo ali era diferente da Terra, e não era possível dizer isso em voz alta. Bom, não era antes do culto. Agora eles diziam abertamente que estávamos no purgatório.
- Vocês deveriam rezar conosco. – Lara nos convidou.
- Obrigado, mas já rezamos do nosso jeito. – Claude agradeceu.
- Serão bem vindos conosco. - Ela disse e saiu, séria.
Eu dei um sorriso amarelo. Pessoalmente, não ligaria de fingir participar do culto deles, mas Claude me disse que se eles percebessem, ficariam furiosos. E esse pessoal fanático era mais gentil com os que eles tentam converter do que com os infiéis. Por isso decidi acatar a sugestão dele e não aderir ao culto deles. Mas víamos com preocupação as pessoas realizarem autoflagelação dia após dia, e agora nos olharem de forma acusadora. Como se o fato de nós não nos unirmos ao culto deles ou não nos auto flagelarmos como eles fosse a causa de tudo estar como estava. Os dois homens do Capitão também tinham sido cativados para o culto e agora também se batiam com cordas, em um festival de horror.
Nós raramente falávamos, evitando chamar atenção para nossa existência. Além disso, recentemente eles haviam começado um discurso de sacrifício, sobre a necessidade de sacrificar um cordeiro. Aquilo estava saindo completamente do controle e nós não podíamos fazer nada além de assistir. Me sentia dentro do livro O Nevoeiro do Stephen King, sem a diversão de ser uma mera leitora. Eu adoraria poder fechar as páginas dessa história e ir dar um passeio agora. Mas nós três, sequer podíamos nos aventurar lá fora, pois havia apenas o oceano ao nosso redor. Olheiras grandes demais eram a prova das noites mal dormidas em nossos rostos. Além de estarmos todos emagrecidos pelo racionamento de comida e água.
Claude tinha conseguido uma arma e, contra minhas crenças, eu agradecia que ele tivesse como se defender, pois eu podia sentir as ondas emocionais que partiam dos membros da tripulação naquele momento, e não era nada bom. Eu não sabia o que tinha acontecido exatamente, mas tinha certeza que aquela sombra estava envolvida. Mas tampouco sabia o que fazer para afastar aquela coisa de perto deles. Quando perguntei a Claude se ele via aquela sombra, mesmo curioso ele negou, e me pediu que ficasse quieta, evitando chamar atenção sobre mim.
Quando a comida acabou, percebi que precisava fazer algo, qualquer coisa. Conversei com o Capitão e sugeri que usássemos o sinalizador, para tentar atrair alguma embarcação. Talvez nesse lugar eles não usassem rádio, mas deveriam enxergar. Não tínhamos mais comida, tínhamos pouco diesel, a bateria dos rádios tinha acabado. Era agora ou nunca. Claude não tinha uma opinião formada, preocupado demais com a tripulação fanática que tínhamos agora. O Capitão concordou e decidiu usar o sinalizador à noite, quando chamaria mais atenção. Tínhamos dois tiros, ele usaria um por noite.
Assim que o primeiro sinalizador subiu pelo céu, uma horda enlouquecida de ódio veio para cima de nós, nos obrigando a nos refugiarmos dentro da cabine do Capitão. Entretanto ela não oferecia muita proteção e logo eles quebraram as janelas e ameaçavam entrar aos gritos, ignorando os próprios ferimentos nos cacos de vidro.
- Vocês nos condenaram!
- Vamos todos morrer!
- Infiéis!
- Precisam morrer!
- Vamos sacrificá-los!
Eu estava pronta para erguer uma barreira mental quando Claude disparou a arma, paralisando-os. Eles gritavam enquanto se afastavam, ameaçadores. Mas não voltaram a se aproximar. Nós não tínhamos mais um lugar seguro para ficar na balsa. Passamos a noite em claro, vigilantes, à espera do próximo ataque, que acabou não vindo. Logo o grupo se uniu para suas orações, ainda emitindo emoções extremamente negativas, com aquela sombra agitada circundando-os.
- Nós não vamos conseguir passar outra noite em claro. – o Capitão comentou.
- Que escolha temos?
- Fazer turnos de vigília.
- Pode ser. Mas faremos vigílias em duplas, para evitar que um caia no sono, deixando os outros dois descobertos.
- Certo.
Estávamos discutindo isso quando sentimos o primeiro baque na estrutura da balsa. Em seguida, tentáculos gigantes começaram a surgir nas laterais da frágil embarcação que nos mantivera vivos até o momento, o ruído do metal resistindo à pressão agredindo nossos ouvidos. A balsa não havia sido feita para enfrentar um monstro marinho.
PDV Mia - 7 anos atrás
- As habilidades da sua raça não se concentram apenas no campo emocional e mental, Mia. – me disse a mulher albina.
- Como assim?
- Sentir as emoções e sensações dos que estão ao seu redor. Você já sabe fazer isso.
- Sim, desde criança.
- Exato, essa é uma habilidade inata. Você teve uma mãe sábia que não inibiu as características da sua raça, apenas te ajudou a controlar elas.
- Eu herdei dos meus pais?
- Não. Sua raça não depende de herança genética para ter as habilidades que tem. Ela é inerente à bênção que dei às suas almas há muito tempo.
Assenti séria.
- Todas suas habilidades exigem treinos. Mas é importante que você saiba, que sua raça possui habilidades físicas também.
- Eu sei.
- Hoje vamos praticar o escudo mental. Você pode usá-lo ao seu redor ou ao redor de outras coisas ou seres, protegendo-os física e energeticamente de ataques.
- Maneiro.
- Sim, maneiro. – ela riu, repetindo minhas palavras. - Mas você só tem essa habilidade depois de adquirir aura.
- Ou seja...
- Você só consegue ter suas habilidades mentais porque Valkyon fundiu suas escamas em seus corpos, dando a você aura desse universo.
- Ok. - Eu ainda não havia entendido aquela história, mas eu havia entendido que alguma coisa havia sido feita.
- Vamos treinar?
- Vamos.
- Mentalize um campo de proteção ao redor dessa flor. Perceba que não é abstrato, você realmente verá o campo de proteção se projetar ao redor da flor.
Levei dias até conseguir projetar o tal campo de proteção, mas uma vez que consegui, nunca mais esqueci, e se tornou fácil fazê-lo em diferentes formas e tamanhos.
PDV Mia - Dias atuais.
Eu havia me lembrado desse sonho três anos após o coma. E havia levado meses até ter coragem de testar o campo de proteção. E para minha surpresa, era real. Nunca compartilhei aquela informação com ninguém. Era perigoso demais ser a pessoa que faz o que ninguém mais faz na Terra. Pessoas poderiam ser mortas por muito menos. Tampouco imaginei precisar usar contra uma criatura desse tamanho. Projetei um escudo mental como a mulher albina havia me ensinado, afastando os tentáculos daquela criatura da balsa, evitando que ela provocasse mais danos à nossa estrutura. Mas, ao fazer isso, as pessoas viram o campo de proteção prateado ser projetado a partir do meu corpo.
- Bruxa!
- Ela invocou o monstro!
- Queimem ela!
Concentrada em manter o campo de força que era pressionado sem piedade pelos tentáculos daquela criatura misteriosa, senti algo bater forte na minha cabeça me causando uma dor aguda e uma confusão completa. Caí de joelhos completamente confusa e tonta, subitamente nauseada. Barulho de tiros e gritos ao meu redor piorando tudo. Alguém me abraçando e meu corpo se contorcendo para vomitar o vazio que está dentro de mim, que não como direito há dias, e mal bebi água hoje. Minha vista tingida de vermelho e, eu acho que vi dragão atacando o monstro de tentáculo. Antes da escuridão me tomar por completo.Apashe - Witch (ft. Alina Pash) - Tradução
sangue
Крові
sangue
Крові
sangue
Крові
sangue
Крові
Sangue, sangue
Крові, крові
sangue
Крові
Sangue, sangue, sangue, sangue
Крові, крові, крові, крові
Não morto - vivo
Ні не мертвої - живої
Para fluir, despeje, ferva
Щоб текла, лилась, кипіла
Ela não matou para criar
Не вбивала, щоб творилаNo coração, no coração, no coração, no coração
В серце, в серце, в серце, в серце
Para que ouvisse hertz
Щоб воно почуло герци
Intervalos, semitons
Інтервали, напівтони
Forças para dar newtons
Сили щоб дало ньютониNos músculos, nos músculos, nos músculos, nos músculos
В м'язи, в м'язи, в м'язи, в м'язи
Eles caíram em si imediatamente
Схаменулись щоб одразу
E eles me levaram embora
І несли мене подалі
Como pedais invisíveis
Мов невидимі педаліNoite após noite, noite após noite
Ніч у ніч, вночі щоночі
(Toda noite)
(Щоночі)
Não feche seus olhos
Не заплющувати очі
(Não feche os olhos)
(Не заплющувати очі)
Não pare, não fique
Не спинятись, не стояти
(Não pare, não fique)
(Не спинятись, не стояти)
Viva, seja e voe
Жити, бути і літати
(Viver, ser e voar)
(Жити, бути і літати)Viva, seja e voe
Жити, бути і літати
Sangue, sangue, sangue, sangue
Крові, крові, крові, крові
Viva, seja e voe
Жити, бути і літати
Fluir, ferver
Щоб текла, кипіла
Viva, seja e voe
Жити, бути і літати
Para criar
Щоб творила
Viva, seja e voe
Жити, бути і літатиmeu deus morto era gringo
My dead God was gringo
Você não sabe sobre minha linguagem
You don't know about my lingo
Viver e lutar é meu Limbo
To live and fight is my Limbo
Mas em minha alma o arco-íris brilhante
But in my soul the shining rainbowPara criar
Щоб творилаPara criar
Щоб творилаSer e voar
Бути і літати
Para criar
Щоб творила
Viva, seja e voe
Жити, бути і літати
Forças para dar newtons
Сили щоб дало ньютониViver e lutar é meu Limbo
To live and fight is my Limbo
.。.:*☽*23 - Viagem de Barco IV*☾*:.。.
PDV Lance.
Um dragão. Surpreso, me concentrei na direção da aura. Definitivamente essa aura é de um dragão. Busquei com o olhar a direção de onde vinha a aura, parecia ser perpendicular à nossa rota. Há anos não sentia a aura de um dragão... Depois do meu irmão, nunca imaginei que voltaria a sentir uma. Mas agora... sim, definitivamente era a aura de um dragão à distância.
Fui rapidamente até o Nevra, e o vi olhar algo distante no céu, na mesma direção da aura.
- Nevra.
- Sim?
- Estou sentindo a aura de um dragão.
Nevra me encarou com surpresa.
- Tem certeza?
- Sim. – Indiquei a direção com um gesto leve de cabeça. – Naquela direção.
- Interessante. - O olhar do vampiro voltou a se concentrar no horizonte escuro e esperei em silêncio. - Acabei de ver um sinal luminoso naquela direção. Pareceu um antigo sinal de socorro.
- Sinal luminoso? – olhei o céu sem ver nada. Mas a visão do vampiro era superior à minha. – O que faremos?
- Não vi nada voando no céu. - O vampiro esquadrinhava o céu com seu olho bom. - Pode ser devido à escuridão. Mas fique pronto.
- Certo.
- Vou falar com o Leiftan para mudarmos a rota.
Voltei para minha posição com o coração disparado, cheio de esperança. Tudo indicava que eu encontraria outro dragão, depois de tantos anos. Senti o navio mudar de rota suavemente. A noite era alta e, provavelmente, estávamos muito distantes da embarcação, já que eu não havia visto o sinal luminoso. Nevra nos informou que chegaríamos ao nosso destino depois do amanhecer. Navegamos silenciosamente a noite toda. Pouco antes do amanhecer, Nevra acordou todos e começou a nos organizar.
- Avistamos um pedido de socorro marítimo ontem à noite. Fiquem atentos. Pode ser uma armadilha, podem ser pessoas necessitadas de socorro. Não sabemos o que nos espera. Lembrem-se, nós não atacamos antes em nenhuma hipótese, e prestamos socorro a todos os necessitados dentro das nossas condições.
Depois disso ele distribuiu as ordens de cada um, organizando o papel de todos para a abordagem à embarcação. Ainda estávamos distantes demais para saber detalhes da, mas à distância, ela era estranha, achatada, e não parecia adequada para navegação marítima. Apenas Nevra tinha uma visão mais adequada da estrutura. Estávamos nos aproximando rapidamente quando vimos um Kraken atacar a estranha embarcação a partir das profundezas.
- Lance! - ouvi Nevra chamar meu nome e entendi o que deveria fazer.
Aquele navio era preparado para suportar minha transformação em dragão, e foi o que fiz. Me transformei e parti para o ataque. Um kraken já era uma criatura difícil o suficiente de controlar. Mas uma série de mascotes e criaturas de Eldarya vinham apresentando comportamento errático e agressividade devido a uma contaminação misteriosa. Esse kraken provavelmente estava contaminado, pois essa raça não ataca dessa forma. Usualmente eles podem ser vistos a quilômetros de distância, cercados de criaturas afins e uma tempestade que nunca os abandona.
Conforme me aproximava pelos ares vi, surpreso, uma barreira de luz prateada semi transparente afastando os tentáculos do Kraken da frágil e estranha embarcação. Mas logo em seguida, a barreira prateada desapareceu e ele voltou a atacar sem encontrar a mesma resistência. Eu tinha certeza de que o dragão estava ali, e ele não deveria conseguir ou saber se transformar para se defender, pois até agora não havia feito nada. Vi vários seres que me pareceram humanos na embarcação e para meu espanto, ao invés de temerem o Kraken, eles atacaram dois membros deles. Ouvi estampidos agudos e um homem tentando proteger uma mulher que parecia estar desmaiada nos braços dele.
Ataquei o Kraken, atraindo a atenção dele para mim e afastando ele da embarcação. Não era difícil matar um Kraken se eu o pegasse de jeito, e esse estava furioso e agressivo demais para fugir para o fundo do mar como era de se esperar de um Kraken ao se deparar com um dragão. Ele me seguiu e tentou me atacar, enquanto ataquei os pontos fracos dele, sendo obrigado a matá-lo, pois não tínhamos antídoto suficiente para tratá-lo. Sobrevoei a embarcação vendo o Nevra se aproximar da embarcação. Eu não poderia pousar agora, então voei em círculos sobre eles.
- Bruxa!
- Ela trouxe os monstros até nós!
- Queime-na!
- Matem-na!
- Bruxa!
Mesmo à distância pude ouvir os gritos. O que estava acontecendo ali embaixo? Busquei a aura de dragão e percebi que era a mulher desacordada e ferida, nos braços do homem loiro, com uma arma apontada ora para um grupo de humanos, ora para o Nevra que estava tentando acalmar ele. Ela tinha sido ferida no ataque do Kraken ou pelos tripulantes daquele barco estranho?
- Não se aproximem! Ninguém se aproxima!
- Calma. Nós não pretendemos machucar ninguém.
Vi o Nevra olhar para mim. Se eu o conhecia, não ia se meter no meio daquela briga, nem arriscaria nossa segurança.
- A mulher desacordada é o dragão, Nevra.
Eu sabia que somente o Nevra me ouviria. Todos os demais não tinham ouvidos de vampiro para me ouvir sussurrar. O vampiro voltou sua atenção para o homem loiro.
- Eu não sei o que está acontecendo aqui. Viemos por causa do sinal luminoso de ontem a noite. Meu amigo ali, - ele me indicou - protegeu vocês do ataque do Kraken, mas nós não vamos levar ninguém contra a vontade. Aquelas pessoas parecem querer machucar você e sua amiga, por que vocês não vem conosco? Nós podemos cuidar de vocês. Não pretendemos machucar ninguém.
Vi o homem loiro olhar o grupo que parecia sedento pelo sangue da jovem, ele demorou alguns minutos até responder o Nevra.
- Tudo bem. Você pode me ajudar com essas mochilas?
- Certo.
O loiro se levantou, tirou as mochilas grandes que estavam nas costas dele e da morena, e seguiu com a morena nos braços como se ela não pesasse nada, e ela realmente parecia pequena, pequena demais para um dragão, mas poderia ser meu ponto de vista aéreo. Nevra pegou duas mochilas grandes e arremessou sem delicadeza para o Mateus, que estava em nosso navio. Eu voei baixo o suficiente para manter a tripulação ensandecida longe dos dois e do nosso barco.
- Me dê ela – Nevra pediu.
- Não. – o loiro respondeu.
- Você não está em condições de levá-la. Apenas atravesse em segurança e eu a levarei, não se preocupe.
O loiro pareceu ter dúvidas, mas acabou cedendo e a entregou, desacordada, para o Nevra. Atravessou rapidamente. Pude ver que ela estava ferida na cabeça. Logo em seguida o Nevra atravessou tranquilo para nosso barco e a deitou no chão, com delicadeza, ao lado do loiro. Mateus e Koori continuavam em suas posições. Nevra se virou para o grupo na embarcação precária.
- Essa é sua última chance. Se quiserem vir conosco, venham. Estarão seguros conosco. Os levaremos até a Guarda de Eel e serão acolhidos.
- Vá embora aberração!
- Demônio!
- Desapareça e leve a bruxa!
- Volte para o inferno!
O homem era loiro e alto, mais alto que eu, forte, vestia uma calça clara cheia de bolsos, uma bota pesada e uma camiseta preta justa. Ambos estavam com rostos emagrecidos e com aparência muito cansada. Ele havia entregado a arma a contragosto para o Nevra, e demonstrava uma preocupação intensa no rosto enquanto olhava a morena ser cuidada pela Koori. Era claro que ele era um soldado treinado, pela forma como havia se posicionado, perto o suficiente para proteger a morena, mas de forma que pudesse nos observar, pronto para defender ambos.
- Qual o seu nome? – ouvi o Nevra perguntar depois que nos afastamos.
- Claude. – ele respondeu ainda um pouco desconfiado, olhando os cuidados dispensados à morena e a nós com a mesma atenção.
- E ela?
- Mia. Como ela está? – ele perguntou para a Koori.
- Foi um corte superficial. Só vou limpar e fechar, nem vai ficar cicatriz. O impacto me preocupa mais, parece que o cérebro dela foi sacudido. E ela está exausta, vamos deixá-la dormir sob observação.
- Eu fico com ela.
- Ela pode ficar com uma de nós.
- Eu fico com ela, nós somos namorados.
- Até que ela acorde e confirme essa informação, ela ficará sob supervisão da Koori, que cuidará dela. – Nevra afirmou em um tom que não admitia contradição.
- Se alguém machucar ela, eu acabo com vocês.
- Ninguém vai machucá-la, mas entenda que nós não deixaremos uma mulher desacordada, sozinha, com um homem desconhecido, sem termos certeza que ela está em segurança. Mesmo que você pareça realmente desejar a segurança dela. – Nevra tranquilizou ele.
- Certo. – Claude parecia mais confiante. – Cuida bem dela, ok? – a voz dele tinha um pedido sincero.
- Pode deixar. – Koori sorriu para ele. – Me ajude a levá-la para o quarto.
Ele a levou com extremo cuidado e gentileza até o quarto e então voltou e se sentou conosco, para comer e beber algo. Koori se ocupou de examiná-lo enquanto isso. Todos nos apresentamos e ele começou a nos contar o que havia acontecido. Era muito similar à narrativa de Elise. O tremor e o transporte súbito da Terra para Eldarya, mas no caso deles, de uma balsa.
- Por que eles atacaram sua namorada? - Nevra perguntou. Ele não havia relatado essa parte.
Ele nos encarou como se decidisse se contaria ou não. Então encarou a Koori, especificamente as caudas dela, depois me olhou e finalmente parou o olhar nas orelhas do Nevra.
- Vocês não são humanos, são? - ele perguntou.
- Não. – Nevra respondeu com seriedade. – Eu sou um vampiro, a Koori é uma kitsune, Érika é uma Aengel, e como você pôde ver antes, Lance é um dragão.
Claude curvou os ombros como se estivesse cansado, então voltou a erguê-los, como se lembrasse que devia evitar demonstrar fraqueza. Mentalmente o parabenizei, excelente soldado.
- Certo... A Mia... Ela consegue fazer coisas... Coisas especiais. E a tripulação percebeu isso quando ela nos defendeu daquela criatura, o tal Kraken. – era o momento que eu esperava. – Ela conseguiu afastar, de alguma maneira, os tentáculos daquela coisa da nossa balsa... Uma espécie de luz prateada que saia dela. Era visível o esforço dela em nos proteger, todos vimos uma energia partir dela e criar uma barreira, afastando os tentáculos da criatura da balsa. E então alguém a atacou, acertando em cheio sua cabeça! Eu estava chocado vendo o que ela era capaz de fazer. Um minuto antes achei que todos morreríamos, e no seguinte, ela era capaz de emitir essa espécie de escudo protetor! Eu abri a guarda... – ele balançou a cabeça visivelmente abalado. - Qual o sentido de atacar alguém que estava visivelmente nos defendendo?
- Não tinha como você prever a reação deles. – eu disse.
- Só depois que percebi que foi justamente o Capitão da balsa que a atacou.
Após nos contar o que tinha acontecido, Koori obrigou Claude a ir dormir pois ele estava visivelmente exausto, e a poção de sono colocada por ela discretamente na bebida dele fez sua parte. Cedi meu quarto e passei a dividir o do Mateus. Ambos dormiram por quase dois dias. No segundo dia, Claude acordou mais cedo e estava comendo conosco, quando ela finalmente se juntou a nós. Prendi a respiração involuntariamente quando a vi aparecer, o rosto inchado de tanto dormir, um olhar curioso, as olheiras já quase desaparecendo. O curativo na cabeça chamando atenção. Ela tem um rosto oblíquo, olhar doce, curioso ao nos ver, e lábios cheios e carnudos que me lembraram imediatamente morangos pistaches cobertos com chocolate, vermelhos no centro, tom de chocolate ao leite contornando. Seus cabelos cacheados estavam completamente bagunçados, parecendo uma nuvem misteriosamente presa em sua cabeça e ao mesmo tempo revoltada com a situação, lutando por liberdade. Linda, cada pedacinho dela era perfeito.
Seus olhos correram pela cabine, desconfiados e admirados. E surpresa quando me viu. Por que ela ficou surpresa?
- Olá? - O som da voz dela, meio rouco, também é doce e extremamente agradável. E me causa reações que há tempos eu não sentia.
- Finalmente acordada! – Koori se levantou para recebê-la.
- Bem-vinda! – Érika deu um sorriso para ela.
- Bom dia, flor do dia! – Claude se levantou rápido e lhe deu um abraço que a tirou do chão, arrancando risadas de seus lábios.
- Claude! Eu preciso respirar seu maluco! – a voz dela ainda estava rouca bem rouca.
- Vem comer, você vai adorar a comida deles.
Vi os olhos dela brilharem para a mesa de comida. Não era muito farta como na Guarda, mas realmente tinha coisas muito boas ali. Ela se sentou tímida, disfarçando diversos olhares na minha direção enquanto nos apresentamos. Ela ouviu com atenção e simpatia a todos, até chegar meu momento de me apresentar.
- Meu nome é Lance, sou o líder da Obsidiana. – Me apresentei por último. Ela me encarou com um olhar confuso e vi seu olhar percorrer meu rosto, como se estivesse me analisando, o que me deixou desconfortável, considerando que o namorado dela está bem ao lado dela. Desviei meu olhar para ele, que também parecia achar estranho o silêncio dela. Vi ele cutucá-la nas costelas com o cotovelo, discretamente, e ela finalmente parar de me encarar e responder, com o rosto ganhando uma coloração rubra, como uma rosa que descobre subitamente que é vermelha.
- Muito prazer. - Ela finalmente respondeu para todos nós sorrindo.
Depois de comermos, Claude assumiu bravamente a responsabilidade de explicar para ela o que havia acontecido. Seu olhar se encheu de tristeza enquanto ele falava, e algumas lágrimas rolaram pelo seu rosto delicado. Mia confirmou sua capacidade de projetar escudos de proteção, mas sinto que ela não contou tudo que é capaz. O que é esperado considerando as circunstâncias. Só que escudos mentais não são uma habilidade de dragões. Aengels tem essa habilidade e ainda assim, não é dessa forma. O escudo dos Aengels é invisível, o dela é luminoso, como prata transparente, iluminando o ambiente ao redor. Ao mesmo tempo, analiso a aura dela, e confirmo não apenas a intensidade como a similaridade com a de Valkyon. Ela tem a mesma aura do meu irmão. Como pode? Pelo que eu li, cada dragão tem uma aura única, individual. Sinto saudade e culpa apertar dolorosamente meu peito. Eu conseguiria localizá-la a grande distância, assim como fazia com meu irmão antigamente.
Penso na forma como ela estava me encarando, e em como seu olhar continua a me buscar, indagadora e confusa. O olhar em seu rosto parecia ser de reconhecimento e, ao mesmo tempo, confusão. Ela deve estar surpresa com minha aura, e confusa com o que significa. Eu sei que ela é um dragão. Eu e Valkyon desconfiamos do que éramos assim que saímos de nossos ovos. É impossível que ela ache que é humana tendo saído, provavelmente de um ovo. No entanto, ela nunca deve ter visto outro dragão, logo nunca viu uma aura de dragão. Ela não deve ter ideia do que eu sou. Talvez não tenha certeza nem do que é. Observo a pequena morena conversando com o namorado. Encontrá-la me faz questionar se existem outros dragões na Terra. E alívio. Eu não sou mais o último dragão.
O resto da viagem para o QG seguiu tranquila. Mia se mudou para o quarto de Claude. Os dois além de íntimos parecem ser muito amigos, e tem uma cumplicidade invejável. Claude antecipa o que a Mia precisa e Mia sabe com antecedência o que Claude vai querer. Quando comem, ela rouba comida do prato dele, que obviamente pega comida que ela gosta a mais só para ela roubar. Eu faria isso por ela também. E eles se entendem só com o olhar. Ainda assim, sigo encontrando o olhar de Mia me analisando discretamente, mesmo que ela tenha ficado distante, dividida entre dormir muito, conhecer todos no barco, e nos agraciando com as risadas mais lindas, leves e contagiantes que já ouvi na vida. Elise é mais quieta, gosta de observar as pessoas, mas também se juntou ao grupo após a chegada cativante de Mia. Ela tende a falar muito menos que Mia, e mais que Claude, que parece estar sempre em guarda. Logo terei a chance de saber mais sobre nossos hóspedes.Heaven Knows - The Pretty Reckless (Tradução)
Jimmy está na parte de trás com um bolso de alta
Jimmy's in the back with a pocket of high
Se você ouvir atentamente, você pode ouvi-lo chorar
If you listen close, you can hear him cryOh Senhor, o céu sabe, nós pertencemos lá embaixo (cante)
Oh Lord, heaven knows, we belong way down below (sing it)
Oh Senhor, o céu sabe, nós pertencemos lá embaixo
Oh Lord, heaven knows, we belong way down below
Bem lá embaixo, bem lá embaixo
Way down below, way down belowJudy está no banco da frente recolhendo lixo
Judy's in the front seat picking up trash
Vivendo no desemprego, tenho que ganhar esse dinheiro
Living on the dole, gotta make that cash
Não vai ser bonito, não vai ser doce
Won't be pretty, won't be sweet
Ela está apenas sentada aqui em pé
She's just sitting here on her feetCantando oh Senhor, o céu sabe, nós pertencemos lá embaixo (vá)
Singing oh Lord, heaven knows, we belong way down below (go)
Oh Senhor, o céu sabe, nós pertencemos lá embaixo (cante)
Oh Lord, heaven knows, we belong way down below (sing)
Oh Senhor, diga-nos, nós pertencemos lá embaixo
Oh Lord, tell us so, we belong way down below
Oh Senhor, diga-nos, nós pertencemos lá embaixo
Oh Lord, tell us so, we belong way down below
Bem lá embaixo, bem lá embaixo
Way down below, way down below
Bem lá embaixo, bem lá embaixo
Way down below, way down belowEu já tive dias melhores, cara
I've had better days, man
já vi dias melhores
I've seen better days
Eu tive maneiras melhores, cara
I've had better ways, man
eu conheço maneiras melhores
I know better waysUm, dois, três e quatro
One, two, three and four
O diabo está batendo na sua porta
The devil's knocking at your door
Pego no olho da mentira de um homem morto
Caught in the eye of a dead man's lie
Comece sua vida com a cabeça erguida
Start your life with your head held high
Agora você está de joelhos com a cabeça baixa
Now you're on your knees with your head hung low
Grande homem lhe diz para onde ir
Big man tells you where to go
Diga a eles que é bom, diga a eles que tudo bem
Tell them it's good, tell them okay
Não faça nada que eles dizem
Don't do a goddamn thing they sayOh Senhor, o céu sabe, nós pertencemos lá embaixo
Oh Lord, heaven knows, we belong way down below
Oh Senhor, diga-nos, nós pertencemos lá embaixo
Oh Lord, tell us so, we belong way down below
Bem lá embaixo, bem lá embaixo
Way down below, way down below
Bem lá embaixo, bem lá embaixo
Way down below, way down belowEu vi maneiras melhores, cara
I've seen better ways, man
eu conheço maneiras melhores
I know better ways
Eu já vi dias melhores, cara
I've seen better days, man
já tive dias melhores
I've had better daysGina está na parte de trás com um bolso de alta
Gina's in the back with a pocket of high
Se você ouvir atentamente, você pode ouvir o choro
If you listen close, you can hear the cryingOh Senhor, o céu sabe, nós pertencemos lá embaixo
Oh Lord, heaven knows, we belong way down below
Oh Senhor, diga-nos, nós pertencemos lá embaixo (cante)
Oh Lord, tell us so, we belong way down below (sing it)
Oh Senhor, o céu sabe, nós pertencemos lá embaixo
Oh Lord, heaven knows, we belong way down below
Oh Senhor, diga-nos, nós pertencemos lá embaixo
Oh Lord, tell us so, we belong way down below
Bem lá embaixo, bem lá embaixo
Way down below, way down below
Bem lá embaixo, bem lá embaixo
Way down below, way down belowBem lá embaixo, bem lá embaixo
Way down below, way down below
Bem lá embaixo, bem lá embaixo
Way down below, way down below
Bem lá embaixo, bem lá embaixo
Way down below, way down below
.。.:*☽*24 - Viagem de Barco V*☾*:.。.
PDV Mia.
Observei discreta o Chefe da Obsidiana, Lance. Ele era extremamente parecido com minha lembrança do Valkyon, uma versão mais madura, o que fazia sentido, já que minhas memórias eram de 7 anos atrás. Mas havia outras diferenças, como seus olhos azuis cristalinos, duas cicatrizes que pareciam antigas atravessando seu nariz. Seu rosto parecia mais bem formado, como é esperado de um homem adulto, mais velho, e tinha aquela barba por crescer que marcava sua mandíbula. Mesmo seu cabelo, embora igualmente branco, tem um reflexo diferente, mais azulado quando a luz bate. Mas quando eu ignorava esses detalhes estéticos, que podiam ser facilmente modificados com tinta de cabelo e lentes de contato, ele parecia uma versão mais velha do Valkyon, eu tinha certeza. Os mesmos olhos, o mesmo formato de lábios, o mesmo maxilar, o mesmo nariz. Talvez uma ou outra diferença discreta como o nariz dele não ter o mesmo ângulo do Valkyon, será que ele já quebrou o nariz? Mas confirmar isso exigiria que eu buscasse meu antigo livro de desenhos, o que era impossível julgando que, se entendi bem, estou em outro mundo. No final das contas, eu poderia jurar que estava diante do Valkyon mais velho, usando lentes de contato azuis.
Até esperei que ele me reconhecesse, o que obviamente não aconteceu, gerando um momento estranho. Que vergonha! Como eu pude ficar encarando um desconhecido esperando que ele me reconhecesse de um sonho durante um coma, sete anos atrás? Eu deveria me estapear por uma atitude tão estúpida. Como se a vergonha não tivesse sido suficiente, agora não consigo controlar minha vontade de observá-lo. Eu sonhei com ele? Ou com alguém parecido com ele? Seus gestos são calmos e controlados, com um ar triste enquanto observa o horizonte. E ele quase nunca interage conosco, exceto na hora das refeições, isso quando ele faz as refeições conosco. Se eu não me cuidar, ele vai achar que estou interessada nele, considerando as diversas vezes em que fui pega por ele observando-o. Por mais que eu tente me controlar, ele me atrai como um ímã, ele é um sonho materializado, literalmente, caminhando pelo convés, com sua calma, inconsciente de que me atormenta. Ele só não me transmite a paz profunda que o Valk tinha.
Observo os outros membros dessa tripulação. O Nevra me assusta com sua cara sempre fechada e olhar analítico, eu sempre espero uma ordem quando cruzo com ele. Parece até o diretor do meu departamento. Credo. A Koori e o Mateus me causam estranheza. A Koori tem uma personalidade divertida, mas as brincadeiras dela me deixam desconfortáveis, e o Mateus... É a primeira vez na minha vida que estou cercada de pessoas e não estou incomodada pelo ruído emocional delas. E isso me deixa tão feliz. E quando o Mateus se aproxima, ele me incomoda, e afoga um pouco da minha felicidade. Não é ele, mas o ruído que vem com ele. Acho que ele percebeu que não o curto pois tem evitado se aproximar de mim.
A Erika me parece muito calma e tranquila, mas gostei especialmente de conversar com o Leiftan. Como ele é simpático! Sempre gentil e com respostas calmas. Eu amo pessoas assim, calmas e tranquilas. Ele me explicou sobre os tais mascotes que existem por aqui, e por que eles são diferentes dos animais da Terra. Aparentemente são mais inteligentes e capazes de interagir conosco. Ele me disse o nome de cada um dos mascotes com os quais cruzamos durante nosso tempo na balsa.
Como estarão as pessoas na balsa? O Nevra me informou que eles enviaram um mascote na frente, para avisar a Guarda sobre a situação das pessoas na Balsa. Mas eu não falei da sombra, nem Claude. Eu me sinto segura com eles, e pelo que sondei das emoções deles, exceto pelo Leiftan, que misteriosamente eu não consegui sondar sequer tentando, eles parecem honestos. Não senti nenhuma intenção ou sentimento que me pareça negativo da parte deles. Talvez eu deva falar da sombra, será?
- Hey, Mia. - Ouço a voz do Claude me chamar baixinho, enquanto ele parou ao meu lado. - Você precisa ver o mascotinho que eles tem lá dentro.
Encarei o rosto do meu amigo. Sua voz tinha uma entonação estranhamente animada, não a animação que ele costuma ter quando realmente está animado, era algo forçado, fingido. Ao olhar seus olhos entendi que algo estranho estava acontecendo. Segui o Claude para dentro da cabine, rumo a um dos quartos. Ele bateu na porta do quarto da Koori, que estava com a porta aberta, mas de costas para nós.
- Licença Koori, posso mostrar para a Mia o mascotinho ferido de que vocês estão cuidando?
Koori não respondeu, mas fez um gesto que sim com a cabeça. Entramos silenciosamente e eu fui na frente. Afinal não deveria ser perigoso, já que estava dentro do navio. O que eu vi me deixou paralisada. Um draflayel! Não um pequeno, como os da minha memória. Esse draflayel era enorme, mas sem sombra de dúvida, era um draflayel. Cobri a boca com a mão e sai lentamente do quarto dela, que atenta ao mascote, não reparou meu comportamento. E segui para a cabine que compartilho com Claude. Entrei, seguida de perto pelo Claude, que fechou a porta.
Claude sentou na cama e me encarou, como quem espera resposta. Eu não tinha o que falar. Toquei minha costela esquerda, onde um draflayel havia sido tatuado, cinco anos atrás, depois que eu treinei muito o desenho e a tatuadora escolhida finalmente acertou na arte que eu desejava. Era como ver minha tatuagem ganhar vida, saindo da minha pele para a vida real. Fui até o Claude e me sentei ao lado dele.
- Eu estou em coma de novo, Claude?
Ele me olhou com paciência e deu de ombros, como quem diz que não sabe.
- Aquilo é um draflayel, um ser que eu via no meu coma, o tempo todo. Ele voavam por Memória livremente, em bandos. Apenas eram pequeninos, bem menores que aquele, como miniaturas. Do tamanho que eu tatuei, sabe?
Claude suspirou, olhou na direção das minhas costelas e depois olhou para o teto.
- Se você estiver em coma, eu estou junto com você.
Ficamos em silêncio um tempo.
- Mia... Por que você olha tanto o Lance?
Eu sabia que essa pergunta viria em algum momento. Deixei minha cabeça despencar sobre o meu ombro direito e depois meus ombros caíram, como se um peso caísse sobre eles.
- Estou dando tanto na cara assim? - Perguntei apoiando meu queixo sobre meu ombro e encarando ele.
- Tão discreta quanto um colar de melancia. - Ele sorriu divertido. - O coitado está tão desconfortável quanto o Lucas quando a Sofia correu atrás dele.
- Ai...
A situação era ruim. Ser comparada à Sofia correndo atrás do Lucas... Primeiro todo mundo sabia que eu estava encarando ele. Segundo, eu precisava me controlar. Coitada da Sofia e do Lucas. Um típico caso de triângulo amoroso onde Sofia amava Lucas, sem disfarçar nada nem ter desconfiômetro que estava sendo excessiva e sufocante. Lucas que não amava Sofia e evitava ela a todo custo, e amava Pedro que não amava o Lucas pois já namorava o Guilherme. Pedro e Guilherme se casaram ano passado em um casamento bafônico, foi o que me disseram.
- Lance é idêntico ao Valkyon.
Claude se moveu na minha direção.
- Idêntico, como? Idêntico, gêmeo? Parecido? Uma lembrança distante?
- Parece um gêmeo univitelino. Um pouco mais velho, com barba e olhos azuis ao invés de olhos cor de mel e cabelos com reflexos dourados.
- Valkyon, o do coma?
- É.
- Que boy magia é esse que te acompanhou no coma, hein? Agora entendo o motivo de você ter ficado tão impressionada.
Olhei Claude primeiro chocada, depois divertida. Não é como se eu nunca tivesse reparado em como Valkyon era sim bonitão. Eu tampouco podia negar que Lance era um espetáculo de se ver.
- Você também achou? - perguntei rindo.
- Você acha que eu sou cego? Eu sou precavido, não cego, criatura!
- Quero beber da água que esse povo bebe. - Brinquei.
- E do pão que eles comem. Céus! Esse tal maana deve ser só o ouro.
Acabamos rindo e comentando divertidos sobre a aparência dos Eldaryanos. Não sabíamos se eles eram de confiança, pareciam ser.
- Agora, sério Mia. Tente ser mais discreta, mulher. Ou fale com ele logo. Ou sua fama vai te anteceder em Eldarya. E a minha de corno também.
- Pode deixar. Eu juro. - Deitei na cama displicente.
- Ele parece ser uma delícia. E, posso estar enganado, mas ninguém aqui joga no meu time, para meu azar.
- Como você sabe?
- Eu teria percebido.
Olhei confusa para Claude. Ele era tão rápido e esperto em relacionamentos. Sempre senti inveja dessa característica dele. Eu perdi os melhores anos de aprender, focada em estudar e trabalhar, e agora, me sentia perdida e inadequada. Mas não importava, não era isso que chamava minha atenção ali. O que me intrigava no Lance era a similaridade dele com Valkyon. O coma tinha ou não sido um sonho? Ou uma previsão? Com certeza ele não me conhecia.
- Eldarya... Será que...
Não era possível, era? Será que era isso que eles queriam dizer sobre corpos? De repente uma ideia se fez presente em minha mente, me causando um fluxo imenso de energia. Pulei da cama e apoiei minhas mãos nos joelhos do Claude, encarando ele, cheia de energia e felicidade.
- E seu eu já vim para Eldarya antes? Durante o coma? Em espírito? E se o Valkyon for parente do Lance? Ele não parece lembrar nadinha de mim... E se eu finalmente vou ter a chance de conhecer o Valkyon?
Última modificação feita por Rayvena (17-02-2023, às 14h45)
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.。.:*☽*25 - Guarda de Eel*☾*:.。.
Spoiler: New Era - Ep07
PDV Mia.
Aquela ideia me consumiu completamente. Só que minhas tentativas de me aproximar do Lance foram antagonizadas pelo seu comportamento distante. Educado, porém distante, suas respostas não permitiam que eu continuasse ao seu lado sem que ficasse estranho. O que me deixou frustrada nos poucos dias de viagem até chegarmos à Guarda de Eel.
Quando finalmente comecei a ver a Guarda, fiquei abismada com sua estrutura. Ela ficava no topo de uma colina, e havia um óbvio halo de proteção ao seu redor. À distância era possível ver uma gigantesca estrutura branca que se erguia em direção ao céu. Era extremamente bonita e, conforme nos aproximamos da praia, a expectativa em todos era alta. Para eles, era o retorno para casa. Para mim, Claude e Elise, era o início de algo.
Quando aproximamo-nos da praia várias pessoas nos aguardavam para ajudar a organizar o retorno. Eu, Elise e Claude fomos rapidamente apresentados a eles, mas também fomos orientados que teríamos tempo mais tarde de me enturmar. Parece que no momento, temos que relatar nossa viagem à chefe da Guarda, Huang Hua. Para sair da praia de areia clarinha, tínhamos que subir uma gigantesca escadaria entalhada na pedra. Dava vontade de chorar. Eles nunca ouviram falar de bondinho ou escada rolante? Fernando de Noronha mandou um oi para eles.
Quando entramos na Guarda de Eel tive que fechar conscientemente meu queixo, ou andaria de boca aberta. O lugar era... lindo. Aliás, o caminho até ali já tinha uma natureza exuberante. Mas a Guarda era espetacular. Os arcos do caminho, entalhados com primazia. Vi vários seres que me pareceram os chamados mascotes. E várias pessoas que eu só tinha ouvido falar em lendas. Sátiros, pessoas com asas, orelhas, rabos, aparências exóticas, tartarugas como aquelas tartarugas ninjas. Era como entrar em um filme de fantasia ou num jogo de realidade virtual mais bem feito da história. Eu vi gatos falantes! Como o Gato de Botas do Shrek!
Era tanta informação, tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo. As pessoas saudavam o grupo com entusiasmo, e nos olhavam com curiosidade. Entramos em um prédio e nos dirigimos para um salão enorme. Dentro dele tinha uma mesa redonda enorme e, tinha duas árvores dentro do salão, como? E janelas com pé direito altíssimo, por toda a parede, deixando entrar toda a luminosidade natural do dia. A arquitetura era um arraso. Estava completamente embasbacada quando ouvi um pigarro. Me virei e vi uma mulher negra, com cabelos castanhos curtos, extremamente bonita me olhando com simpatia.
- Sejam bem-vindos de volta, e sejam bem-vindas, Claude, Elise e Mia.
Ela sabia nossos nomes? Como?
- Obrigada. – lembrei de agradecer rapidamente.
- Nevra, como foi a missão? - A mulher negra perguntou. E percebi que ela deveria ser a tal Huang Hua, líder da Guarda.
Rapidamente o Nevra começou a relatar a missão. Tentei prestar atenção, mas meus olhos começaram a se perder nas pessoas presentes. Voltei minha atenção ao Nevra que ainda estava relatando a missão. A moda nesse mundo era diferente. Eu havia visto pessoas seminuas e outras completamente cobertas. Pessoas usando uma profusão de cores e acessórios, e outras monocromáticas, outras extremamente simples. É como se não houvesse uma moda real. Mas como se as pessoas vestissem o que gostassem e quisessem. Percebi que o Nevra estava terminando. E fiquei atenta. Obviamente ele não gostava do Leiftan, pois criticou ele umas quatro vezes discretamente. O que me causou estranheza, pois pessoalmente achei ele a pessoa mais simpática da viagem.
- Eu acho que é isso, a menos que vocês tenham mais alguma coisa para adicionar. Ou perguntas sobre algum detalhe...
O rosto da líder da Guarda, Huang Hua ficou triste.
- Muito obrigada, Nevra.
Eu levantei a mão.
- Sim, Mia.
- E sobre as pessoas na balsa?
- Sim, nós enviaremos uma equipe de resgate, com as informações que temos. Não se preocupe.
Respirei aliviada com a resposta da Huang Hua. Embora não sentisse esperanças reais de que eles estivessem vivos, eu sentia a obrigação de tentar. Ela então olhou para nós e pediu que a Elfa de cabelos azuis nos levasse até a enfermaria para sermos examinados. Descobri que ela se chama Ewelein e é responsável pela saúde de todos da Guarda. Ela nos levou, nos deixando com um enfermeiro, pedindo que ele iniciasse os exames e então voltou para a reunião. O Enfermeiro nos colocou, cada um, sob a supervisão de um profissional diferente.
- Seja bem-vinda à guarda de Eel, Mia.
- Muito obrigada.
- Meu nome é Lariel, eu vou iniciar seus exames. - Ele tinha a pele verde como esmeralda ou mato bem verdinho, e longos cabelos castanhos.
- Muito prazer, Lariel. Exames?
- Sim. Sempre que uma pessoa chega à guarda nós fazemos exames para ter certeza de que ela está saudável. Saber se ela precisa de uma dieta especial, atenção no treinamento, ou tratamentos de saúde específicos.
- Isso é para todo mundo? É gratuito? - Podia ter algum tipo de golpe aí.
- Sim. Qualquer tratamento de saúde é gratuito na Guarda de Eel, para todos.
- Uau.
- De onde você vem, não é?
- Sim, no meu país tem a opção de saúde gratuita.
- Que bom que você já tem acesso então. Me diga, qual seu histórico de saúde?
Iniciei um verdadeiro check-up, como nunca fiz na vida. Depois de uma hora a Ewelein chegou e começou a acompanhar os exames. Depois de duas horas, nós terminamos. Durante o exame decidi revelar minha capacidade de ver sombras, e falei sobre a sombra da balsa. Fiz isso apenas por acreditar que poderia contribuir na missão de resgate das pessoas da balsa. A Ewelein anotou tudo com um ar sério, fez perguntas que eu não soube responder sobre a sombra, depois sorriu para mim.
- Você está desnutrida, então vou pedir ao Karuto que prepare pratos mais nutritivos, para equilibrar seus níveis nutricionais.
- Faz sentido... Você já tem os resultados? - Tinha sido rápido.
- Sim. Nossos exames têm resultados rápidos. Você tem poucos músculos no corpo, então recomendo que você inicie um treinamento leve junto à Guarda Obsidiana, para melhorar sua saúde muscular.
Então ela me olhou séria.
- Você já percebeu que é capaz de fazer movimentos mais amplos que outras pessoas?
- Na realidade já. Eu era muito boa em brincadeiras que exigiam flexibilidade na infância. - Comentei sorrindo levemente com a lembrança.
- Imagino. – ela sorriu. - Você é hiper flexível. Não sabemos o motivo ainda, mas considerando outras raças que compartilham essa característica, pode ser que você tenha dificuldade para ganhar músculos e sofra com fragilidade articular. Consequentemente, rotinas de exercício e ganho de musculatura vão ajudar a proteger suas articulações, além de ajudar na sua consciência corporal.
- É uma doença?
- Não. Pode ser uma condição ligada à sua raça, pois não identifiquei nada em seu corpo que justifique. Junto com as informações das suas habilidades, isso deve nos ajudar a identificar sua raça em breve.
- À minha raça? - levei alguns minutos para processar aquela informação.
- Sim, Mia. Como te informaram no barco, você não é humana, mas faeliana. Uma descendente de humanos e faerys. Nós fizemos o teste de maana em seu corpo e confirmamos.
- Entendi. E vocês sabem qual é a minha raça?
- Ainda não. Mas vamos pesquisar. Como você lida com o frio?
- Eu adoro climas frios, me sinto bem, energizada.
- Como você lida com o calor?
- Detesto.
Ela me olhou curiosa.
- Algum motivo especial?
- Me causa brotoejas, me deixa mole, preguiçosa. É como se no calor minha energia desaparecesse. E sou fotossensível. – descrevi minhas sensibilidades e alergias a ela.
- Muito bem. Eu vou fazer mais pesquisas sobre outras raças que tenham essas características.
- Certo... Eu também sou mais noturna... Não sei se faz diferença.
- Como assim?
- Ah! Eu costumo acordar tarde e rendo bastante a noite. Como não lido bem com sol e calor, me acostumei a fazer as coisas mais tarde.
- Entendo, vou anotar. Seu maana é muito alto e estável. O maana é como a energia vital dos faeries. Cada raça tem um nível de maana próprio, e qualquer desequilíbrio, revela problemas na saúde da faerie. E apenas faeries tem maanas. Humanos não tem. Você já sabia na Terra da sua condição?
- Eu sempre soube que não era uma humana normal, só não sabia que não era humana.
Ela sorriu gentil para mim.
- Claro! Hoje nós fizemos um check up de saúde em você. Amanhã eu vou precisar que você volte para analisarmos suas habilidades e tentarmos descobrir sua raça, tudo bem?
- Sim, claro.
- Então me espere aqui, pois daqui a pouco vamos encontrar a Huang Hua, para que ela mostre a vocês o QG.
Aguardei a Ewelein que ainda demorou um tempo até voltar e me levar, junto com Claude e Elise para encontrarmos a Huang Hua. Chegando lá, encontramos ela e o Nevra conversando. Eles encerraram a conversa e a Huang Hua se aproximou sorridente de nós.
- Estou muito feliz em conhecer vocês! Venham comigo, vamos conhecer o QG.
Nós saímos pelo enorme espaço e ela começou a nos apresentar pessoas, que com minha memória eu sabia que demoraria a me lembrar dos nomes. Eu sou boa com rostos, mas péssima com nomes. Começamos pelo laboratório de Alquimia, onde conectei o nome da Huang Chu ao rosto da ruiva de tranças que estava no salão antes. Ela era irmã da Huang Hua e chefe da Guarda Absinto. Essa era a guarda responsável por Alquimia e Poções. O laboratório era relativamente pequeno, ou pelo menos eu esperava algo maior. Mas essa impressão se desfez assim que ela nos mostrou outras salas do laboratório, revelando uma intrincada rede de locais de experimentos e todos os tipos.
Passamos pela Enfermaria onde eu já havia sido examinada e já conhecia a Ewelein, Enfermeira chefe. Pelo visto eles não tinham médicos ali. Em seguida, fomos para o lugar que eu soube que seria um dos meus favoritos: a Biblioteca. Ela era enorme! Com muitas estantes cheias de obras que eu desconfiava serem desconhecidas para mim.
- É linda! E tem tantos livros! Como funciona para pegar livros e ler?
Vendo meu claro interesse na Biblioteca a Huang Hua me explicou detalhadamente. Todos podiam ler livros livremente dentro da biblioteca. Para pegar era preciso avisar os responsáveis, que anotavam nossos nomes e o que estávamos levando. Era preciso ser cuidadosos pois livros eram preciosos em Eldarya. Havia sessões cujo empréstimo era proibido, só podiam ser lidos no espaço da biblioteca. Outros eram reservados a membros de algumas guardas, pois eram livros de estudo muito demandados.
- Você gosta de ler?
- Sim, muito! Eu era professora universitária na Terra, e pesquisadora.
- Você é uma estudiosa então.
- Podemos dizer que sim. Eu cresci em meio a livros. Sempre foi meu passatempo favorito. Leio tudo. Minha mãe dizia que eu era uma leitora compulsiva.
- Eu confirmo. – Claude riu comentando isso.
- Onde está sua mãe?
- Faleceu há um tempo.
- Tenho certeza de que ela se orgulha da filha que tem.
- Espero que sim.
Descemos as escadas e passamos na cozinha, onde eu conheci o famoso Karuto. Ele era um Sátiro!
- É um prazer conhecer você! Seus sanduíches eram perfeitos! Eu já comi muita coisa gostosa, mas nossa, o que você faz. Eu queria muito te conhecer. – comentei empolgada.
- Muito obrigada! – ele respondeu ficando vermelho, mas claramente orgulhoso – Espero que você goste do prato de hoje! Filé ao molho de cerveja negra, Legumes à Juliette com molho especial de Fruta da Noite do Karuto. Vou separar um prato especial para vocês, com as recomendações da Ewelein.
- Muito obrigada! – respondi sentindo que o jantar estava longe demais de acontecer.
- Vou te deixar com os preparativos do jantar Karuto. Ainda tenho muito a apresentar para eles.
Seguimos para fora do prédio, onde conhecemos várias lojas. Descobrimos que os gatos falantes são Purrekos, e eles não são mascotes, mas faeries. Eles são os principais mercadores de Eldarya. Aqui no QG eles tem as principais lojas, e todo comerciante paga taxas para eles. Não entendi bem o motivo, me parece uma máfia, mas bem, acabei de chegar aqui. Além das lojas dos purrekos existem outros numa espécie de feira ao ar livre onde é possível encontrar comidas para nós e para os mascotes, roupas, armas, itens de alquimia, enfim, de tudo um pouco. Fiquei fascinada.
Também conhecemos a Cerejeira Centenária, um lugar onde ocorrem festas, e que tem uma estátua do Leiftan e da Erika. Como será ter uma estátua erguida para você em um lugar? Acho que eu me sentiria desconfortável. Também conheci a vila onde ficam os civis, pessoas que não trabalham na Guarda de Eel, mas que moram aqui por diversos motivos. A maioria é refugiada de lugares que foram atacados. A maioria das pessoas é encaminhada para novos lugares após se recuperarem, mas parece que de vez em quando alguns decidem ficar na Guarda e trabalham por aqui. As pessoas aqui parecem gostar muito da Huang Hua, elas a olham com carinho e ela sempre retribui a todos. Ela me lembra demais os populares políticos da Terra.
Quando chegamos no Jardim de Música, que na realidade é um lugar tranquilo com uma grande fonte no centro, ela nos convidou a nos sentarmos um pouco para descansar do passeio. Aceitamos de bom grado pois esse lugar é realmente enorme.
- Me conte um pouco mais de você Mia. Como era sua vida na Terra?
- Eu era professora, como te disse.
- Como você decidiu ser professora?
- Foi fácil. Durante a graduação eu fiz alguns estágios, que é quando trabalhamos com profissionais formados na área que estamos estudando. De tudo que eu fiz, de longe o que eu mais amei foi dar aula. Eu amei estar na sala de aula, ver o olhar do aluno quando compreende algo. Também gostava de provocar dúvidas, sabe? Quando o aluno chegava cheio de certezas e então eu o provocava. Por que isso é a vida acadêmica, não ter certezas e estar sempre em busca da verdade.
- É uma visão interessante.
- Sim. É uma paixão. Eu amo aprender, e amo ensinar na mesma medida, pois sinto que aprendo ainda mais. Pois para ensinar é preciso aprender de diferentes formas.
- Concordo plenamente. E amigos?
- Eu não tinha muitos, tenho que confessar. Claude é meu melhor amigo. Sempre tive um foco total na minha vida profissional e acadêmica.
- Por que você acha que fez isso?
- A vida me levou nessa direção. - Dei de ombros. - Além disso pessoas são muito confusas. A ciência é exata.
- E, no entanto, você escolheu ser professora, uma profissão que te leva a estar o tempo todo em contato com dezenas de pessoas que precisam da sua orientação.
Olhei para ela um pouco confusa. Nunca tinha pensado assim. Eu via minha profissão como uma escolha natural devido ao meu talento e ao prazer que sinto em sala de aula. Nunca conectei ao contato com pessoas. E minhas habilidades, eu não costumo realmente pensar nelas.
- Nunca pensei nisso...
- Quando estamos envolvidas nem sempre observamos a pintura geral. Mas para quem está de fora, as coisas podem ser meio óbvias.
- Verdade.
- E você, Elise, o que fazia na Terra?
- Eu era empresária, tinha uma rede de joalherias.
- Uma arte nobre a de ourives. E como decidiu fazer joias?
- Era o que meus pais faziam. Quando eles morreram, me pareceu lógico assumir o negócio da família e expandir.
- Mas você gostava?
- Sim.
- E o amor? Como anda seu coração?
- Você primeiro. - Elise sempre tem esse ar desconfiado, mais sério e fechado. Essa resposta apenas comprovou minha certeza.
- Eu estou feliz com uma certa elfa de longos cabelos azuis...
Ela disse e piscou para nós com um sorriso confiante no rosto.
- A Ewelein? Deus, vocês formam um casal tão lindo! - Comentei alegre.
- Sim. Estamos juntas há sete anos. Os sete melhores anos da minha vida, devo dizer.
- Que bom. Fico feliz por você.
Ficamos em silêncio por um tempo, olhando a fonte. Então a Elise respondeu a pergunta.
- Eu não tenho ninguém sério. Às vezes me envolvo com uma ou outra pessoa. Mas nunca me apaixonei por ninguém.
- Não acredito! Sério?
- Sim. Eu já pensei que deve ter algo de errado comigo. Vejo as pessoas se apaixonarem, terem seus corações partidos e voltarem a se apaixonar e, eu gostaria de sentir isso. Mas nunca consegui.
- E você já se permitiu?
- Não sei.
- Deveria tentar. É libertador amar. Você sabe que pode se deixar amar, certo? Que não há nada de errado em você? Você apenas está fechada para as pessoas. Preocupada demais em esconder quem você é, o que você é capaz de fazer. Sempre se contendo, pensando, avaliando. Eu vejo seu olhar sempre analisando. E talvez você devesse começar a se permitir sentir mais que pensar. Usar mais o coração que seu cérebro. O medo é sempre um péssimo conselheiro Elise. Lembre-se disso.
- C-claro.
- E você, Claude?
- Eu? Eu era um bon vivant, apenas apreciando a vida ao lado dessa mulher incrível. – ele respondeu faceiro.
- Mentiroso. – eu cutuquei ele.
- Hey, não faz isso, o que ela vai pensar de mim?
Mas Huang Hua apenas riu divertida.
- Ele dava aulas de inglês.
- E gostava?
- Mais ou menos. Não nasci para ser professor.
- E para que você nasceu, Claude?
Ele ficou quieto olhando a fonte. Eu sabia que Claude gostava de ser militar, mas que havia saído por não concordar com as ações e atuações do seu país. Ele ainda questionava muito se deveria ou não ter saído. Abracei ele carinhosamente, e acho que Huang Hua percebeu que o tópico era delicado.
- Está tão tarde! Vamos indo? Vocês ainda precisam conhecer seus quartos e tomar um banho antes do jantar.
Voltamos para o prédio principal e entramos em uma Forja. Ela me disse que o Jamón costumava ficar ali, que ele também pertencia à Guarda Reluzente, a guarda que reunia os líderes da Guarda de Eel, que estava em uma missão e em breve retornaria. Vimos várias armas em construção expostas ali. Era como fazer uma visita a um local medieval.
Depois formos para uma escadaria gigante e subimos um pouco. Ela nos indicou uma área de treinamento da Obsidiana. Essa era a Guarda dos Guerreiros, especialistas no combate corpo a corpo. Esse local parecia uma espécie de academia, mas com armas e tudo mais. Os seres que vi ali eram os mais musculosos que já vi na vida. Ela me explicou que alguns treinamentos eram feitos ali, outros na área externa. Que havia outras salas de treino, cada uma para fins específicos. Eu vi que havia muitos andares superiores, mas ela não nos disse o que havia para lá.
Descemos muitos andares e então chegamos à área de treinamento da Sombra. Essa guarda era uma espécie de inteligência e espionagem. A área de treinamento deles também era grande, mas tinha mesas espalhadas, mapas, objetos estranhos, e seus membros pareciam ter uma óbvia predileção pelo preto e pelo roxo, embora algumas almas coloridas e claras se destacassem, como se nem pertencessem ao grupo e fossem estrangeiros. Finalmente nos dirigimos para um corredor onde ela nos mostrou a sala do famoso Cristal. Ele era gigante e opaco. Bonito, mas não me parecia especial nem nada demais. Como se tivesse lido minha mente, ela comentou comigo:
- Normalmente ele não é opaco assim, mas azul como maana. E irradia maana. Mas desde que a Érika e o Leiftan saíram ele ficou assim.
- Saíram? Como assim? Os dois estavam... dentro dele? Literalmente? Achei que o Sacrifício Branco era figurativo. – Elise comentou.
- Você sabe sobre o Sacrifício Branco? - Huang Hua perguntou para Elise, enquanto eu e Claude parecíamos dois tontos perdidos na conversa.
Olhei curiosa para as duas. Sacrifício Branco? Que raios era aquilo?
- Koori me contou a história de Eldarya.
- Entendo. Bom, era literal. Era possível ver a silhueta de ambos flutuando dentro do Cristal.
Então Huang Hua nos contou sobre o Sacrifício Branco feito por Erika e Leiftan relatou brevemente a história de Eldarya. Depois descemos da Sala do Cristal e Huang Hua nos mostrou todo o corredor que circundava aquela ala.
- Todos esses são os quartos dos membros da Guarda de Eel. Todos têm seu quarto individual. Venham comigo.
Ela nos levou até o banheiro. E descobrimos chocados que aqui eles não têm um banheiro dividido por sexo, mas um grande banheiro coletivo. Na realidade há vários pequenos banheiros espalhados pelo QG, mas esse é onde os membros da Guarda se concentram.
- Não é dividido? – perguntei curiosa.
- Como assim dividido?
- Os homens e as mulheres usam o mesmo banheiro?
- Claro. Não faria muito sentido separar. Em Eldarya temos mais gêneros que homens e mulheres. Apesar que nem mesmo humanos podem ser divididos dessa forma simplista e que ignora sua constituição biológica. Seria necessário banheiros demais para atender todos. Contamos com a educação e discrição de todos. E caso qualquer coisa aconteça, nossa punição é severa.
- É diferente da Terra. Mas, ok. Eu posso me acostumar. - Claude comentou dando de ombros.
Quanto a mim, só consegui pensar: gêneros diferentes. Como assim? Que gêneros poderia haver além desses? Ela estava falando de transexuais?
- Que bom, vou te levar para conhecer seu quarto.
Nós íamos ganhar quartos também? Pera, isso significava que eles esperavam que nós fizéssemos parte da Guarda? Naquele instante percebemos que uma parte minha estava na expectativa de voltar para casa ainda. Que eu... queria minha vida de volta. Enquanto outra desejava mais desse mundo. Indiferente ao meu drama pessoal, Huang Hua abriu um quarto que parecia saído de um conto de fadas.
Ao lado da entrada havia uma penteadeira que era grande o suficiente para ser uma escrivaninha também. Um grande espelho do lado direito ficava em frente ao que parecia ser um discreto guarda-roupa. Quando eu abri, fiquei chocada com o tamanho. Parecia um closet. Eu poderia entrar ali de tão grande. Uma linda cama de casal toda trabalhada ficava do lado esquerdo. Havia plantas no quarto, plantas de verdade, com flores e tudo mais. Embaixo da cama tinha uma fonte que imitava um rio correndo. O barulho era calmante.
Em frente à cama uma lareira com uma poltrona ao lado invocou todas as minhas fantasias de leitura em uma noite fria, com uma xícara de chocolate quente na mão. Uma estante que imitava uma árvores, estava cheia de livros, eu passei os dedos pelos livros olhando os títulos e percebi que nunca havia lido nenhum. E uma grande janela cobria toda a parede do fundo, seus vidros todos trabalhados de maneira belíssima. Uma cortina iria garantir privacidade e cobertura da luz quando eu desejasse. O quarto todo lembrava uma floresta encantada com suas cores e natureza exuberante.
- É maravilhoso!
- Que bom que você gostou!
- Sua mala está aqui, mas pedi que deixassem algumas peças de roupas extras e itens de higiene. Você deve estar querendo tomar um bom banho e relaxar um pouco antes do jantar.
- Sim.
- Então vou deixá-la. Aqui – ela apontou para uma folha de papel – estão os horários dos seus compromissos. Na sala das portas há um relógio e a cada hora o relógio toca. Tente ser pontual, sim?
- Pode deixar.
- O quarto do Claude é aqui ao lado. – ela disse piscando para mim, me deixando vermelha com a insinuação, e levemente culpada pela mentira. - Até logo, Mia.
- Até, Huang Hua.
Ela saiu, me deixando com a mente agitada e cheia de dúvidas sobre meu futuro.
.。.:*☽*26 - Outra Sombra?*☾*:.。.
PDV Mia.
- O que você acha deles?
- Parecem militares. Definitivamente são organizados, têm armamentos, treinamento.
- Nós estamos seguros aqui?
- Eles não parecem ser uma ameaça. Até agora.
- Você disse que eu era sua namorada? - Encarei Claude com um sorriso divertido.
Ele se virou contra a janela.
- Dois deles estavam usando armaduras. Armaduras medievais! Um é um dragão que vira gente. O outro é um vampiro. Sabe Deus que tipo de hábito medieval eles têm.
Dei de ombros.
- A líder deles é uma mulher.
- Uma faerie, criada nesse mundo. Nós somos estrangeiros. Melhor sermos um casal até termos certeza da nossa segurança.
Assenti em silêncio.
- Você viu os tais mascotes? Que diferentes? - Comentei.
- Você por acaso viu os seres? O cara é um dragão? O outro é um vampiro! E lá fora, eu juro que vi um que parecia meio planta. E tinha os gatos ambulantes.
- Purrekos. Acho que é assim que chama. - Abracei uma almofada e apertei. - Eles são tão fofinhos!
- São uma máfia!
- Uma máfia de fofura. Confessa! - Joguei uma almofada contra ele.
- Uma máfia fofa ainda é uma máfia. - Ele respondeu depois de agarrar a almofada e jogar ela contra mim novamente.
Me levantei da cama e abri os braços.
- Olha esse quarto! Tem um mini rio dentro dele! E essa árvore! A noite tem luzinhas! E eles não têm energia elétrica!
- Como eles fazem sem energia elétrica?
- É o tal do maana. Magia. Uuuuuu. Avada Kevadra! - Claude me encarou confuso. Droga. Ele não curtia Harry Potter. - Esquece.
- Tudo bem. Você quer que eu durma no seu quarto? - Claude perguntou casualmente. Ele já tinha dormido na primeira noite.
- Sim. Até que eu me acostume. Pode ser?
- Claro. Vou deixar algumas coisas aqui, tudo bem?
- Combinado. - Vi que era hora de novos exames com a Ewelein. - Vamos dar uma volta quando eu voltar da Eve, não. Ewelin, não. Ewelein? Acho que é isso.
- Me encontra naquela Cerejeira enorme. O que acha?
- Não podia ser melhor!
Fui direto para a enfermaria e encontrei a enfermeira de cabelos azuis.
- Bom dia, Mia, como está se sentindo?
- Muito bem!
- Excelente. Dormiu bem?
- Sim! Como um bebê.
- O melhor tipo de sono então.
Logo começamos a conversar sobre minhas habilidades, o que eu era capaz de fazer e o que não era. Não falei de tudo pois não confio neles ainda. Melhor ter cartas na manga caso precise. Ela fez alguns testes, me pediu para demonstrar o escudo. Tudo muito tranquilo. Já estávamos há uma hora envoltas em testes, anotações e diálogos, quando minha hora acabou.
- Tenho muitas informações agora, e posso começar a buscar, dentre as raças conhecidas, se temos alguma que bate com a descrição das suas habilidades. Koori vai me ajudar na busca.
- Se precisar, eu também adoro pesquisar em livros.
- É claro que sim. Huang Hua comentou que você gosta de estudar e ler.
Me lembrei então que as duas tinham um relacionamento há sete anos.
- Exatamente. - Respondi sorrindo.
- Agora preciso atender outro paciente, que já deve estar esperando.
Saí da enfermaria me sentindo leve e otimista, e fui ao encontro do Claude. Enquanto atravessava o mercado, no entanto, vi uma sombra no canto do meu raio de visão. Parei imediatamente, o que fez um cogumelo gigante, da altura da minha cintura, colidir comigo.
- Me desculpe! - Falei distraída, buscando a sombra que havia chamado minha atenção.
- Não tem problema, moça! Eu estava distraído! - Disse o cogumelo gigante e saiu correndo.
Não encontrei mais a sombra que havia chamado minha atenção. Tinha sido uma ilusão? Uma confusão? Respirei fundo e segui meu caminho. Mas dessa vez, com as lembranças da balsa me assombrando, não consegui mais sentir a leveza no coração que sentia minutos antes.
.。.:*☽*26 - Banho, marcas e sono*☾*:.。.
PDV Elise.
Decido tomar um banho já que, definitivamente, estou fedendo. Estou usando essas roupas há semanas. Pego as roupas limpas sobre a cama e olho as opções. Dois shorts curtos e uma saia com um babado assimétrico. Eu não uso shorts desde a adolescência e essa saia não faz meu estilo. As blusas estão em maior número e são mais variadas, mas descubro rápido que tudo tem decotes ou transparências. Combinado com os shorts, ficará um pouco... vulgar para mim.
Então vejo um vestido que faz meus olhos brilharem. Ele é um pouco decotado demais, mas é longo, então meio que equilibra. Ele é branco, sem mangas, com uma faixa azul claro no decote profundo, uma faixa na cintura que me lembra detalhes étnicos, esses mesmos detalhes descem na lateral do vestido. Ele é completamente aberto por duas fendas nas laterais, que devem se abrir quando eu andar. Essas fendas começam na altura do meu quadril, mas se eu der passos curtos, não será um problema. O tecido é mais grosso o que torna ele pesado, parece um algodão gostoso. Junto do vestido minhas opções são uma sapatilha, uma botinha ou uma sandália. Escolho a sandália clara. Embora tenha um saltinho, ela é fresquinha e combina com o vestido.
Vejo as lingeries e, bom, quem separou tem bom gosto. Tomara que sirvam. Escolho uma que tem uma faixa bonita rendada, pois obviamente ela vai aparecer nesse vestido. Olho as blusas e vejo que não dá para colocar nada com o vestido. Pego os itens de higiene e avalio, tem sabonete, hidratante, xampu, condicionador e um creme de pentear. Percebo um bilhete “Falar com Huang Chu amanhã, às 11h, para produtos específicos”.
Quando estou saindo ouço uma batida na porta. Vou atender e vejo a Erika.
- Oi, tudo bem?
- Sim, eu estava indo ao banheiro.
- Ela olha as coisas nos meus braços. Boa ideia. Deixa eu te mostrar como as coisas funcionam, é um pouco diferente aqui.
Conversamos ao longo do caminho e, uma vez no banheiro, ela me mostra como tudo funciona. Vejo que ele está cheio agora. E faço uma anotação mental, para tentar outros horários. Antes de sair, ela me convida para jantar com ela e eu aceito. Tomo um banho agradável. As duchas aqui são potentes. Os produtos são de boa qualidade e eu consigo cuidar do meu cabelo e pele. Quando volto para o meu quarto, me sinto renovada.
Aproveito para descansar um pouco, olho os livros na estante, tiro um e decido ler. Olho meu relógio e vejo que é quase hora de ir encontrar a Ewelein na Enfermaria, gosto de chegar um pouco mais cedo nos meus compromissos. Chego lá dez minutos adiantada. Ela me pede para esperar do lado de fora. Aproveito para começar a ler o livro em pé mesmo.
- Cayden e Ayel. Escolha peculiar.
Levanto os olhos do meu livro e vejo o Nevra do meu lado.
- Você já leu?
- Sim.
- Sobre o que é? A contracapa apenas fala que é a história de Cayden e Ayel, mas não fala mais nada. É uma biografia? Eles são famosos?
- É um romance... E sim, eles são famosos.
- É bom?
- Depende. Você gosta de romances?
- Sim.
- Então pode ser que esse te agrade.
Ouvi passos se aproximando, olhei e vi o Lance.
- Elise, Nevra. Não podemos entrar?
- Ewelein me pediu para esperar ela aqui fora. – preferi responder.
Ele olhou o livro na minha mão, mas não falou nada.
- Você tem notícias daquele draflayel?
- Ela está se recuperando bem. Em breve vai poder voar novamente.
Ele parece feliz com essa notícia. E saber que aquele serzinho está bem, me deixa feliz também.
- Que bom! É uma fêmea?
- Sim.
- Você vai adotá-la?
- Não sei...
- Ela visivelmente gostou de você. Se você gostar dela, deveria dar uma chance.
Ele me olhou e encostou na parede ao meu lado.
- É um bom conselho.
- Eu sei. Sou ótima conselheira.
- E você segue seus conselhos?
Eu caí na risada.
- É óbvio que não. Você já viu algum bom conselheiro ser bom em seguir os próprios conselhos? Só se aprende errando muito meu caro.
Nesse instante a porta se abriu e uma mulher saiu de lá com uma criança. A Ewelein se despediu dela e nos convidou a entrar.
- Desculpem o atraso.
- Sem problema Ewie. – respondeu com intimidade o vampiro.
- Elise, por gentileza, senta aqui, perto da janela.
Ewelein me pediu e, em seguida, pegou alguns equipamentos e iniciou uma série de perguntas para ambos, que descreveram detalhadamente o que viam sob a luz do luar, com direito a desenharem sobre um tecido leve o padrão das marcas. A única característica comum em ambos, era o fato de os pontos serem prateados. Assim que eu vi o desenho das marcas de ambos eu tive uma pequena crise de riso. Era meio óbvio o que eu estava vendo ali, embora não soubesse o motivo. Então eu apontei os desenhos e comentei descaradamente.
- Nevra, isso é o que você viu, no meu pescoço, acima da minha carótida?
- Sim.
- É meio óbvio, não? Oi? Dois pontinhos? Quer apostar quanto como o padrão será dos seus caninos? Freud explica Sr. Vampiro.
- Elise, podem ter outras razões.... – contemporizou a Ewelein.
- Claro, que sim. É só olhar a marca de mordida que o Sr. Dragão tá vendo do outro lado. Olha aqui. - Peguei o tecido e dobrei. Se vista aberta, não era óbvio. Mas dobrando, sobre o meu ombro, ficava claro que eram dentes.
- Eu gostaria de te lembrar, que não tenho dentes assim, Elise. Nem na forma humana, nem como dragão. – ele não pareceu gostar da insinuação.
- Eu gostaria de te lembrar Sr. Lance, que quase todas as lendas sobre dragões que se transformam em humanos também falam de uma forma intermediária, de dragão antropomórfica. E nessa forma, eu apostaria que o formato da sua mordida deve ser assim, o que você acha?
Encarei eles irritada. A cada segundo uma fúria imensa crescendo. Eu podia me sentir ferver de ódio puro.
- O que tá rolando aqui? Porque isso é sacanagem com a minha cara. O que vocês dois querem? Ou o que vocês dois estão querendo? O Nevra talvez queira me morder? Ok. Eu entendo. Dispenso, mas entendo. Vampiro, blá blá blá. Mas o que você quer, Lance? Eu achei que estava sendo bem recebida aqui. Mas isso aqui. Isso aqui é golpe baixo. E não vai rolar. Apenas saibam disso. Não vai rolar.
Então eu senti, antes de ver, um alvo perfeito para meu ódio. Meu sorriso se alargou. Vi alguém se mexer no canto da minha visão. Sem pensar duas vezes nem hesitar, eu ataquei essa pessoa. Eu queria firmemente matar alguém naquele instante. No segundo seguinte senti uma dor aguda na nuca e apaguei.
PDV Nevra.
Observei a loira encostada na parede entretida na leitura de um livro. O Lance ainda não tinha chegado. Observei com calma a silhueta agradável diante de mim. O vestido branco não se esforçava muito para esconder seu corpo magro e delicioso. Me lembrei da primeira vez que a vi. Definitivamente mal vestida para o frio de Genkaku, e ela não parecia sentir muito frio como uma humana deveria sentir. Lembro do seu cheiro misturado com sabonete e flores. Os olhos verdes preocupados conosco, analíticos e assustados.
Ela era cuidadosa, atenta, e pelo que eu havia observado, tinha aquele jeito sempre reservado. E não gostava de muito contato físico e muito menos emocional. Fazia sentido considerando as habilidades dela e como ela havia lidado com elas para se proteger e ocultar dos humanos que ela era, sem saber que não era humana, e sem apoio real.
Pessoalmente me senti atraído por seus olhos verdes sempre atentos e a boca expressiva, mais do que ela provavelmente gostaria de saber. Como todo seu corpo falava quando ela relaxava. Ela tinha mania de morder os lábios e tendia a tentar esconder o que sentia. Magra, elegante, com curvas estratégicas. Os seios caberiam nas minhas mãos, eu tinha certeza. Meu talento sempre foi saber apreciar um corpo feminino bem-feito, e ela era uma obra prima.
E esse vestido estava valorizando tudo de bom que ela tinha. Justo no corpo, o decote profundo, a renda e as fitas do sutiã expostos. A cintura marcada, a fenda nas coxas. Eu posso prever os homens e mulheres da Guarda de Eel virando a cabeça para apreciar essa beldade loira. Que livro ela estava lendo? Cayden e Ayel. Romance erótico. Ela realmente gosta disso. Foi desconfortável olhar aquele conteúdo no celular dela ao lado do Lance. Mas ao mesmo tempo era nosso papel olhar o conteúdo para entender a capacidade desse tipo de aparelho. E ela gosta de coisas... criativas. Cayden e Ayel nem eram o mais picante que eu poderia indicar para ela.
Encostei ao lado dela e inalei o aroma que ela exalava, flores novamente. Ela nem me notou.
- Cayden e Ayel. Escolha peculiar. - Comentei, para que ela me notasse.
Ela me olhou com seus olhos verdes, visivelmente surpresa.
- Você já leu?
- Sim.
- Sobre o que é? A contracapa apenas fala que é a história de Cayden e Ayel, mas não fala mais nada. É uma biografia? Eles são famosos?
- É um romance... E sim, eles são famosos. – ouvi o Lance se aproximando.
- É bom?
- Depende. Você gosta de romances? – não pretendo estragar a surpresa dela.
- Sim.
- Então pode ser que esse te agrade.
- Elise, Nevra. Não podemos entrar? – Lance perguntou olhando a porta fechada da Enfermaria.
- Ewelein me pediu para esperar ela aqui fora. – ela respondeu solícita.
Notei o olhar discreto do dragão de gelo para o livro na mão dela, ele sabe o conteúdo, qualquer eldaryano sabe, mas também não falou nada. Esperamos a Ewelein que logo nos chama. Na enfermaria eu e Lance descrevemos detalhadamente as marcas prateadas que vemos, cada uma exclusivamente de um lado, no pescoço dela. Eu sei que parecem marcas de mordidas. Mas por quê? Será que ela já foi mordida e não sabe? Mas que tipo de mordida deixaria uma marca prateada?
Ouço o coração dela começar a acelerar e seu cheiro mudar. Irritação. Rapidamente ela altera completamente sua linguagem corporal, sua expressão facial, até mesmo o sotaque dela se altera, mas não reconheço a origem dele. Todos nós ficamos em choque com o ódio que surge na voz dela, mais ainda mais com as mudanças drásticas que observamos.
- O que tá rolando aqui? Porque isso é sacanagem com a minha cara. O que vocês dois querem? Ou o que vocês dois estão querendo? O Nevra talvez queira me morder? Ok. Eu entendo. Dispenso, mas entendo. Vampiro, blá blá blá. Mas o que você quer, Lance? Eu achei que estava sendo bem recebida aqui. Mas isso aqui. Isso aqui é golpe baixo. E não vai rolar. Apenas saibam disso. Não vai rolar.
Vi a Erika entrar na Enfermaria, ela deve ter vindo visitar o Leiftan. Mas ao fazer isso, Elise olhou para ela com o canto dos olhos e sorriu de forma maquiavélica. Eu já vi esse sorriso antes, em assassinos. Surpreso, vi diversos equipamentos flutuarem na enfermaria, inclusive camas vazias e móveis pesados. Coisas que ela disse ser incapaz de mover. Erika teve poucos segundos de reação antes de receber um ataque massivo que se chocou contra o seu escudo. Sem pensar duas vezes, fui até Elise e a atingi na nuca com o cabo da minha adaga, desacordado-a. Ela caiu mole nos meus braços, e tudo caiu ao nosso redor. Tive a impressão de ver uma sombra se deslocar do corpo dela.
- Rápido Nevra, coloque ela na cama. – ordenou a Ewelein.
Atendi rápido, atento para qualquer mudança dela. Busquei a sombra, mas não vi mais ela. Vi o Lance ajudando a Erika, mas buscando alguma coisa com o olhar. Ele também tinha visto?
- Você viu uma sombra, Lance?
- Sim. Você?
- Também.
Aquilo era preocupante. Seria a sombra de que a Mia havia falado?
- Os níveis de maana dela estão completamente alterados!
- Como assim?
- Eu nunca vi alguém com tanta maana no corpo, a maana está fluindo do corpo dela, vejam.
Eu e Lance nos aproximamos para ver o equipamento que apenas não havia se quebrado por estar nas mãos da Ewelein no momento do ataque. Era possível ver maana fluindo em quantidades absurdas do corpo da Elise para o ambiente, alterando o equilíbrio de tudo ao redor dela. Alguns objetos mais sensíveis tinham quebrado com o fluxo intenso. Outras pessoas chegaram no espaço e começamos a organizar a bagunça, fazer um levantamento do dano. Enquanto Ewelein e outros avaliaram a saúde de Elise. Erika não havia se ferido graças ao escudo dos Aengels, mas tampouco havia entendido o ataque.
Estávamos ao redor dela, que continuava desacordada, quando a Huang Hua perguntou para a Ewelein.
- Qual a situação Ewelein?
- Eu nunca vi nada parecido Huang Hua. Mas a Elise não pareceu sofrer nada com o fluxo intenso de maana que já está reduzindo. Também não sabemos a causa do ataque, nem do desequilíbrio dela. Não dá para saber sequer como tanto maana surgiu e nem como ele flui dela dessa maneira. E nunca vi tanto maana fora do cristal.
- Eu e o Lance vimos uma sombra se afastando dela quando ela desmaiou. – informei.
- Uma sombra? – questionou Huang Hua. – Será que tem alguma relação com a sombra que a Mia relatou?
- Pode ser. Vi apenas uma sombra, rapidamente. Mas não achamos traço dela.
- Certo. Vamos deixar ela descansar. Nevra, você fica de guarda com ela, caso ela acorde agressiva.
- Certo.
- Precisamos analisar a situação. Ela parece ser bem mais forte do que o que revelou ou sabe.
Me sentei ao lado dela, atento a qualquer mudança. Ali, deitada, tranquila, ela não parecia capaz de ameaçar ninguém. Mas agora eu sabia que isso não era verdade. Deixei a trava de segurança das minhas adagas livres, caso precisasse usá-las.
.。.:*☽*27 - Culpa*☾*:.。.
PDV Elise.
Quando acordei a primeira coisa que notei foi a dor de cabeça, a segunda foi que estava na enfermaria, a terceira foi o Nevra sentado ao meu lado.
- O que aconteceu?
- Você é quem precisa dizer.
Fiquei em silêncio. A voz dele era mais gelada que o tempo em Genkaku. Fechei os olhos. Me lembrei do que aconteceu. Da raiva crescente. Da movimentação. De atacar alguém.
- Há quanto tempo estou aqui?
- Algumas horas.
- Merda. Por que minha cabeça dói tanto?
- Foi preciso deixá-la desacordada.
Encarei ele, confusa, até que a compreensão de que ele havia me desacordado me atingiu. Como assim? Ele não tinha sido agressivo assim nem com o Tenjin que tinha matado o Edgard! E me deixou inconsciente com o quê? Pela dor que eu estava sentindo, com um golpe na nuca.
- Por quê?
- Você ia matar uma pessoa.
Eu me sentei na hora, e gemi com uma pontada aguda que percorreu meu cérebro. Imediatamente entendi que o Nevra não estava cuidando de mim. Ele estava me supervisionando, como um policial supervisiona um preso.
- Impossível. Eu nem vi ninguém. Eu só notei um movimento. Eu nunca machucaria ninguém! Eu... – então me lembrei, que naquela hora, eu sentia ira o suficiente para matar sim. E desejava matar alguém. Então olhei preocupada para o Nevra. – Alguém se feriu?
- Quase.
- Merda. Eu não sei o que... Eu... Merda... Eu não... Eu juro que. Merda. Eu nunca nem. Eu... Como? - Decidi parar de tentar explicar e entender o que era inexplicável e incompreensível.
- O que você consegue fazer com telecinese?
- Eu levanto pequenos objetos. Livros, garrafas.
- Me mostra.
- Agora?
- Agora.
- Mas...
- Agora! – Ele me interrompeu autoritário.
Então procurei e vi meu livro sobre uma estante. Como estava com dor de cabeça, trazer ele até mim foi uma tortura, mas consegui.
- Você consegue fazer isso com mais de um objeto?
- Não. - Respondi gemendo com minha dor de cabeça que havia piorado, e encostei na cabeceira da cama, massageando meu pescoço rígido. - E especialmente não com dor de cabeça... – entendi onde isso estava levando. – Por acaso eu... usei telecinese para... atacar essa pessoa?
- Sim. Você se lembra?
- Não. Mas suas perguntas são óbvias.
Ewelein entrou no quarto nesse momento e me olhou com atenção. Não ousei perguntar nada, me sentindo culpada. Eu sabia que usar minhas habilidades daria em desastre. Meus pais me avisaram. Eles sempre me avisaram. E eu desobedeci. Agora eu ia pagar o preço. Se eu me safasse dessa, nunca mais usaria essa merda. Nunca mais.
- Como você está?
- Dor de cabeça. - Respondi pressionando as têmporas, uma leve náusea começando a incomodar.
Ela olhou o Nevra com severidade e me deu um comprimido.
- Aqui, vai ajudar com a dor de cabeça.
Então ela olhou meus exames.
- Seus níveis de maana estão voltando ao normal. Isso é bom.
- Eles estavam alterados?
- Sim. Muito alterados. Mas nós ainda não sabemos o que causou a alteração.
- Entendo.
- Não se preocupe, nós vamos monitorar, ok?
- Certo.
- Você pode ir para o seu quarto descansar.
- Obrigada.
- Eu te acompanho. – disse o Nevra.
- Ok.
Me escoltar ele deveria ter dito. Nem ousei ir jantar, mesmo estando com fome. Fui direto para o quarto e posso imaginar que colocaram pessoas para vigiar minha porta. Eu devo ser um perigo ambulante. Me sinto mal, corroída pela culpa. Quem eu tentei... matar?
.。.:*☽*28 - Lembranças*☾*:.。.
PDV Mia.
- Você é um dragão?
- Sim. Meu nome é Fáfnir.
Encarei o enorme dragão, que parecia feito de ar. Ele não era ameaçador, mas a mera existência dele era levemente aterrorizante.
- Não precisa ter medo criança, ninguém aqui é uma ameaça a você.
Balancei a cabeça incapaz de falar. Olhei em volta e vi o que me pareceu serem outros dragões em miniatura. Branquinhos com flores nas asas. E vi um local lindo, cheio de plantas, flores e ouvi barulho de mar.
- O mar está perto?
- Estamos em uma ilha. – respondeu o tal Valkyon.
- Qual?
- Memória.
- Por quê?
- Porque evita que você morra, minha criança. – Fáfnir respondeu.
Olhei com uma careta para o dragão. Ele sabe que eu não sou uma criança, né?
- Como assim?
- Ao nascer, os da sua raça se conectam com dois protetores, dois seres com quem vocês têm uma conexão profunda desde outras vidas. Não é uma escolha de ninguém, exceto de vocês. Suas almas buscam os protetores instintivamente e, se eles aceitarem a parceria, vocês se conectam a eles. Somente assim vocês conseguem nascer.
- Protetores? – olhei confusa para Fáfnir.
- Sim. É como eles são chamados. São seres de raças faerys que tem a função de proteger vocês.
- Nos proteger de que?
- Do povo sombrio.
- Quem?
- Depois conversaremos sobre eles. Mas a questão, minha criança, é que vocês conseguem viver se um deles morrer antes de compartilhar a aura dele com vocês, pois devido à ligação de suas almas, desde o nascimento, eles já as protegem naturalmente com a aura deles. Mas vocês não são capazes de viver se ambos morrerem sem compartilharem devidamente suas auras.
- Antes de compartilhar a… aura deles?
- Sim. É uma característica da sua raça, criança. Deixe-me explicar. Cada protetor tem sua própria marca, no corpo físico de vocês, por meio da qual, eles poderão compartilhar, utilizando magia vital, maana, a aura deles. É temporário, mas enquanto tiverem a aura dos protetores, vocês ficam imunes aos ataques do povo sombrio.
- Por que precisamos da aura deles? Nós não temos as nossas?
- Não. Vocês perderam a aura de vocês durante o êxodo. O que pertence a um universo, permanece nele. A proteção de ambos os protetores as torna invulneráveis a qualquer ataque áurico, emocional e mental. Em troca, vocês fortalecem o protetor, tornando-os magicamente e fisicamente mais fortes e habilidosos. Todos ganham mais longevidade e o maana flui entre vocês, fortalecendo suas habilidades. Novas conexões entre vocês acontecem também.
- Todos ganham?
- Sim.
- E não há problemas?
- Não.
- Uau. Isso é surreal. Mas se eles morrem após compartilhar sua aura, não tem problema para nós?
- Não. Se isso tivesse acontecido, você não estaria em coma, e nós não estaríamos tendo essa conversa.
- Se isso é verdade, como eu não estou morta?
- Porque ela – ele indicou com a cabeça a mulher albina, que acompanhava a conversa silenciosa – trouxe rapidamente sua alma para Memória, antes da morte do seu segundo protetor. Isso deixou seu corpo em um estado de coma e nos deu tempo de pensar em um plano para te salvar.
Aquilo não fazia sentido nenhum. Mas eu estava conversando com um dragão, e tinham mini dragões voando ao meu redor. O que deveria fazer sentido?
- A magia de Memória é forte, e evitou que sua alma se desligasse do seu corpo, por isso você não morreu imediatamente. Esse é o único motivo de você estar viva ainda. Não duraria para sempre, pois a morte é uma lei inexorável, mas o tempo que ganhamos foi precioso, e junto com o Oráculo, conseguimos uma alternativa para mantê-la viva.
- Oráculo? Que Oráculo? Qual alternativa?
- Minhas escamas – Valkyon respondeu calmo, sentado no chão, e me convidou a sentar ao lado dele com um gesto. – Eu era um dos seus protetores, e fui o primeiro a morrer. Me desculpe deixá-la sozinha, Pequena. – ele pegou no meu queixo e, estranhamente, senti um carinho enorme por ele, e lágrimas rolaram pelo meu rosto. Como eu podia sentir tanta dor pela morte de um desconhecido?
Ele me abraçou gentil quando eu comecei a chorar sentida. Eu não sabia o motivo, mas saber que ele estava morto me doía fundo no coração, como se uma adaga fosse cravada em mim. Ele me abraçava e distribuía beijos na minha cabeça, como um irmão mais velho, o que me fazia chorar ainda mais. Quando parei finalmente de chorar, ele secou minhas lágrimas com as mãos, me deu um beijo na testa, e sorriu para mim.
- Nós teremos outras vidas para conviver, irmã querida. Eu só queria não ter deixado você sozinha. Mas ao menos pude fazer algo para impedir sua morte.
- Acho que preferia você vivo…
- Você e eu não estaríamos conversando aqui, agora, se as coisas tivessem sido diferentes, Mia.
Me aconcheguei no seu abraço. Nós já havíamos tido aquela conversa, não? Eu tinha a impressão que sim. Cada flor e pedra no caminho nos traz aonde estamos hoje. À melhor versão que foi possível, dadas as circunstâncias enfrentadas. Não há do que se arrepender ou porque desejar que as coisas sejam diferentes do que são. Elas são o que são.
- O quê? – perguntei fungando. Lembrando que ele disse que fez algo para impedir minha morte. E ele entendeu a que eu me referia.
- O corpo de um dragão demora muito mais tempo do que parece para realmente morrer. Mesmo após a alma do dragão ir embora, o corpo leva tempo para perder toda magia vital. E escamas de dragão são o melhor escudo que existe em qualquer dimensão que você vá, além de serem cheias de maana e energia vital do dragão. O Oráculo nos explicou que, se eu conseguisse moldar e fundir minhas escamas em seus corpos, um processo delicado, que nunca foi tentado antes, o efeito seria mais poderoso que o da minha mordida, além de mais duradouro. E, talvez, existe a possibilidade de ser permanente. As chances estavam contra nós, mas nós não precisávamos de todas, certo? Só de uma. - Se eu estava entendendo bem, o fato de estar viva, significava que tinha dado certo?
- Vocês ficam falando de corpos, no plural. Mas eu só tenho um corpo.
- Errado, criança, você só vê um corpo seu. Mas você tem vários. - Fáfnir me respondeu. - Seu corpo físico, está em coma na Terra, seu corpo espiritual está aqui em Memória, manifestando sua alma, seu corpo emocional é o que você usa para sentir as emoções e sensações das pessoas ao seu redor, seu corpo mental é o que você usa para criar imagens, projetar sonhos, ler mentes, e você tem outros corpos que você ainda não notou.
Olhei para ele incrédula. Era um papo bem louco aquele.
- Você vai entender, não se preocupe.
- E você conseguiu? – perguntei para o Valkyon.
- Sim. Foi desafiador. Depois de um tempo, finalmente entendi o processo, mas cada corpo tem características únicas, que exigem adaptações únicas. – então ele olhou para o meu corpo.
Segui seu olhar e notei, horrorizada, que meu corpo estava coberto por minúsculas escamas em vários tons de vermelhos, dourado e alguns detalhes marrons.
Acordei assustada e me sentei na cama. Estendi meus braços e inspecionei minha pele em busca das escamas vermelhas do meu sonho. Nem percebi que havia prendido a respiração. Nada de escamas para mim. Pele, eu tenho pele. Era só um pesadelo estranho. Mesmo assim finquei as unhas nas palmas até sentir um pouco de dor. Eu já havia tido lembranças novas antes, e elas se concretizaram. O escudo, as habilidades de luta intuitivas, o controle sobre a telecinese. Olhei do meu lado e Claude dormia tranquilamente. Me levantei da cama e fui para a janela. Será que tinha sido um sonho ou uma lembrança? Eu me lembrava de poucas coisas de quando estava em coma, e aquilo era novo. Será que tinha sido um sonho ou uma lembrança? Tinha sido real demais. Ao mesmo tempo, era tudo tão estranho quando se tratava daquela época.
Peguei um caderno que havia sido salvo na mochila e resolvi anotar meu sonho. Talvez ele me desse alguma pista sobre mim. Aproveitei para rabiscar o Valkyon, Fáfnir e a mulher albina, novamente. Não notei o dia amanhecer sentada na janela concentrada.
- Hey, não dormiu bem de novo? - A voz de Claude estava ao meu lado e o vi se sentar pertinho de mim.
- Não.
- Você nunca desenhou o dragão inteiro antes. - Ele analisou o desenho.
- Eu nunca tinha visto ele inteiro antes.
- Você sonhou com ele? – vi Claude se mever e se sentar na minha frente, interessado.
- Sim. Um sonho diferente dessa vez.
- Ruim?
- Não. Apenas diferente. Ele me explicou o motivo de ter ficado em coma e como eles me salvaram.
- E?
- Papo doido.
- Nós estamos em outro mundo, Mia. Você encontrou um draflayel idêntico ao tatuado nas suas costelas, e com o mesmo nome. Talvez não seja tão doido. Fora o Lance ser idêntico ao Valkyon.
Olhei para o Claude e para a imagem do Valkyon, rabiscada no meu caderno. Se ele estivesse certo, isso significaria que eu tinha escamas de dragão fundidas e moldadas aos meus tais corpos. Encarei minhas mãos preocupada com a possibilidade de virar um lagarto vermelho e escamoso ambulante. Fechei meu caderno e abracei minhas pernas. Lembrei do Valk e como ele parecia gentil, e como eu senti que gostava dele. Quem seria o outro guardião querido por mim? Ele também estava morto… Aquilo era estranhamente triste. Eu sentia tristeza por pessoas mortas que nem sabia quem eram. E por que eles me acharam importante o suficiente para tanto esforço em salvar minha vida?
- O que foi, querida?
- Eu não sei o que pensar, Claude.
- Então se dá um tempo. A gente precisa só se divertir um pouco. Que tal um pouco de música?
Olhei para ele confusa.
- Só nós dois. A gente vai à praia mais tarde e podemos cantar e dançar um pouco juntos. O que acha?
- Só nós dois?
- Só nós dois.
Concordei satisfeita. Eu precisava mesmo me divertir. E a música sempre me deixou mais tranquila e feliz.
.。.:*☽*29 - Pesadelos*☾*:.。.
PDV Elise.
Demorei a conseguir dormir. Sozinha no quarto, sozinha no mundo, sozinha na vida. Encostada na janela, nunca me senti tão sozinha. Sempre tive minha profissão, meus colegas de trabalho comigo. Ao menos antes eu tinha um papel no mundo. Agora nem isso eu tenho. Até isso foi tirado de mim. O que resta de mim, do que eu sou? Nada. Talvez eu devesse ter morrido na tempestade de neve. Teriam sido poupados tempo e recursos. Qual o propósito de uma vida vazia?
Me sinto afundar em pensamentos depressivos. Não é a primeira vez que eu flerto com o vazio. Que a tristeza me nina. E que o abandono é meu cobertor. Durmo embalada nesses sentimentos. E entro em uma espiral de pesadelos. Em um lugar onde o tempo não existe. Onde milhares de anos se passam sem que eu viva um segundo sequer. Pesadelo após pesadelo, eu já não lembro qual vida estou vivendo, que nome é o meu. Os nomes mudam, as aparências se alteram, apenas a dor nunca cede.
Em algum momento uma voz me chama, eu não entendo o que ela fala, mas ela me tira daquele ciclo de pesadelos e me leva para um lugar seguro, me ilumina e me protege de meus torturadores. Sob sua luz, nenhum deles pode me tocar mais. Recomeço minha jornada, reaprendendo a viver longe da dor, me sinto amada, mesmo quando eu não me amo. Os milênios passam sob sua proteção. Até que ela me leva para um lugar que eu não via há muito tempo: as barreiras. Vejo elas frágeis, fraturadas. E a angústia toma conta de mim.
Acordo suada pela manhã. As lembranças do sonho se esfaçelam na consciência. Sempre tive dificuldade para lembrar dos meus sonhos. Saio da cama e me lembro do dia anterior. Quero ir ao banheiro, mas não quero ficar andando escoltada. Encaro a porta e suspiro.
- Bom, o que não tem solução, solucionado está.
Pego minhas coisas, levanto meu queixo e saio do quarto, esperando encontrar os guardas, mas não vejo nenhum. Não tem ninguém na porta, nem no corredor. Vou ao banheiro desconfiada e, embora tenha algumas pessoas, ninguém fica me encarando. Volto para o quarto. Minhas roupas estão na minha cama, dobradas e limpas. Aqui tem serviço de lavanderia? Olho o horário, e percebo que acordei cedo. Troco de roupa, prefiro usar calça e combino duas blusas para ficar mais coberta. Depois de ontem sinto uma necessidade estranha de me esconder. Decido tomar meu café da manhã. Estou faminta. Vou ao refeitório e não encontro quase ninguém. O Karuto me olha surpreso.
- Você não veio comer ontem! Você não pode ficar sem comer menina. A Ewelein foi muito clara. Você precisa comer bem para recuperar suas vitaminas e ficar saudável. Não ouse pular refeições. Se não puder comer aqui, passe e pegue para viagem, ok?
- Desculpe, eu não estava com fome. Não farei mais isso. Pode deixar.
Dou meu melhor sorriso. Ele não deve saber o que aconteceu. Melhor deixar quieto. Pego meu prato e vou comer. Estou sentada quando alguém se senta na minha mesa. É o Lance.
- Posso me sentar?
Olho o lugar que ele já ocupou.
- Claro, fique à vontade. - Respondo por educação.
- Como você está se sentindo?
- Melhor.
- Tem certeza?
- Claro.
Vejo o Lance acompanhar a Mia e Claude com o olhar, em silêncio. Estou desconfortável e vesti minha armadura. Me sinto ameaçada. Ninguém me fala o que aconteceu direito. E eles estão no direito deles. Mas eu também tenho o direito de me defender. Não tenho? E como vou me defender se eu não sei que porra aconteceu? Por isso paro de comer e encaro o armário platinado do meu lado.
- Na realidade eu não estou bem. Mas eu não sei como falar disso. Eu não sei o que aconteceu ontem. Exceto que, talvez, eu tenha tentado matar alguém de uma forma que eu não sei como. E isso me deixa na defensiva, pois eu não sei o que eu fiz nem do que estou sendo acusada e com isso eu não sei como me defender. Então não, eu não estou bem. Tive uma noite de merda, pesadelos horríveis dos quais não me lembro mais. E eu não sei mais se eu sou uma hóspede aqui ou se sou uma prisioneira.
Ele continuou mastigando a garfada com calma, e só depois de engolir que resolveu me responder.
- Que bom que você falou. Você continua sendo uma convidada, mas talvez precise de supervisão. - Ele pegou outra garfada e comeu com calma, me deixando absorver a informação. Depois colocou os talheres sobre o prato. - Você perdeu o controle ontem, isso está claro. Mas isso foi provocado ou não? Não sabemos. Seus níveis de maana se alteraram imensamente quando você atacou. Você destruiu quase tudo na enfermaria atacando a Erika, Elise. Se ela não tivesse usado o escudo dos Aengels para se proteger, não acredito que ela teria sobrevivido antes do Nevra te parar. - Fiz uma careta diante da fala dele. - Não se preocupe, ela não se feriu. Mas a Erika é uma pessoa importante no QG e em Eldarya, por que feri-la? Se você foi provocada, a escolha da Erika foi proposital ou ocasional? E quem te manipulou? Se não foi provocada, é ainda mais perigoso, pois significa que você não tem controle das próprias habilidades. E podemos ter ainda o pior cenário, que é a combinação dos dois anteriores.
Fiquei em choque com a informação dele. Eu tinha atacado a Erika. Ela que tinha me defendido em Genkaku. Senti minha garganta apertar. A culpa me sufocando. Eu não ia chorar ali. Me levantei da cadeira e saí do salão, deixando meu prato inacabado. Fui para o meu quarto, entrei e fechei a porta. Deitei na cama e ali, me sentindo segura, me deixei chorar.
- Eu nunca mais vou usar essas malditas habilidades, nunca mais!
Ouvi a batida na porta, o Lance chamar, e ignorei. Eu nunca abriria a porta naquele estado. Ninguém me veria chorar assim. Ninguém. Nem meus pais me viam chorar. Em algum momento ele desistiu e parou de bater. Depois de um tempo me recuperei. Usei a água da fonte para limpar meu rosto e só saí do meu quarto quando não tinha mais vestígio de lágrimas nem de choro em nenhum lugar. Eu precisava rever a Ewelein para ela ver minha nuca.
- Como você está, Elise?
- Bem melhor, Ewelein.
- E sua nuca?
- Melhorou.
Mentira. Ainda doía pra caralho o local onde o Nevra tinha acertado de jeito. Mas eu merecia depois da merda que eu tinha feito.
- Tem certeza?
- Sim.
- Dormiu bem?
Me lembrei que havia dito para o Lance que eu tinha dormido mal.
- Não. Tive pesadelos, mas não me lembro o que.
- Certo. Vou te examinar novamente, ok?
- Certo.
Durante o exame, percebi que a Ewelein parou sobre certas partes do meu corpo e fez anotações. Mas deixei quieto. Após terminar, ela me voltou a perguntar.
- Você não lembra que pesadelos foram esses?
- Não, nada.
- Certo.
Ela me passou alguns medicamentos, e me pediu para continuar retornando diariamente, para monitorar meu estado de saúde. E chamou minha atenção por não ter comido ontem. As notícias correm rápido aqui.
Saí de lá e fui até a Huang Chu, que preparou produtos específicos para minhas necessidades de pele e cabelo. Fiquei surpresa. A Chefe da Absinto é a cosmetóloga oficial da Guarda de Eel. Ela disse que me ensinaria depois a fazer meus próprios produtos, se eu quisesse. Aceitei imediatamente, pois além de gostar de ser independente, creio que deve ser legal ser capaz de preparar os próprios cosméticos. Resolvo dar uma volta no QG, para me ambientar. No meio do caminho ouço o Chrome comentando sobre um campeonato de Xadrez e pergunto se eu posso assistir.
- Claro! Vai ser muito divertido! Você conhece xadrez?
- Sim! Eu jogo desde criança.
- Sério?
- Por que você não entra no campeonato? É sempre bom ter sangue novo na área.
- Se puder, eu topo.
Como eles usam um temporizador, as partidas não são longas, e vou ganhando várias partidas. Então percebi que o Nevra também estava jogando. Lembrei que ele era o antigo líder daquela guarda. Me senti incomodada com sua presença, mas busquei ignorar. Eles tinham excelentes jogadores, mas eu jogava diariamente contra computadores, então, era difícil uma jogada que eu nunca tivesse visto.
Na final me deparei com o Nevra. Uma multidão estava ao nosso redor, em uma espécie de animação silenciosa. Uma faca cortaria o ar se isso fosse um conto de Philip Pullman. Ao contrário dos demais, que definiam um estilo e se mantinham, o Nevra mudou de estilo de jogada duas vezes, me surpreendendo. Xadrez costuma refletir a estrutura psicológica das pessoas. Pessoas impulsivas atacam rápido, pessoas reflexivas, jogam na retranca, te obrigando a atacar para abrir espaço, pessoas estratégicas usar jogadas famosas ou ao menos já testadas. Eu tendo a me adaptar ao jogador que enfrento, usando os pontos fracos deles. O problema é que o Nevra parece exibir pontos fracos apenas como fachada, sacrificando peças com vistas a organizar uma jogada vencedora. Ele faz ora jogadas agressivas, ora joga na retranca, ora usa jogadas clássicas. Após a segunda mudança de jogo, não consigo mais definir o estilo dele. Sem essa referência, acabei perdendo o Rei num xeque-mate do qual não consegui escapar.
- Você joga bem xadrez.
- Obrigada, você também. Aquela jogada foi... eu nunca tinha visto aquele movimento.
Ele sorriu sem nenhuma modéstia. Uma sensação de desconforto habitava em mim na sua presença, ao mesmo tempo me sinto segura, por saber que se eu me descontrolar, ele dará um jeito de impedir que eu mate alguém. Mas eu ainda prefiro ficar longe , então sai rápido dali. E fiquei no meu quarto lendo, até a hora do almoço.Everything I Wanted, Billie Eilish
eu tive um sonho
I had a dream
eu tenho tudo que eu queria
I got everything I wanted
Não é o que você pensaria
Not what you'd think
E se eu estou sendo honesto
And if I'm being honest
Pode ter sido um pesadelo
It might've been a nightmare
Para qualquer um que possa se importar
To anyone who might care
Pensei que poderia voar (voar)
Thought I could fly (fly)
Então eu saí do Golden, mm
So I stepped off the Golden, mm
Ninguém chorou (chorou, chorou, chorou, chorou)
Nobody cried (cried, cried, cried, cried)
Ninguém nem notou
Nobody even noticed
Eu os vi parados ali
I saw them standing right there
Meio que pensei que eles poderiam se importar (podem se importar, podem se importar)
Kinda thought they might care (might care, might care)
eu tive um sonho
I had a dream
eu tenho tudo que eu queria
I got everything I wanted
Mas quando eu acordo, eu vejo
But when I wake up, I see
Você comigo
You with me
E você diz
And you say
"Enquanto eu estiver aqui, ninguém pode te machucar
"As long as I'm here, no one can hurt you
Não quero ficar aqui, mas você pode aprender a
Don't wanna lie here, but you can learn to
Se eu pudesse mudar a maneira como você se vê
If I could change the way that you see yourself
Você não iria se perguntar por que você ouve
You wouldn't wonder why you hear
'Eles não te merecem'"
'They don't deserve you'"
eu tentei gritar
I tried to scream
Mas minha cabeça estava debaixo d'água
But my head was underwater
Eles me chamaram de fraco
They called me weak
Como se eu não fosse apenas a filha de alguém
Like I'm not just somebody's daughter
poderia ter sido um pesadelo
It could've been a nightmare
Mas parecia que eles estavam ali
But it felt like they were right there
E parece que ontem foi há um ano
And it feels like yesterday was a year ago
Mas eu não quero que ninguém saiba
But I don't wanna let anybody know
Porque todo mundo quer algo de mim agora
'Cause everybody wants something from me now
E eu não quero decepcioná-los
And I don't wanna let 'em down
eu tive um sonho
I had a dream
eu tenho tudo que eu queria
I got everything I wanted
Mas quando eu acordo, eu vejo
But when I wake up, I see
Você comigo
You with me
E você diz
And you say
"Enquanto eu estiver aqui, ninguém pode te machucar
"As long as I'm here, no one can hurt you
Não quero ficar aqui, mas você pode aprender a
Don't wanna lie here, but you can learn to
Se eu pudesse mudar a maneira como você se vê
If I could change the way that you see yourself
Você não iria se perguntar por que você ouve
You wouldn't wonder why you hear
'Eles não te merecem'"
'They don't deserve you'"
Se eu soubesse de tudo naquela época, faria de novo?
If I knew it all then, would I do it again?
Eu faria isso de novo?
Would I do it again?
Se eles soubessem o que eles disseram iria direto para minha cabeça
If they knew what they said would go straight to my head
O que eles diriam em vez disso?
What would they say instead?
Se eu soubesse de tudo naquela época, faria de novo?
If I knew it all then, would I do it again?
Eu faria isso de novo?
Would I do it again?
Se eles soubessem o que eles disseram iria direto para minha cabeça
If they knew what they said would go straight to my head
O que eles diriam em vez disso?
What would they say instead?
.。.:*☽*30 - Uma Nova Sombra*☾*:.。.
PDV Mia
Eu e Claude estávamos entrando no Salão para o almoço quando vimos a Elise e o Lance em uma mesa.
- Vamos sentar com eles? – Claude me perguntou.
Neguei com a cabeça, tensa, vendo uma sombra ao redor de Elise. Vi o olhar do Lance na nossa direção, convidativo, mas ignorei e apressei o passo em direção a uma mesa distante. O que eu deveria fazer?
- Hey, o que foi?
- Nada.
- Tem certeza?
- Sim. E como é a Obsidiana? - Perguntei tentando disfarçar minha tensão. Claude me encarou em silêncio por alguns segundos antes de deixar passar.
- Não sei ainda. Eu vou trabalhar sob o comando do Lance.
- Eu não entendo como eles podem nos convidar tão rapidamente para fazer parte da Guarda. Eles nem nos conhecem, não sabem quem somos...
- Se eu entendi bem a descrição da Guarda da Sombra, essas perguntas apenas mostram como você é perfeita para ela.
- Vai me dizer que você não acha estranho?
- Com certeza. Mas eles devem ter a ideia de que é mais seguro nos ter sob a supervisão deles, do que longe dos olhos.
- Faz sentido.
- Além disso, se entendi bem, esse é o procedimento padrão deles para as pessoas que não tem para onde ir.
Lembrei da explicação deles, de como não havia como voltar para a Terra de forma segura. Como era caro e dispendioso reunir os ingredientes necessários para abrir portais para a Terra e que, os poucos humanos que tinham vindo para Eldarya até hoje, tinham ficado por aqui. Resolvi mudar de assunto.
- Como foi a avaliação?
- Tranquilo. O Lance me informou que vou treinar com o Solomon, o segundo no comando da Obsidiana, acostumado a treinar outros membros da guarda. Aparentemente tenho um excelente condicionamento físico.
- Não diga! – disse irônica. – como ele pode dizer algo assim de você?
- Pois é, eu nunca imaginaria. – ele riu divertido.
Continuamos a conversar amenidades sobre o local. Senti o olhar do Claude sobre mim, mas eu precisava organizar meus pensamentos antes de falar qualquer coisa. E se eles achassem que eu atraía a sombra? Eu atraía? E se eu não falasse e as coisas saíssem do controle? Olhei o Lance de rabo de olho, ele parecia indiferente e a sombra não parecia interessada nele, o que me deixou aliviada. Não queria que ele fosse afetado por aquela coisa. Comi correndo, senti o relógio contra mim. Me despedi do Claude, e sai para dar uma volta, ansiosa.
Caminhei sem direção, pensativa. Me sentindo sufocada e precisando de espaço, caminhei para fora do QG, sem pensar realmente aonde ia. Vi uma árvore ainda dentro da área de proteção e fui para lá. Quando cheguei na árvore notei que o Leiftan estava sentado meio escondido, de olhos fechados. Já ia dar meia volta para não incomodar, quando ele abriu os olhos e me chamou.
- Mia, posso ajudar?
- Ah, desculpa. Eu não queria te incomodar. - eu havia conversado bastante com o Leiftan no barco, mas desde que chegamos a Eel, três dias atrás, não havia visto ele.
- Não está.
- Eu só estou dando uma volta.
- Parece mesmo estar precisando.
- É óbvio assim?
- Um pouco. Dia agitado?
Pensei um pouco. Não havia problema em ser um pouco honesta. E eu gostava muito da presença dele, calma e levemente depressiva.
- Sensação ruim. Saí para dar uma volta e respirar ar puro.
- Boa decisão. Sente-se aqui. A vista é calmante.
Me sentei ao lado dele e, realmente, a vista era linda e calma.
- Você medita, Mia?
- Às vezes.
- Quer meditar comigo? Pode ajudar com essas sensações.
- Pode ser. Como você faz?
- É simples. Nós nos sentamos, e ficamos em silêncio. Se você quiser, pode focar em algo, eu recomendo sua respiração.
- Certo, é como eu faço.
- E não se concentre em nenhum pensamento. Eles vêm e vão. Preste atenção apenas na sua respiração.
- Tranquilo.
- Então feche os olhos e vamos meditar.
Fechei os olhos e fiz o que o Leiftan falou. Não foi tão difícil. Nem tão fácil. Alguns pensamentos eram mais insistentes, especialmente sobre a sombra. Mas logo as sensações ruins passaram e meu estômago se acalmou. E eu fiquei relaxada. Em algum momento me distraí da minha respiração e prestei atenção nos ruídos ao meu redor. Os pássaros, algum mascote brincando, o vento. Parecia natural estar ali meditando com ele.
- Está se sentindo melhor? – escutei a voz calma dele me perguntar.
- Sim, obrigada.
- Se quiser, eu medito diariamente aqui. Pode vir se precisar se acalmar, ou simplesmente companhia para meditar ou conversar.
- Obrigada. Certamente voltarei.
Eu sabia que viria. Tinha gostado de meditar com o Leiftan, pois tinha me sentido em paz e tranquila, como poucas vezes na vida. Decidi que viria diariamente, se ele não se incomodasse.
PDV Elise
Passei o dia no meu quarto lendo e só saindo para almoçar. Estava disposta a evitar problemas. Descobri que o livro que eu estava lendo era um romance erótico entre Cayden, um elfo renegado por sua tribo e Ayel, um príncipe elfo, herdeiro do trono e único filho do rei dessa mesma tribo, que provocou uma revolução para poder amar Cayden. É um romance meio triste já que os elfos não abandonam seu orgulho e não aceitaram o amor de Cayden e Ayel, mas eles não se abandonaram, e no final, foram felizes em outras cidades com mentes mais abertas.
Pelo visto também há lugares preconceituosos aqui em Eldarya, como é de se esperar. Em Genkaku pude ver a forma possessiva de Tenjin falar com a Koori, o machismo com que ele a tratou, e não foi agradável. Aqui na Guarda parecia que as coisas eram mais saudáveis. Banheiros comuns exigiam maturidade de todos. Líderes mulheres que me pareceram ser respeitadas. Era bom saber que eu estava em um lugar que parecia mais avançado. Me arrepiei de pensar o que aconteceria se eu fosse parar no lugar errado, sabendo que eu havia estado muito próxima disso.
No final do dia, fui fazer o tal Teste das Guardas. Entre as perguntas, o Nevra me perguntou sobre um membro da guarda com problemas que podem afetar outros membros da guarda e que não aceita ajuda. Eles deveriam deixar a pessoa ter seu tempo? Deveriam obrigar o membro alterado a se cuidar? Ou deveriam observar com cuidado esse membro, prontos para interferir se necessário? Na hora me senti tensa, aquilo era uma indireta? Eu senti que era. Abusado. Respirei fundo e tentei pensar como se fosse funcionário meu. Ao me afastar da questão, a resposta foi óbvia. Eles deveriam ficar atentos e interferir se julgassem necessário.
Após terminar o teste, Huang Hua anunciou meu resultado.
- Elise, suas respostas indicam compatibilidade com duas Guardas: Absinto e Sombra. Isso não é comum, e considerando certas incompatibilidades recentes, decidimos que você poderá estagiar um mês em cada uma duas Guardas antes de decidir em qual delas deseja permanecer, tudo bem?
- Certo.
- Esse mês você passará na Absinto. Vou pedir à Huang Chu que te acompanhe pessoalmente no aprendizado básico, assim você poderá conhecer melhor as tarefas da Absinto e saber como se sente realizando as tarefas que são inerentes à essa Guarda. No próximo mês você ficará na Sombra, e Chrome será seu guia mais próximo. No início do terceiro mês, voltaremos a conversar sobre sua decisão.
Quando terminei a reunião, fui jantar e decidi que no dia seguinte cedinho iria me apresentar na Absinto. Queria trabalhar e ocupar meu tempo o máximo possível com estudos. Quem sabe assim aquela angústia em meu peito reduzia? Eu sempre trabalhei muito, e sentia falta. Naquela noite tive novos pesadelos horríveis, e como sempre acordei cedo sem lembrar, apenas com as sensações horríveis. Dessa vez notei uma marca escura na minha barriga, como se algo tivesse me apertado ali. Toquei e estava dolorido.
Fui na enfermaria e mostrei para a Ewelein. Eu nunca tinha tido pesadelos e acordado marcada. Será que eu tinha me debatido tanto a noite?
- Você novamente não se lembra de nada?
- Não. Eu apenas sei que tive pesadelos pois acordei com uma sensação horrível. E quando fui trocar de roupa, vi essa marca roxa e dolorida na barriga.
- Parece um beliscão... Você já se machucou antes, Elise?
Ela me perguntou olhando nos olhos.
- Não, Ewelein. Nem quando meus pais morreram, eu tive depressão e nunca me feri. Eu juro. Eu já estive muito mal antes. Mas eu nunca me machuquei. E eu não estou me machucando agora.
- Você teve depressão?
Percebi que não tinha falado isso antes. Respirei fundo antes de contar.
- Sim. Eu tive. Meus pais morreram quando eu estava na faculdade. Eu tinha 20 anos, então faz nove anos.
- Sua família te deu suporte?
Eu olhei pela janela.
- Meus pais eram órfãos. Eles se conheceram no orfanato. Minha família inteira era eles. Por causa das minhas habilidades, eles... eu não tinha amigos. Alguém poderia perceber. Eu poderia ficar tentada a usar... Então quando eles morreram, eu estava completamente sozinha no mundo. Eu pensei várias vezes em me matar, realmente queria morrer. Eu tentei me deixar morrer. Mas... Bom, eu sou saudável, jovem e forte. Os professores do meu curso ficaram preocupados comigo e me ajudaram. Eles conversaram comigo, vieram atrás de mim. Mas foi no negócio da família, como artesã, que reencontrei meu norte. E aqui estou.
- Eu acredito em você. Você não está sozinha aqui, Elise. Pode acreditar.
- Uhum.
Eu não acreditava, e acho que ela sabe que eu não acreditava.
- Vamos continuar monitorando seu sono. Eu vou a noite no seu quarto, quero ver como está seu maana antes de você dormir.
- Combinado. Até a noite.
Saí de lá e fui para o Laboratório de Alquimia. Entrei e encontrei a Huang Chu organizando vidros, plantas, livros.
- Bom dia, Huang Chu.
- Bom dia, Elise! Que boa notícia! Finalmente aqueles cabeças duras começaram a ouvir.
- Como assim?
- Você é a primeira pessoa que eles deixam estagiar em duas guardas. Tudo bem que você também é a primeira a ser compatível com duas guardas. Até o momento, eles nunca deixaram. No teste você era obrigado a escolher, e nunca mais poderia trocar.
- Mesmo se a pessoa odiasse?
- Sim. E acredite, há quem odeie.
- Claro que eu imagino. É muita pressão, um teste para decidir sua vida. É preciso haver direito de escolhas.
- Exatamente. Agora me diga, o que você sabe sobre magia e alquimia?
- Bom, nada. Na Terra não se acredita nessas coisas. Se bem que poderíamos dizer que a Alquimia foi substituída pela Química e a Magia pelas Ciências Naturais como Física, Biologia e Astronomia.
- Como assim?
- Bom, é que essas ciências buscam compreender fenômenos desconhecidos e estudá-los, ao mesmo tempo que produz coisas que parecem magia para quem não entende como funciona, como hologramas...
Continuei minha explicação e eu e Huang Chu descobrimos ter coisas em comum. Ambas éramos muito organizadas e observadoras. Depois de muita conversa, em que falei de coisas da Terra para ela e ela me falou de Magia e Alquimia, ela me disse que faríamos alguns testes básicos de alquimia e magia básicos. Para ver se eu tinha talento em alguma das áreas. Isso porque era comum que as pessoas tivessem mais talento ou para a Alquimia, ou para a Magia. Como a Ewelein, que tinha muito talento com a magia da cura, mas nem tanto na alquimia, ou Ezarel, o antigo Chefe da Guarda Absinto, que é um dos melhores Alquimistas de Eldarya.
Rapidamente descobrimos que a alquimia não era o meu forte. De alguma maneira, as coisas davam errado mesmo quando eu seguia tudo exatamente como a receita manda, sob o olhar atento da Huang Chu. Na realidade, até ela ficou surpresa.
- Poucas vezes vi alguém tão ruim na Alquimia. – ela foi sincera.
- Desculpe.
- Não. Eu vejo que está se esforçando, mas é como se os ingredientes se recusassem a fazer o que precisam. É curioso. Eu mesma separei tudo. Preciso analisar melhor o que está acontecendo, pois é como se algo estivesse interferindo. Algum fator externo.
- Como assim?
- Essa receita que eu te passei, ela não é ensinada para iniciantes à toa. Ela não exige concentração, nem preparação emocional ou mental. Apenas a mistura certa de ingredientes. Nós já a preparamos cinco vezes e deu errado todas as vezes. Eu mesma dosei os ingredientes na última vez e sei que está perfeita. Não há nada que justifique estar dando errado, exceto uma interferência externa.
- O que pode ser?
- Não tenho ideia. Nunca vi acontecer. – venha, vamos tentar magia básica.
Ela me entregou os ingredientes e me mostrou como fazer. Eu repeti seguindo ela. Ela fez um pequeno arco-íris. Comigo, nada aconteceu.
- Não fique frustrada. Eu já esperava esse resultado.
- Entendi. Acho que isso me faz uma péssima candidata à Absinto. – eu disse rindo. Um pouco decepcionada comigo mesma.
- Esse é o primeiro dia Elise. Não seja perfeccionista e pessimista. É normal as coisas serem difíceis no primeiro dia. Passamos a manhã aqui. Pode tirar o resto do dia de descanso.
Eu não acreditava. Eu sempre fui perfeccionista. Eu lia cada detalhe de cada contrato, analisava cada compra, me preparava. Sempre estava perfeita para qualquer reunião. Ir tão mal no primeiro dia da Absinto era... irritante. Olhei o papel com a anotação da magia idiota e a recitei baixinho. Luzes do arco-íris iluminaram o Laboratório de Alquimia.
.。.:*☽*31 - Magia*☾*:.。.
PDV Elise
- Elise! Se controle!
O aviso de Huang Chu chegou até meus ouvidos distraídos e olhei ao meu redor irritada. Livros, plantas, garrafas, muitas coisas estavam flutuando ao meu redor. Não! Eu havia prometido a mim mesma! Eu não faria aquilo nunca mais! A ansiedade em meu peito me fez ofegar e minha respiração se descontrolou. Eu tinha atacado a Erika, tentado matá-la! Eu era um perigo ambulante! Sequer percebi tudo começar a levitar e agora não sabia como voltar tudo para o lugar. Apenas sentia a energia fluindo do meu corpo para o ambiente.
- Eu... não sei como! - Respondi gritando, furiosa!
- Apenas se concentre. Imagine as coisas descendo...
Fiz o que ela sugeriu. Olhei cada objeto e imaginava-o descendo... Deu certo! Mas era cansativo! Fui ficando cada vez mais ofegante. As vozes dos meus pais na minha cabeça, o Lance me dizendo que eu tinha tentado matar a Erika. Era como nadar contra a corrente, e eu estava perdendo, pois logo as coisas que eu havia baixado começaram a subir novamente. Olhei desesperada para a Huang Chu e ela estava flutuando também! Ia ter algum acidente por culpa minha!
- Elise, você precisa se concentrar! Eu não consigo te ajudar daqui. Você precisa assumir o controle das suas emoções. Não pode deixar a culpa assumir. Seus poderes não são um problema.
Enquanto ela falava, senti um ódio profundo tomar conta de mim. Ela não sabia o que estava falando! Mentirosa! Falsa! Olhei para ela e me senti enganada! Ela queria que eu usasse minhas habilidades e fizesse algo ruim! Ela era o inimigo! Eu precisava me livrar dela. Precisava matá-la! Destruir ela e tudo que existia naquele lugar. E estava pronta para atacá-la quando ouvi aquela voz misteriosa, feminina, maternal e calmante me dizer:
- Calma. Ela não é o inimigo. Abrace uma amiga e tudo vai ficar bem.
Fiquei ofegante tentando controlar a ira, sentindo a vontade de ver o sangue de Huang Chu correr. Fechei os olhos e abaixei a cabeça. sentindo meu corpo tremer de fúria, os punhos cerrados, me concentrando em não ceder à tentação. Quando abri rapidamente meus olhos vi dois pequenos pés na minha frente. Levantei os olhos e vi um vestidinho largo e longos cabelos multicores. Subi mais o olhar e vi uma menina, com grandes olhos violetas e dois chifres coloridos. Ela abriu os bracinhos e eu a abracei como quem abraça um barco salva vidas, lágrimas fluindo dos meus olhos, cheias de fúria, frustração, medo. Senti uma energia fluir do meu corpo para algum lugar. E o ódio se desligar como um fio arrancado da tomada, um pequeno choque no momento da desconexão. Subitamente meu cérebro ficou claro.
O ambiente ao meu redor se preencheu com o barulho de coisas caindo, se quebrando. Então tive a sensação de ver uma sombra se esgueirando em um canto escuro. Dei um grito agudo de medo e puxei a criança para o lado, protegendo-a da sombra. Cacos de vidro, objetos, móveis. Tudo começou a se chocar naquele canto. Eu o encarava em pânico. A menininha foi embora como tinha vindo, sem eu ver. Senti alguém me abraçar, tentando me acalmar.
- Elise? Está tudo bem. Calma. – A voz do Lance soou ao meu ouvido.
- Eu vi... – sussurrei – eu vi...
- Viu o que?
- Eu vi. Era horrível. Ele, ele. Ali, no canto. Ele saiu de mim... quando a menininha me abraçou... Ódio puro... Quer matar todos.... Tudo... É horrível...
- Ele ainda está ali?
- Não.
- Então não precisa mais atacar.
- E se ele voltar?
- Nós lidamos com ele se voltar.
- Eu não posso... Não consigo...
- Calma. Respira.
- Eu estou ficando louca. Eu sou perigosa. Eu não deveria ficar aqui. – Me senti confusa e assustada com o que aquele lugar estava fazendo comigo.
Ele me pegou no colo e me tirou dali, me levando para a enfermaria, um lugar reservado da enfermaria. E me deixou chorar por muito tempo. Quando eu finalmente parei, ele me deu um lenço e um copo de água.
- Como está se sentindo?
- Eu não sei.
- Tenta.
- Um caco. – Respondi após algum tempo, sem coragem de olhar para ele. - Como está a Huang Chu?
- Acho que bem. Pelo que vi, foi só um tombo. E susto.
Respirei aliviada e fechei os olhos. O que está acontecendo? Deve ser castigo.
- Eu ia matar ela Lance. Eu senti que queria matar. Queria ver o sangue dela escorrer. Ouvir os gritos dela. Era horrível. Eu senti prazer antecipando isso. Como um monstro sanguinário psicopata doentio. Vocês precisam fazer algo. Vocês não estão seguros comigo aqui. Precisam me prender.
- Não era você.
- Como você sabe? Era eu. Eu senti. Eu sou louca!
- Todos nós vimos uma sombra se afastar de você. Mas depois que saiu, ninguém mais enxergou para onde foi.
Olhei para ele assustada e aliviada.
- Não foi minha imaginação? A sombra?
- Não. Havia algo.
Só nesse instante eu percebi o quão preocupado ele parecia. E que ele ainda estava segurando a minha mão.
- Eu não sou um monstro? Eu tive tanto medo de ser um monstro. Foi horrível. Foi amedrontador. Eu quase não conseguia controlar meu corpo. Eu...
Sem pensar muito o abracei. Queria me sentir segura e me sentia com ele. Escondi meu rosto no peito dele e quis esquecer o mundo, suas complicações e tudo que estava acontecendo. Limpar minha mente, não pensar em nada. Só ficar ali e estar segura. Senti ele acariciar meus cabelos, me dizendo que ia dar tudo certo. Que eles iriam descobrir o que estava acontecendo.
- A Ewelein precisa te examinar...
Com preguiça levantei a cabeça e procurei a Ewelein, vendo-a na entrada do quarto da enfermaria. Sai do colo do Lance sem muita vontade, surpresa com a forma como eu me sentia confortável com ele. A Ewelein sorriu e se aproximou.
- Como você está?
- Mais ou menos.
- Como se sente?
O Lance se levantou e saiu da sala. E Ewelein começou a me examinar. Novamente meu maana estava completamente alterado, e novas marcas roxas e vermelhas, doloridas estavam em meu corpo.
- Elise, vou ter que pedir que você durma sob supervisão. Preciso monitorar seu sono. Como você se sente em relação a isso?
- Tudo bem. Eu entendo.
- Não é o que eu perguntei.
Refleti um pouco, pensando sobre como me sentia.
- Desconfortável, mas entendo que tem que ser assim.
- Infelizmente sim. Hoje o Ofélia pode interferir e nos ajudar. Não podemos contar com isso sempre.
- Quem é Ofélia?
- A menina que te abraçou, afastando a entidade que te possuiu.
Eu pensei um pouco. Se eu queria que aquilo desse certo, precisava ser honesta.
- Não foi ela... Não foi ela que interferiu.
Ewelein me olhou nos olhos, atenta.
- Não foi ela?
- Não exatamente. Foi uma voz. Um voz que eu ouço desde que cheguei em Eldarya.
E contei para Ewelein as três ocasiões em que aquela voz tinha me protegido.
- Você não reconhece essa voz?
- Não. Eu apenas a ouço, como se fosse eu e você aqui conversando. Mas não identifico a fonte.
- E ela te disse para abraçar uma amiga, se referindo à Ofélia?
- Sim. Como se ela e a... Ofélia fossem amigas, e a Ofélia estivesse ali a pedido dela, e não o contrário. Honestamente, eu sinto que posso confiar nessa voz, como se ela fosse boa e cuidasse de mim, e até agora, tudo comprova essa sensação.
- Certo. Isso é... novo. Vamos estudar tudo. Você deve estar com fome.
- Sim.
- Coma bem, suas vitaminas só pioraram desde que você chegou. Eu estou preocupada Elise.
- Eu vou comer bem.
- Certo. Te vejo a noite. Você vai dormir no seu quarto mesmo, ok? Podemos monitorar lá, para seu conforto.
- Combinado.
Saí da enfermaria e fui direto para o meu quarto. Deitei e dormi. Na realidade apaguei. Esse era um velho mecanismo de defesa meu. Eu apagava de sono em momentos de estresse. Acordei com alguém batendo na porta. Me levantei e fui abrir a porta. No caminho vi um pacotinho na escrivaninha. Abri a porta e vi a Huang Chu. Deixei ela entrar, sem saber bem o que fazer.
- Você não almoçou.
- Eu precisava dormir.
- Você precisava fugir.
- Também.
- Pegue seu almoço, você precisa comer.
Ela indicou o pacote que eu tinha visto. Abri e vi um pote com um bilhete do Karuto, me dando uma bronca carinhosa. Abri e o cheiro estava uma delícia, mesmo frio. Percebi que estava com fome. Fui para a cama e comecei a comer. Tentei ignorar a presença da Huang Chu e a vergonha e culpa que ela evocava.
- Elise, você precisa entender que, apesar do que você está sentindo, a culpa não é sua. Você não precisa se envergonhar. Até agora você viveu escondendo seus poderes e habilidades, reprimindo tudo que você é. Será difícil mudar um comportamento de uma vida inteira. É instintivo para você atualmente. Mas se você se permitir, nós queremos te ajudar, estar contigo nesse caminho. Mas a escolha é só sua, ninguém pode te forçar a nada.
Ela pausou e ficou me olhando. Eu olhei para ela. Ela não me culpava. Sério? Eu tinha praticamente destruído o Laboratório de Alquimia!
- O Laboratório pode ser reconstruído rapidamente. Como eu poderia te culpar? Parece óbvio que suas habilidades estão mais fortes e que você não está sabendo o que fazer e como controlar. E todos nós vimos que algo está tentando te usar também, por motivos que nós não sabemos quais são. Saiba que nós estamos do seu lado.
Ela colocou a mão no meu ombro e sorriu para mim.
- Agora coma tudo, pois eu também sou responsável por garantir que você vai comer.
Revirei os olhos e terminei de comer. Huang Chu ficou um tempo ainda comigo, conversando e me orientando. Ela me explicou como magia funcionava, especialmente para os raros seres que não precisavam de ingredientes para fazer magia, o que parecia ser o meu caso. No nosso caso, a magia era feita por nós, e os ingredientes eram nossas emoções, positivas e negativas. Quanto mais fortes as emoções, mais fortes as magias.
- Existem muitos como eu por aí? Isso ajuda a saber que tipo de faerie eu sou?
- Na realidade não. Nós sabemos que existem seres que invocam magia assim, como Aengels e Dragões, ou outras raças antigas. Mas em geral, são magias próprias da raça. Você recitou uma magia comum, não usou uma magia da sua raça, é diferente. Nós não temos referência de raças que façam isso.
- Então minha raça é desconhecida?
- Até agora sim, mas nós continuaremos pesquisando.
A Ewelein chegou e, com ela, Siren, uma guerreira que faria o turno de vigilância. Ela deixou dois equipamentos no quarto, me examinou. Foi estranho ter uma pessoa no quarto, por mais que ela tenha tentado ser simpática. Mas acabei dormindo, e tive pesadelos como todas as noites desde que cheguei em Eldarya.
.。.:*☽*32 - Treinamento*☾*:.。.
PDV Lance
Hoje comecei a treinar os novos guardiões. Claude tem um excelente condicionamento físico e poderia ser treinado com os demais membros da Obsidiana, sob a supervisão de Solomon, meu segundo no comando. Ele tem o perfil perfeito dos membros da Guarda, e era um faeliano, assim como Elise e Mia. Faeliano é como chamamos os descendentes de faeries, quando não identificamos a raça dos antepassados deles. Devido ao acidente com Elise no Laboratório de Alquimia, tive que atrasar o início do treinamento da Mia.
Marquei com ela no Jardim de Música, no final da tarde. observei ela vindo ao longe com calça e blusa preta, e um sapato estranho, provavelmente da Terra. Preto parece ser a cor predileta dela. Enquanto caminhava, notei que ela parecia ser absolutamente macia em todos os lugares que meus olhos percorriam. Seu cabelo preto, cacheado, estava agora com lindos cachos, que também pareciam sedutoramente macios, me dando vontade de tocá-los para confirmar. Os lábios dela pareciam uma sobremesa generosa. Baixei os olhos e praguejei baixinho, apoiando o rosto em uma mão. Esse não é o tipo de pensamento que se pode ter por uma mulher comprometida.
Lembrei que, de acordo com o relatório médico, Elise e Mia tinham algumas semelhanças estranhas, que nos chamaram atenção, ainda que as habilidades das duas fossem diferentes. A mesma hipermobilidade, a mesma alergia a frutos do mar, hipersensibilidade ao calor, fotossensibilidade, hábitos que tendem ao noturno, além de terem chegado a Eldarya no mesmo dia e, desconfiamos que no mesmo horário pela descrição delas, em fenômenos estranhamente similares. Levantei o olhar dos meus sapatos e observei o jeito como ela andava, parecia combinar com alguma música que ninguém além dela ouvia. Essa constatação me fez sorrir involuntariamente.
- Como você está se sentindo? - Perguntei.
- Bem, e você?
- Tranquilo. Pronta para começar a treinar?
- Sim!
Mia parecia animada e respondeu alegre, com um sorriso que fez meu coração errar uma ou duas batidas. Seus olhos se fecharam quase completamente quando ela sorriu, deixando seu rosto completamente alegre e leve. E seu sorriso gentil me inundou de felicidade por poder compartilhar esse momento precioso com ela. Me posicionei diante dela e iniciei com as perguntas básicas.
- Então me diga o que você faria se tivesse que me enfrentar.
- Eita. Sério?
Encarei ela por alguns segundos, surpreso. Essa terráqueas tem boca suja assim sempre?
- Sério.
Ela me encarou e me analisou, uma mão no queixo, séria.
- Bom, eu tenho desvantagem no tamanho e na força, isso é óbvio. Minha primeira opção seria, obviamente, fugir.
- Excelente, fugir quando se está em desvantagem é extremamente válido. Viva hoje para lutar amanhã. Além disso, fugir é a primeira opção de qualquer ser vivo na natureza. – Ela colocou as mãos na cintura, abriu as pernas e empinar o peito e o queixo, numa pose heroica, com um sorriso divertido no rosto. Ela é sempre brincalhona assim? – Mas e se você não puder fugir?
- Então serei obrigada a te enfrentar, já que fingir de morto não vai colar! - Ela piscou faceira para mim. - O que significa que terei que correr até conseguir alguma arma, pois você tem uma na cintura e eu não tenho nenhuma. - Ela indicou com os olhos minha adaga.
- Faça isso. - Me senti satisfeito e, estranhamente, orgulhoso das respostas ágeis e seguras dela. Ela já tinha algum tipo de treinamento?
Descobri surpreso que Mia é mais rápida do que eu esperava, e ágil, surpreendentemente ágil para seu tamanho e estrutura física. Quase ágil demais. E com certeza ela pensa rápido. Vejo onde os pensamentos dela a levam. Ao não encontrar uma arma, ela planeja pegar minha adaga, e admiro sua ousadia internamente. Me deixo derrubar e quando ela tenta pegar minha adaga, viro rápido prendendo-a em uma chave de braço frouxa, imobilizando-a.
Por alguns segundos, tenho a chance de tê-la em meus braços. Sinto seu cheiro, um aroma adocicado e levemente cítrico que parece certo nela, como morangos pistaches e rosampagnes. Sinto seu corpo se debater contra o meu, e confirmo que toda ela é completamente macia. Tem tempo que não sinto um corpo tão macio contra o meu, tão feminino e delicado. As mulheres da obsidiana são sempre fortes, musculosas devido aos treinos. Nunca notei que maciez era uma qualidade tão desejável em uma mulher. Lembro de liberar o seu corpo rapidamente, para não criar um clima desnecessário.
- Você é esperta e ágil. Mas teremos que pensar em formas melhores de conseguir armas. E formas de se libertar se for pega.
- Obrigada. – ouvi a voz dela um pouco rouca, e a observei desconfiado. Ela estava de lado arrumando a roupa e limpou a garganta.
- Ótimo. Você cometeu alguns erros que me fazem pensar que você não lutava na Terra.
Ela me olhou como se eu tivesse falado uma idiotice, quando apenas apontei algo óbvio.
- Bom Lance, como expliquei antes, eu era professora universitária e pesquisadora, minhas maiores batalhas envolviam alcançar livros nas estantes mais altas das livrarias e bibliotecas, e convencer meus alunos a lerem os textos das aulas.
Ela estava irritada ou era impressão minha? Por qual motivo?
- Certo. No entanto, você tem habilidades de correr e desviar, e planejou pegar uma adaga que tampouco são habilidades próprias de uma professora.
Seus olhos se abriram surpresas e aí sim eu os vi se apertarem, me encarando com uma irritação clara, suas mãos em sua cintura, seu corpo inclinado para frente.
- Eu não tenho que explicar minha vida para você, sabia? Mas eu já fiz aulas de defesa pessoal, Sr. Lance. A Terra não é tão segura que uma mulher não precise aprender a se defender sozinha. Tá satisfeito ou preciso preencher um relatório em três vias, carimbar, assinar e deixar na sua mesa?
Encarei aquela pequena fúria me encarando irada sem nenhum motivo plausível e não contive um sorriso. Pequena como um Draflayel, macia como um Sitourche e furiosa como um Black Gallytrot, uma combinação inusitada.
- Eu o divirto, por acaso? Virei palhaça?
- Me desculpe. Eu não deveria rir. - Por que eu pedi desculpas? Eu não fiz absolutamente nada de errado. Talvez seja o cheiro dela, ou o jeito, ou o fato de que ela era o serzinho mais perfeito que já vi na vida, e ela enche meu coração de felicidade somente por existir e estar na minha frente.
- Não mesmo. – ela cruzou os braços subindo os seios sob a camiseta, redondos, cheios, macios. Esses treinos serão longos e tortuosos se eu ficar me perdendo assim.
- Certo. Vamos voltar a treinar?
- Vamos, mas controle esses seus comentários. – ela disse irritada.
Mas era eu deveria dizer isso para ela, já que o gênio forte era dela, não meu. Mas por algum motivo que não sei qual era, fiquei em silêncio. Continuamos treinando e percebi que, com certa frequência, episódios de impulsividade a impediam de alcançar um sucesso maior dos planos. Ela tem pouquíssima paciência. Anotei mentalmente que precisaria discutir a melhor forma de incluir treinos de paciência e controle da impulsividade para ela. Depois de encerrar o treino, quando estava me afastando, ouvi seu chamado baixo e inseguro.
- Lance?
- Sim? – me virei. Seus olhos pareciam incertos, ela torcia as mãos nervosamente.
- Posso falar com você?
- Claro.
Voltei e me sentei no chão ao seu lado, e a convidei para sentar-se. Ela parecia hesitante quanto ao que fazer. O que ela queria falar? Seria o motivo do nervosismo dela e da explosão anterior? Fiquei quieto esperando que ela se manifestasse. Então ela olhou o céu, fechou os olhos e suspirou profundamente, para então abrir novamente os olhos e me encarar firmemente.
- Eu não sei se a Ewelein comentou com você, ou vocês, no caso, mas… às vezes, eu vejo sombras. Sombras que ninguém mais vê.
Imediatamente lembrei da sombra que vislumbrei se afastando da Elise e incentivei Mia a continuar com um gesto de cabeça. A Ewelein havia compartilhado conosco essa habilidade que ela revelou durante o exame, algo que ela fez claramente pensando no resgate das pessoas da balsa.
- Eu não sei o que exatamente essas sombras fazem. Nunca havia reparado antes, ou me importado. - Embora me olhe nos olhos, ela morde os lábios quando fala e retorce as mãos em sinais claros de nervosismo.
- Se você nunca viu motivo para isso antes, não há motivo para pensar muito no assunto.
- Certo, certo. - Ela dispensou meu comentário agitando as pequenas mãos no ar. Observei as unhas um pouco longas e dispensei as imagens que invadiram meu cérebro. A seriedade dela requer minha atenção total. - Eu vejo essas sombras há alguns anos na Terra, mas nunca soube o que elas faziam. Apenas ignorava elas e nunca uma se aproximou de mim.
Balancei a cabeça, incentivando-a a falar.
- Eu vi uma delas hoje no QG. – ela me disse apertando as mãos e mordendo os lábios, contorcendo quase o corpo inteiro de forma involuntária.
- Em que situação?
- Na hora do almoço... rodeando a Elise. - O rosto dela começou a ficar róseo enquanto ela falou lenta e pausadamente. Como se escolhesse bem as palavras.
- Por isso você nos evitou?
Vi a vermelhidão se intensificar em suas bochechas e então irradiar por todo seu rosto até seu pescoço. Com certeza era esse motivo. Ela sabia que era absolutamente transparente? Seus olhos se abriram um pouco, surpresos, e então ela desviou eles, envergonhada. E assentiu com a cabeça.
- Somente nela ou em mais alguém?
- Somente nela.
Pensei por alguns segundos. Eu e Nevra havíamos visto a sombra por meros segundos quando ela havia se afastado de Elise, após o ataque. Mas Mia, as via o tempo todo. Por quê? Era preciso investigar.
- Eu vou conversar com a Ewelein e a Huang Hua. Você pode ficar atenta a essa sombra? Verificar se ela vai influenciar outras pessoas?
- Posso tentar. Mas eu não sei como impedi-las Lance...
- Você não precisa impedir, apenas nos mantenha informados, ok? Ewelein e Huang Hua devem te chamar para conversar. Sua habilidade de ver essa criatura está a nosso favor.
- Certo.
- Por que você ficou ansiosa para me contar isso? - Ela fixou o olhar nas mãos retorcidas. Parecia uma criança culpada. Então soltou as mãos, respirou fundo, levantou o rosto e me respondeu, me olhando nos olhos.
- Não é algo que estou acostumada a compartilhar. Antes somente tinha dito para o Claude e apenas por sermos muito amigos. Além disso, tive medo de você achar que a sombra me persegue...
- O fato de você ser capaz de ver o que não vemos nos dá uma vantagem estratégica, seria burrice atacar alguém que pode fazer o que nós não podemos. – toquei seu queixo, levantando seu rosto para mim. Ela me olhou nos olhos mais calma. – Não precisa esconder suas habilidades aqui em Eldarya, especialmente não aqui no QG, ok?
- Obrigada.
- Sempre que quiser conversar, pode me procurar.
Ela sorriu levemente e eu acariciei o queixo dela, distraído. Então me levantei e estendi a mão ajudando-a a se levantar também.
- Vamos?
.。.:*☽*33 - Similares*☾*:.。.
PDV Nevra
Me dirigi para a Sala do Conselho descontente com a ideia de mais uma reunião. Estava ansioso por um pouquinho de tranquilidade e paz depois da viagem a Genkaku, visitar alguma civil, o que ainda não havia conseguido com a quantidade de trabalho acumulado. Me sentei e observei os membros da Reluzente chegarem pontualmente. Ao menos isso.
- Olá a todos. Obrigada por virem. Eu pedi que todos se reunissem para que a Ewelein apresentasse o resultado da análise das habilidades da Mia e Elise para vocês.
Vi a Huang Hua passar a palavra para a Ewelein.
- Obrigada, Huang Hua. Hoje no início da tarde, após treinar com o Lance, a Mia veio para que eu conhecesse melhor as habilidades dela. A ideia era tentar identificar a raça dela, pois ela não parece ser apenas descendente de dragões.
Ela olhou significativamente para o Lance. Ele era o único dragão, e tinha nos dito que ela tinha aura de dragão.
- Como Lance nos informou, ela tem aura de dragão, e a única forma conhecida de se ter aura de dragão é ser um dragão puro sangue. Porém ela não tem as características fisiológicas dos dragões. Como vocês sabem, os descendentes de dragão não manifestam absolutamente nenhuma habilidade dracônica exceto ter uma saúde excelente e maior força física que o normal. Mia realmente é forte fisicamente, mais do que o normal para o seu tamanho e estrutura física, além de ter uma saúde excelente. Mas ela tem a habilidade de ver sombras que ainda não identificamos o que são e projetar escudos de defesa, que tampouco são típicas de dragões, por isso temos quase certeza que ela é, no mínimo, híbrida com outra raça.
Todos continuamos acompanhando o raciocínio da elfa, tentando entender o motivo de isso ser importante o suficiente para ter uma reunião exclusiva. Há vários faelianos com ascendência não identificada na Guarda.
- Nos exames realizados anteriormente, Mia e Elise apresentaram semelhanças físicas curiosas. Há sete anos atrás, Elise experimentou um fortalecimento de suas habilidades, passando a sentir as emoções e sensações das pessoas quando estas se aproximavam dela, sem precisar mais se concentrar. Mia entrou em coma, também sete anos atrás e passou um ano e meio em coma. Pela descrição de ambas, esses efeitos foram sentidos no mesmo período em que o Cristal foi quebrado. Elise ainda relatou sentir uma nova potência das habilidades no período que coincide com o despertar de Erika e Leiftan.
Senti o ambiente pesar, e comecei a entender o motivo da reunião. Mia entrou em coma sete anos atrás? Quando o Cristal foi quebrado? E ambas chegaram em Eldarya ao mesmo tempo.
- Mas Mia tem habilidades diferentes da Elise. – Chrome comentou.
- Sim, ainda não sei a que se deve as habilidades da Mia. Mas não podemos ignorar que as duas compartilham aspectos físicos muito similares, e coincidências demais para serem apenas isso, coincidências. São semelhanças físicas e eventos de vida.
- Será que elas sentem o Cristal? – cogitou Huang Chu.
- Não sei. Não temos a menor pista. Poderia ser a Erika ou até mesmo o Leiftan. A realidade é que temos, no mínimo, três elementos comuns aos dois eventos.
- O Leiftan? – questionei irônico. Ainda não engoli ter o traidor de volta à Guarda.
- Não podemos descartar nada, Nevra. – respondeu a Huang Hua. – E não podemos descartar o fato de que ambas chegaram a Eldarya em um momento tão específico. Antes ou depois poderíamos não relacionar, mas elas chegaram exatamente quando Eldarya está sob ameaça.
- Quanto às marcas no pescoço da Elise eu consegui identificar do que elas são feitas. – olhei surpreso para a Ewelein. – É bem simples e, na realidade, engenhoso. Uma quantidade mínima de maana e uma quantidade significativa de raio de luar, mas em um entrelaçamento único, que pode ser captada pelos aparelhos, mas não pelos olhos, e possuem uma frequência de luz e sombras específicas. As frequências de sombra quase não são estudadas e nós temos o equipamento apenas por termos um membro umbracinético na Guarda. Ainda não sei o motivo do Nevra e Lance verem, e de cada um ver exclusivamente uma delas apenas. Mas eu sei que não é relativo à raça, pois a Karenn não foi capaz de ver a marca que o Nevra vê.
- Precisamos descobrir o motivo delas terem sido feitas nela. – Lance comentou tranquilo.
- Sim. Mas elas podem ter nascido com as marcas.
- Elas? – Lance perguntou, curioso, se antecipando ao meu questionamento idêntico.
- Sim. Mia também tem duas, uma de cada lado do pescoço. Uma similar à que Lance vê, e outra com um desenho diferente. - Ewelein apresentou os desenhos dos pescoço de ambas. Uma das marcas de Mia era idêntica à outra da Elise. A que Lance via. Peguei a outra marca, parecia… humana?
Sentimos uma surpresa geral. Até o momento tínhamos trabalhado com a hipótese das marcas serem cicatrizes, mas se ambas carregavam marcas com a mesma composição, aquilo parecia mais ser uma marca de nascença. Que tipo de raça nascia com marcas assim?
- Isso é uma mordida humana, Ewe? - Chrome perguntou, olhando a imagem em minha mão.
- Não temos certeza. Muitos faeries tem a mesma forma. Eu vou pedir uma cópia do Manual Ortodôntico Feérico da Biblioteca de Liaval para comparar os formatos. Somente então poderemos começar a ter alguma ideia.
- As duas têm marcas feitas da mesma forma. - Feng Zifu falou do Momomuff escondido no meio da sala.
Todos nós encaramos o Lance. Ele via a marca da Elise, mas e da Mia? Observei curioso o desconforto leve do dragão que apertou os lábios antes de responder, com uma voz bem serena.
- Eu nunca vi a marca da Mia.
- E você teve oportunidade de ver o pescoço dela à noite?
- Sim. Durante a viagem de barco. O Nevra pode confirmar, a marca da Elise brilha a noite, é fácil de ver à distância. A da Mia nunca apareceu.
- Eu nunca ouvi falar de uma raça que reunisse nem metade dessas características. – ouvi o Chrome comentar, coçando a cabeça, naquele tique dele quando estava pensativo.
- Acho que ninguém conhece. – Concordei com ele. - As marcas ficam apenas na superfície da pele, Ewellein?
- Não. Elas se conectam a uma rede, um sistema completamente desconhecido que se espalha por todo o corpo delas, se conectando a todos os sistemas, órgãos e regiões. As marcas são apenas a ponta do chifre do chiromagnus.
- Alguma ideia do que esse “sistema” faz? - Huang Hua questionou.
- Não sabemos, mas pela composição, desconfiamos que maana circula pelo sistema. - Huang Chu explicou. - O que torna esse sistema algo engenhoso e extremamente potente. Usualmente o maana se espalha por todas as células do corpo, se espalhando por contato, por meio de osmose, até inundar todo o organismo, possuindo centro de acúmulo que variam de raça para raça, sendo a região cardíaca e cerebral as mais comuns. No caso delas, parece que os canais espalham a magia, tornando o sistema infinitamente mais rápido e parece ser a causa da potência da Elise. Além disso, nenhuma delas possui centros de acúmulo de maana, sendo que ele está harmoniosamente espalhado pelo organismos delas.
- Isso significa que a Mia deve ser capaz de fazer magia como a Elise. - Afirmei.
- Ela não sabe ou não nos contou isso? - Chrome questionou, sério. Afinal estamos falando do mais novo membro da Sombra.
- Tem outra coisa. – ouvi o Lance dizer após um breve silêncio. – Mia me contou depois do treino que viu uma sombra ao redor da Elise hoje na hora do almoço. Ela estava nervosa, com medo de nós a tratarmos mal, como se ela atraísse as sombras.
- Não podemos descartar a hipótese. – Comentei.
- Mesmo que seja o caso, precisamos descobrir o motivo. Pois ela também consegue ver essas sombras, assim como eu e você vimos rapidamente. Mas ela vê permanentemente.
- Ainda assim é uma vantagem ela ver, pois ao menos não estamos cegos. Se ela atrai, é algo que precisamos avaliar, pois se for o caso, precisamos descobrir o motivo e pesquisar sobre como bloquear. – Huang Chu comentou séria como sempre. - Nesse caso Ewelein e Huang Chu, deixarei com ambas a responsabilidade de unir as duas e estudar o caso.
A reunião acabou rapidamente e pude ir para o meu quarto buscar minhas coisas para um banho. Deixei a água correr no meu corpo tenso, mas ela não conseguiu lavar a tensão das responsabilidades. Não bastasse desconfiar que Eldarya esteja se fundindo com a Terra, o iminente conflito com os humanos, uma nova forma de contaminação, as vidas que se perderiam no processo, temos duas novas faelianas que podem ou não estar relacionadas com essa situação. Que saudade de quando as coisas eram mais simples. Imediatamente ri amargo comigo mesmo. Quando foi que minha vida foi simples? Nada nunca caiu de graça no meu colo, tudo teve que ser conquistado com batalha, dor, sangue e lutas. Não seria agora que eu teria paz. Algum dia eu vou saber o significado de ter paz?
.。.:*☽*34 - Lance e Valkyon*☾*:.。.
PDV Mia
Fechei lentamente o livro que continha a história de Eldarya até o Sacrifício Branco e encarei a bela capa, sem realmente ver nada na minha frente. A palavra Sacrifício Branco vinha me atormentando desde que escutei Huang Hua se referir a ela no meu primeiro dia aqui, até ter a oportunidade de vir à Biblioteca buscar esclarecimento. Me levantei anestesiada, coloquei o livro de volta no lugar e saí da biblioteca, caminhando e recordando a história desse lugar.
Eldarya não é um mundo natural, mas um mundo criado por magia há alguns séculos. Cansados de serem perseguidos pelos seres humanos, os faerys lançaram uma magia para criar um novo mundo. Essa magia tinha um custo alto, o sacrifício das duas raças mais fortes: dragões e aengels. Mas os aengels deram para trás e não participaram integralmente do sacrifício. A magia foi lançada e esse momento foi conhecido como Sacrifício Azul. Mas para o azar dos faerys que migraram em massa para esse mundo, ele se revelou infértil. E agora eles dependiam de portais para a Terra para buscar comida pois nada desse mundo era nutritivo, e nada que se plantava, frutificava. Nem os animais desse mundo alimentavam os faerys. Recordei os peixes que pescamos na balsa e que nunca nos alimentavam e entendi o que significava não ser nutritivo.
Os Eldaryanos passaram por longos períodos de fome, houveram guerras pelos escassos recursos. E por essa tragédia, os aengels e seus descendentes foram caçados até a extinção, e os dragões já haviam sido extintos durante o lançamento da magia de criação de Eldarya. Mas seus descendentes também foram caçados pelos faerys, na esperança de restaurar o equilíbrio deste mundo. Desde a criação de Eldarya, um cristal surgiu, abrigando o Oráculo, que orientava e auxiliava os Eldaryanos. Só que nem tudo é o que parece. Nem todos os aengels morreram no extermínio, pois aengels não tem uma característica física explícita. E descendentes podem ser encontrados na Terra, como foi descoberto recentemente com a chegada da escolhida do Oráculo, a Érika, trazida há pouco mais de sete anos para Eldarya. Ou o aengel puro Leiftan, que viu os pais serem assassinados e hoje, é considerado o último aengel puro.
Uma mãe, grávida de gêmeos, não teve coragem de sacrificar seus bebês durante a criação de Eldarya, e deixou ambos ainda dentro de seus ovos em um vulcão adormecido. Séculos depois, esses bebês nasceram, revelando dois dragões, Lance, o mais velho, e Valkyon, alguns minutos mais novo. Mas ambos estavam em uma profecia dracônica como se viria a descobrir anos mais tarde: “Dois irmãos inimigos, um do frio, outro das chamas, combaterão um dia acima das nuvens. Um deverá vencer o outro para encontrar a paz. Um deverá vencer o outro, deixando sua alma"
Lance e Valkyon ocultaram sua natureza dracônica, cresceram em um vilarejo, e anos depois se uniram à Grande Guarda de Eel na qualidade de refugiados. Lance logo se tornou Chefe da Guarda Obsidiana, mas ao descobrir como seus pais e todos os dragões morreram, foi assombrado pelo Sacrifício Azul e, sendo dominado pelo ódio, jurou destruir Eldarya e os faerys pois estes não eram dignos de viver às custas do sofrimento de seu povo, que ele acreditava estar preso dentro do Grande Cristal. Para isso, Lance fingiu sua morte e assumiu o alter ego de Ashkore.
Valkyon sofreu muito com a “morte” de Lance, e acabou assumindo seu lugar como Chefe da Guarda Obsidiana. Meses depois Lance faz seu primeiro ataque ao Grande Cristal, estilhaçando esse, sem no entanto destruí-lo. Seu ataque criou instabilidade nesse mundo e, acredita-se, provocou a vinda da escolhida do Oráculo, o que mudaria os rumos do plano de Lance, já que seu principal aliado, Leiftan, se apaixonaria e entraria em conflito com os planos originais, pois posteriormente foi descoberto que destruir o Cristal significaria matar Érika. Sete anos atrás, a grande batalha prevista na profecia aconteceu, e Lance venceu a batalha, matando Valkyon e destruindo o Cristal.
Ao ver o irmão morto, Lance imediatamente parou o ataque e se rendeu, cumprindo a profecia. Valkyon perdeu sua alma, e Lance ganhou a chance de encontrar a paz. “Um deverá vencer o outro para encontrar a paz. Um deverá vencer o outro, deixando sua alma". Mas o Cristal estava destruído e Eldarya em breve seguiria o mesmo destino. Para evitar esse destino, Erika e Leiftan realizaram o Sacrifício Branco, unindo suas almas ao Cristal e reparando o erro de seus antepassados. E o mundo se reequilibrou, os alimentos se tornaram nutritivos, novos animais surgiram. Enfim, Eldarya se tornou fértil.
Suspirei profundamente. Valkyon existiu. Ele foi real. Me lembrei dele me explicando que estava morto. Ele nunca havia me dito que tinha sido assassinado. E o assassino era seu próprio irmão! O Lance que eu conheci, que achei tão parecido com o homem que salvou minha vida. Um turbilhão de sentimentos confusos inundava meu peito, me sufocando.
Estar aqui, hoje, torna cada vez mais real tudo que vivi em meu coma. Não há mais dúvidas que foi tudo real. Fáfnir e Valkyon são reais. Fáfnir é o antepassado de Valkyon e Lance. Não foram frutos da minha cabeça, do coma, não são uma projeção. O que significa que tudo o que vivi durante aquele um ano e meio, tudo que eu me lembro… são verdadeiras lembranças. Mas há tantos buracos! Tanta coisa que não lembro!
Fechei os olhos tentando encontrar alguma lógica em tudo isso. Como podia ser real? Eu ainda guardava em mim incredulidade, e buscava soluções mais lógicas para todas as coincidências que aconteceram após o coma. Mas agora, não há como mais dar desculpas esfarrapadas. Senti minhas crenças desmoronando como um castelo de cartas imperfeito, soprado pelo vendaval. Descobrir a história dele me trouxe mais questões e me sinto… não sei como me sinto. A angústia em meu peito é angustiante. Me lembro da descrição do local onde Valkyon foi enterrado, numa cerimônia que foi negado ao Lance acompanhar, e me dirijo até lá.
O que estou buscando? Não tenho ideia. Encaro o local onde o dragão que salvou minha vida está enterrado. Valkyon foi o Dragão que deixou sua alma para que seu irmão encontrasse a paz? Me lembro do olhar de Lance, superficialmente calmo como um mar perigoso, cuja tormenta se esconde sob as águas límpidas. Eu via o olhar atormentado dele quando estava sozinho no barco, quando ele acha que ninguém está olhando. Parece não ter havido um dragão vencedor nessa batalha.
Toquei a lápide discreta, que combinava tão bem com o que conheci do dragão de fogo. Valkyon e Lance eram irmãos. Eu sabia que eles eram parecidos, e estupidamente busquei justificativas para isso, ignorando a obviedade de que fossem gêmeos. Também achei que pudessem ser a mesma pessoa, ou uma previsão do futuro minha. Ou apenas acaso. Mas eu nunca poderia imaginar que era assim que tinha acontecido.
Uma lágrima quente escorre pelo meu rosto, seguida por outras. O irmão que ele tanto amava. Que ele tanto admirava. Foi o mesmo que o assassinou. Ele morreu há sete anos, durante uma batalha por Eldarya. Ele se deixou matar pelo irmão, deixou porque uma profecia dizia que com a vitória, o irmão dele encontraria a paz. Valkyon entregou a própria vida pela chance, apenas pela hipótese do irmão encontrar a paz. Sim, aquele era o Valkyon que eu conhecia. Generoso, amoroso, companheiro. Meu amigo querido e amado. Fechei os olhos e me lembrei da paz que sempre senti emanar dele. Era assim quando se morria em paz?
- Mia?
Escutei surpresa a voz grave que aprendi a reconhecer com mais facilidade do que o normal. Talvez porque eu venha olhando ele com os mesmos olhos com que encarava o Valk. Projetando nele todo meu amor, carinho e gratidão, devidos ao irmão dele, não a ele.
- Tudo bem? - Ele me perguntou desconfiado. O som da sua voz mais próximo.
Abro a boca para responder que estou bem mas o som não sai. Me descubro muda, incapaz de falar algo. Eu não entendo e tento dizer que estou bem novamente e novamente a mudez se impõe. Sinto sua mão tocar meus ombros e me afasto como se tivesse sido tocado por fogo.
- Me dá um tempo, Lance! - Não era o que eu pretendia dizer. Tento pedir desculpas, mas não consigo. O que está acontecendo?
Ele fica em silêncio e simplesmente olha o lugar onde o irmão está enterrado. A tormenta se revela rapidamente em seus olhos. Me dou conta de que minha presença aqui é suspeita. Tento inventar uma desculpa, qualquer uma, mas todas em que penso, quando tento falar, o som não sai. O nervosismo piora as coisas, me faz ficar ansiosa. Encaro o Lance e não sei como me sinto. Percebo que efetivamente havia transferido para ele toda minha confiança e carinho que sentia pelo Valkyon, apenas pela sua aparência parecida. E me sinto traída. Por ele, e por mim mesma.
- Você precisa de ajuda?
- Por que?
Ele me encarou, confuso. Obviamente esperando que eu terminasse minha pergunta, mas eram muitas perguntas, nem saberia começar. A pressão em meus ouvidos, no meu cérebro me impedindo de conectar meus pensamentos adequadamente. Eu não confiava nele. Um assassino. Um fratricida para ser exata. Senti minhas feições mudarem enquanto pensava nele assassinando meu amigo. Ao mesmo tempo as perguntas que atropelavam meu cérebro e minha capacidade de raciocinar. Eu queria gritar que o odiava, que o irmão dele era muito melhor que ele, mas o silêncio era o que saia de meus lábios, e isso era desesperador. Por que eu não conseguia falar?
- Mia… - Ele me olhou de um jeito… Como quem fala como uma criança. - Dragões não conseguem mentir um para o outro.
O encarei confusa com aquela informação. O que ele estava falando? Ele acha que eu sou um dragão?
- Eu não sou um dragão, Lance. Eu não sei o que você pensa que eu sou, mas eu não sou um dragão.
Ele me olhou com… pena? Não conseguem mentir, é? Tentei xingar e ofender ele. E não consegui. Com uma irritação cada vez mais crescente, apelei para coisas simples, olhei a camisa azul dele. E não consegui mentir sobre sua cor. Olhei sua calça cinza e tampouco conseguia falar em voz alta que a calça tinha outra cor que não cinza. Não percebi que estava dando passos e passos para trás a cada mentira que não conseguia cuspir na cara dele. Uma tempestade se formou em meu peito. Eu não conseguia mentir para ele? Caí no chão, a constatação de que não conseguia mentir para ele mais dolorosa que o tombo.
- Você obviamente acredita que não é um dragão, mas você é Mia. Eu posso sentir sua aura, e você não consegue mentir para mim. É visível. Eu ia falar depois contigo, mas…
- Eu não sou dragão! - Gritei. - Você é um dragão! Valkyon era um dragão! Fáfnir era um dragão! Eu não sou ****** um dragão!
Me levantei, virei de costas e sai correndo, confusa com o quer que aquilo significasse.
.。.:*☽*35 - Eu Te Vejo*☾*:.。.
PDV Mia
- Obrigada por vir, Mia.
- De nada. – Respondi enquanto me sentava.
Estava em um quarto da enfermaria com a Elise, a Ewelein e a Huang Chu, e a sombra da Elise. Ewelein já havia conversado conosco sobre o que iríamos fazer. Ela e Huang Chu iriam testar diversas magias e alquimias para tentar fazer com que a sombra se tornasse rastreável.
- Nos diga o que você vê, Mia.
- É uma sombra apenas, Huang Chu. Comum, como a que todos nós temos no chão.
- Tente se concentrar e nos diga mais sobre essa sombra.
O que ela queria que eu dissesse? Encarei a sombra tentando ver algo mais. Mas não conseguia ver realmente nada. Era como encarar algo que não estava realmente ali, que se desfazia quando encarada fixamente. Eu via a sombra quando não estava olhando, indiretamente, como um vulto que está ali quando você não olha e desaparece se você o procura.
- É sutil, como uma sombra mesmo. Não parece ter peso, não altera nada ao redor, não tem uma sombra própria, a luz passa por ela como se ela não existisse. Literalmente é como se eu visse algo que não está realmente ali. Por isso sempre ignorei. Quase como se o problema fosse nos meus olhos.
- Mas nós sabemos que não é, pois Lance e Nevra também viram. - Ouvir o nome daquele dragão me irritou, mas tentei não demonstrar.
- Certo. Ela se move às vezes, mas no momento ela tá parada nos ombros da Elise.
- Ok.
Observei enquanto elas tentaram algumas magias, usaram alguns produtos de alquimia, mas nada parecia ser capaz de mapear a tal sombra. Ora ela se mexia e eu avisava as meninas, ora parava em algum lugar do corpo da Elise. No segundo dia, eu estava surpresa, pois na balsa e em outros lugares, a sombra sempre se movia de pessoa para pessoa. Mas ali, ela só queria saber da Elise. Contei isso para elas, e a Ewelein anotou tudo.
- Você não sente nada? - Questionei a Elise, me recordando da mudança de comportamento nas pessoas da balsa.
- Não. – Elise moveu a cabeça de um lado para o outro. – Você sente?
- Sim.
- Você não nos disse que sentia a sombra, Mia. – Huang Chu me falou, em um tom surpreso.
- Desculpa, eu não percebi. – senti meu rosto ficar quente.
- Tudo bem. O que você sente?
- É desagradável. Ela me transmite sensações e emoções ruins. Tudo depende do lugar. Agora ela me deixa um pouco abatida e inquieta.
- Espera... é assim que eu estou me sentindo. – Elise comentou. - Será que ela está influenciando como eu me sinto?
- Não sei... Mas acho que sim. Na balsa eu acho que ela fez isso...
- Você acha que é a mesma sombra? – Huang Chu me perguntou.
- Não faço ideia. São todas iguais para mim.
- Você poderia se concentrar nela...
Senti um arrepio com aquela sugestão e reagi com uma careta.
- Eu não quero fazer isso.
- Seria um teste. - Huang Chu comentou.
- Um teste?
- Sim. Mas não precisa fazer se for muito desconfortável para você.
Olhei aquela sombra. Eu queria me concentrar e sentir o que elas sentiam? Ao mesmo tempo, não acho que a Huang Chu sabe o que ela estava me pedindo. Olhei para a Elise e sabia que também não queria que ela ficasse mal como as pessoas na balsa. Então suspirei e convenci a mim mesma a fazer o que era pedido.
- Eu faço.
- Muito bem, nós vamos monitorar.
Esperei elas se organizarem e então me concentrei naquela sombra. Não senti nada no início, como se realmente não houvesse nada ali. Subitamente tudo mudou. Em um momento não havia nada, no outro foi como se uma barragem se rompesse, me inundando completamente de sentimentos caóticos de dor, raiva, desespero, apatia, ódio, crueldade, desprezo, e muitos outros altamente negativos. Um vórtice intenso de sentimentos misturados, confusos e dolorosos se chocaram contra minha alma, tomando todas as minhas emoções, agredindo meu ser em sua essência.
Eu não percebi que tinha parado de respirar, nem que estava em estado de choque, paralisada dentro do meu corpo, apavorada demais para qualquer reação. Até ouvir uma voz horripilante dentro da minha mente, e sentir o ódio mais profundo com o qual já tive contato na vida. Todo direcionado a mim mesma.
- Eu te vejo.
Acordei um pouco grogue e confusa. Olhei em volta e vi que continuava na enfermaria, mas não estava mais no quarto onde estávamos estudando a sombra. Me sentei e descobri que estava sozinha na cama, parecia ser de noite já. Eu tinha desmaiado? Testei a força nas minhas pernas e me senti bem. Me levantei devagar, pronta para sair dali e ir em busca de respostas quando vi a Ewelein chegar.
- O que você está fazendo?
- Estava procurando alguém.
- Eu estou aqui. Pode continuar sentada.
- Certo.
- Como você está?
- Bem. Só não sei o que aconteceu.
- O que você se lembra?
- Eu me concentrei na sombra voluntariamente, e então foi como se uma barragem de emoções negativas tivesse sido destruída e eu fosse a primeira cidadezinha no caminho. Foi... pesado. - Abracei meu próprio corpo em uma reação instintiva, acariciando meus braços, buscando conforto. - E então eu ouvi essa voz na minha cabeça, dizendo que me via. É a última coisa que me lembro antes de acordar aqui.
- Certo. Isso aconteceu quase sete horas atrás. Tudo que nós vimos foi você ficar branca como cera, parar de respirar e desmaiar. Nada te acordava e você entrou em um sono extremamente profundo, quase um coma.
- Foi estranho. - Falei quase comigo mesma, baixinho. Então levantei o olhar para Ewellein e determinei. - Aquilo... É maligno Ewelein. - Ela ficou quieta. - É sério. Me diz que vocês conseguiram captar algo. Eu não quero ficar perto daquilo de novo.
- Infelizmente nada. Mas descansa. Se você estiver bem, pode ir para o seu quarto. Claude estava aqui até agora há pouco. Ele saiu para ir ao banheiro apenas.
Como se tivesse sido atraído por magia, Claude entrou na enfermaria.
- Pundinzinho! Você acordou!
Olhei ele assustada. Desde quando ele me chama assim? Mas recebi o abraço carinhoso do meu melhor amigo, estava mesmo precisando.
- Você me deu um susto, docinho.
- Eu também me assustei. Dorme comigo hoje? - Depois da discussão com o Lance e essa experiência, eu queria, não, eu precisava muito companhia.
- Nem se você me chutasse, você conseguiria me deixar longe.
- Obrigada.
.。.:*☽*36 - Filha da Noite - Ira*☾*:.。.
AVISO! Este capítulo narra cenas de violência gráfica e tortura. Por isso foi bastante editado para ser publicado aqui, em uma versão Family Friend. O capítulo sem edições, está disponível no Wattpad.
PDV Elise
Os dias passaram sem novidades. Exceto por me dar conta que Mateus se esconde de mim, que o Leiftan me olha de uma forma assustadora e me esconder da Erika, de quem sinto vergonha. Também estou fugindo do Lance pois não quero treinar. Fugindo do Lance, percebi que o Leiftan costuma ficar sozinho em um local fora do QG. Então fui até ele um dia, pois ele sempre foi simpático comigo, mas naquele dia, embora suas palavras e gestos tenham sido gentis, havia algo nele que me fez sair dali o mais rápido que a educação me permitia. Não sei dizer o motivo, mas fiquei com medo dele. Era uma espécie de aura de perigo. Talvez seja algo da minha imaginação, ou esteja cansada. Ao mesmo tempo, a lembrança dele e Érika orbitando um ao redor do outro me dava uma dica da fonte de irritação dele.
Então aqui estou eu para mais uma noite supervisionada. Tentei arrumar um colchão para as pessoas que passam a noite aqui, mas parece que eles precisam ficar atentos a qualquer mudança. Me incomoda, e desconfio que a Ewelein coloca algo para dormir nos remédios. O que eu sei, é que todos eles sempre têm armas, e cada dia que passa, eles parecem mais tensos. Estou tentando ignorar, mas é como ignorar o elefante na sala, tá ficando impossível.
Acabo adormecendo como sempre, mas dessa vez, acordo no meio da noite. Me sinto calma, não, não. Fria é a melhor descrição, a crueldade em mim era palpável em minhas intenções. Ao mesmo tempo que sentia tudo, me sentia uma expectadora de mim mesma. Abro os olhos e observo a jovem no meu quarto. Uma guerreira bonita, alta, parece inteligente, desconfio que seja uma elfa negra, uma drow. No passado eles foram um problema, traidores. Irritada, sorrio em expectativa. Ela ficará linda gritando. Passo as mãos pelo meu corpo, em antecipação. Delícia. A jovem me olha tensa e isso me acende mais ainda.
Fico de joelhos na cama, ondulo meu corpo como uma serpente sedutora, sorrio sadicamente para ela. Ergo os braços e exponho minha nuca e pescoço ao seu olhar, segurando meu cabelo em um rabo de cavalo displicente. Essa coisinha linda, ela precisa começar a gritar. Jogo uma almofada nela, fingindo brincar. Ela coloca a mão na arma da cintura, mas não grita. Sinto a tensão se espalhar por todo seu ser, e uma dose de desejo. Drows são resistentes a magia, ela me mataria com aquela espada antes que eu a domine. Preciso desarmá-la antes que ela note.
- Elise, é você?
- Sim. Eu me sinto tão animada... Você pode me ajudar?
Ela me observa atenta. Exagero na ondulação do meu corpo, em uma dança sensual para ela. Eu realmente estou completamente animada, mas não pelo que ela acha. Ela parece pensar um pouco, me olha com olhos famintos e então se aproxima, encantada com meu corpo ondulante e convidativo. Que tola! A rata na armadilha da gata! Investigo as sensações dela, ela está se interessando... Então envio sensações da minha animação para ela, potencializando o que ela sente. Será divertido!
A coitada perde todas as chances assim que ponho minhas mãos nela. Me abraça faminta, beijando meu pescoço, explorando meu corpo sedenta. Retiro suas armas silenciosamente. Ela está se deleitando quando começo e seu grito ecoa no ambiente, me deixando deliciada com o som, tão raro no meu mundo. Empurro seu corpo contra a parede e me apaixono pela sinfonia se segue. Ela tenta se defender, o medo em seus olhos ao notar a ausência das armas me faz derreter de animação enquanto saboreio a pele de seu pescoço delicioso, mordendo sua pele delicada até machucar. Sua resistência mágica inútil sem sua capacidade de escapar ou o amplificador que drows gostam de carregar. Escuto a porta se abrir e, pelo canto dos olhos, vejo uma sombra se aproximar. Paraliso quem quer que seja rapidamente e apenas então me viro para ver quem é. E a visão me deleita. O vampiro delicioso. E ele está completamente surpreso.
- Elise, pare! - Ele me pede entre dentes. Quase um rosnado.
- Não meu brinquedo, nunca.
O jogo sobre a cama. Bloqueio as entradas do quarto mentalmente, portas e janelas vedadas. Posso sentir que outros se aproximam, mas obviamente que um vampiro puro sangue seria o primeiro, com sua audição impecável, olfato apurado e uma das maiores velocidades do mundo feérico. Ninguém vai atrapalhar enquanto eu brinco com esse vampiro. Tiro meu tempo para apreciar a delícia que pesquei. Ele é bonito demais, um espécime perfeito. Estou interssada por ele há dias, desde o primeiro momento em que pus meus olhos sobre sua pele clara e seus cabelos da cor da noite.
Monto sobre seu corpo lentamente, esquecendo completamente a elfa negra que cai desmaiada no chão. Beijo sua boca, enquanto deslizo as mãos por baixo de sua roupa, explorando seu corpo, sua pele fria e percorrida de tremores intensos me deixando desejosa por mais. Transfiro para ele as sensações que me preenchem, quero que ele saiba o quanto ele me anima e o quanto vou machucá-lo.
Me divirto e me exibo, sentindo diversos seres tentando entrar, desesperadas diante da barreira que criei na porta e janela. Aqueles faeries alados não vão me impedir hoje. Ninguém vai. Ouço gritos horrorizados diante do meu show.
- Ahhh meu vampiro delicioso. Temos plateia. Você é perfeito. Eu queria ter tempo para brincar com você, treinar você. - Sussurro nos ouvidos pálidos e frios.
Me sento confortavelmente sobre seus quadris e rasgo suas roupas exibindo seu tronco modelado por músculos. O abdômen de dar inveja a qualquer guerreiro ou competidor de músculos, não consigo memorizar os nomes atuais do mundo humano. Que visão perfeita!
- Um vampiro! Há milênios eu não tenho o prazer de ter um vampiro. E um puro sangue! Um exemplar tão perfeito.
Me deitei sobre seu corpo, olhei em seus olhos e disse baixinho, como eu sabia que apenas ele escutaria.
- Essa boba, teve o privilégio de receber você como guardião... Mas eu vou te matar antes dela sonhar com você... E vou deixá-la viva... Consciente que ela te matou... Ela vai se lembrar de tudo aqui... Do prazer que ela sentiu enquanto te torturava e te matava... Da próxima vez, eu vou matar o dragão dela... Sem os dois...
Nesse instante, ouvi um estrondo que me deixou confusa por alguns segundos, seguido do impacto de algo me jogando longe do corpo do Nevra.
- Não! Ele vai morrer hoje! - Gritei cheia de ódio.
Mas antes que pudesse fazer realmente algo, estava na janela, sob a luz da lua. Senti um peso se afastar de mim, o ódio me abandonar. E, ao ver Nevra naquele estado, instintivamente, implorei a ajuda daquela voz, ao invés de esperar que ela me ajudasse. Me ajoelhei rezando e chorando desesperada, eu não queria ser uma assassina.
“Por favor, eu preciso da sua ajuda. Eu preciso. Me ajuda a salvar ele. Me ajuda. Eu não posso perder ele”.
“Invoque a Lua de Sangue, minha filha.”
“Como?”
“Você sabe como.”
“Não sei.”
“Sempre soube. Você é minha filha, está dentro de você esse conhecimento.”
Eu fecho os olhos, vejo a figura do Nevra, mal respirando. A Drow desmaiada, recebendo os primeiros socorros. Armas apontadas para mim. Me lembro da promessa feita pelos meus lábios: “eu vou matar você... Da próxima vez, eu vou matar o dragão dela”. E aquilo fazia meu coração sangrar. Eu ia matar os dois com minhas próprias mãos? Senti a ira em mim e tive medo.
“Não reprima sua ira. A raiva, ela tem uma função.”
“Ela é destruidora.”
“Não. A raiva te dá força para lutar.. O que você faz com a força que ela te dá pode ou não ser destruidor.”
A voz nunca me enganou antes. Então deixei a raiva vir à tona. Raiva do ser que havia tomado posse de mim, raiva de mim mesma por ter permitido. Raiva por ter ferido a Erika, a Huang Chu e agora o Nevra. E fiquei mais furiosa ainda. Ela se sentia livre para provocar o caos naquele mundo e na Terra ao seu bel-prazer. Não bastava o sofrimento... o sofrimento... Uma comporta de ira profunda se abriu em mim, não apenas contra aquela criaturinha insignificante, mas contra os outros como ela que eu intuí que existiam.
E eu soube como fazer. Me concentrei na Lua e a vi coberta de sangue. Sangue de inocentes, torturados, feridos... Todos o sangue derramado banhando sua superfície. Entreguei de bom grado para a Lua toda a minha dor e fúria, eu não queria carregar aquilo comigo, precisava compartilhar com alguém. Coberta de sangue, minha mãe recebeu meu sofrimento, o sofrimento das minhas irmãs... E ela ficou irada por mim, pela minha dor... Cresceu em tamanho, ficou vermelha. Me senti unida com a lua como nunca julguei ser possível, como em meu sonho, minha mente estava finalmente clara. Olhei os rostos de todos, iluminados em vermelho pela Lua de Sangue, chocados.
A Lua da Justiça havia subido aos céus. E ela sempre cobrava o preço em sangue.
.。.:*☽*37 - Filha da Noite - Lua de Sangue*☾*:.。.
AVISO! Este capítulo narra cenas de violência gráfica e tortura. Por isso foi bastante editado para ser publicado aqui, em uma versão Family Friend. O capítulo sem edições, está disponível no Wattpad.
PDV Elise
Sob a luz da Lua de Sangue, a criatura se revelou para o meu olhar e a prendi rapidamente, de forma intuitiva. Era como lembrar de andar de bicicleta ou dirigir, ou naquele caso, como prender uma daquelas sombras. Ao mesmo tempo, em união com minha mãe, iniciei a cura do vampiro e da guerreira gravemente feridos por mim. Emitia uma luz pelas minhas mãos que saíam em variadas tonalidades de verde, do mais claro ao mais escuro, alguns pontos quase dourados. Mesmo com tantos tampando minha visão dele, eu não precisava vê-lo para conseguir curá-lo. Ainda assim, tirei alguns da minha frente, isso facilitaria para minimizar a dor dele. Eu me lembrava muito bem das palavras que saíram da minha boca sob o controle daquele ser, daquela sombra. Eu podia ferir e curar.
Fui até ele e fiquei de joelhos, peguei uma de suas mãos, me ajoelhando ao seu lado, ignorando o olhar mortífero da jovem de cabelos rosados. Enquanto o curava, tentava reduzir a dor do processo de cura, rápido demais e sem anestesia. Havia armas de todos os tipos apontadas para mim, mas ignorei. Me concentrei totalmente nele. Aos poucos Nevra se recuperou, as marcas e depressões em sua pele desapareceram. Os ossos voltaram à posição normal e cicatrizaram. Ele voltou a respirar normalmente. Sua pele voltou lentamente à tonalidade normal. Permaneci concentrada absorvendo a dor dele pelo contato físico.
Era muito doloroso, por isso abaixei a cabeça, mordendo o colchão para conter a vontade de gritar e me contorcer. Eu precisava garantir paz para ele. Ele já havia sofrido tanto em minhas mãos. Se eu podia transferir, eu podia absorver, era lógico. Senti a mão dele se afastar da minha e me recusei a soltar. Ele podia me odiar, mas eu iria até o fim ali. Senti que as duas mãos dele tentaram se fazer soltar.
- Elise, você precisa parar.
Eu o ignorei. Ele ainda tinha vários ferimentos, eu podia sentir.
- Para, por favor.
- Não.
Ele segurou firme minha mão. E mudou de posição, se sentando.
- Você deveria ficar deitado. - Alguém falou.
- Eu não estou sentindo nada.
Senti que ele pretendia se levantar, para me obrigar a parar de absorver as sensações dele. Então mudei rápido minha posição e deitei minha cabeça nas suas pernas, obrigando-o a continuar sentado. Quando finalmente terminei, estava cansada e ofegante. Mas ele estava saudável, sem nenhuma doença, ferimento. Estava perfeito novamente. Assim como a guerreira que eu achei que tinha matado. Tentei largar as mãos dele, mas ele não largou as minhas. Ficou segurando. Eu não queria olhar para ele, então continuei encarando o chão.
- Olha para mim.
A criatura gritava dentro de sua prisão, gritos agudos que feriam meus ouvidos. Minhas barreiras mentais estavam enfraquecendo, eu podia sentir meu cansaço chegando ao extremo. Meu peito ofegava, o suor escorria de minhas têmporas, revelando minha exaustão.
- Olhe para mim, Elise.
- Não.
- Por favor.
- Eu quase te matei...
- Não foi culpa sua...
- Mentira!
Olhei para ele. Minha raiva voltou com tudo.
- Mentira! Todos vocês estão mentindo! É culpa minha sim! A Erika, a Huang Chu, você! É tudo culpa minha! Porque eu não consigo me controlar! Porque essa coisa horrível, – olhei e apontei a criatura que riu deliciada, gargalhando alto. – esse monstro psicopata consegue me usar! É culpa minha! Eu odeio isso tudo!
Comecei a chorar no chão. Eu não me importava mais. Não me importava mais em chorar na frente de ninguém. De que importavam lágrimas? Eu havia derramado sangue, dor e terror na frente de todos.
- Elise...
- Não. Me escuta. Você tem que me matar Nevra. Aqui. Agora. Não vai melhorar. Eu não sei fazer melhor. Eu nunca aprendi a fazer melhor. Eu cresci assim. Meus pais sempre me avisaram, eles sabiam, sabiam o perigo que eu representava. Eles me diziam que eu nunca deveria usar meus poderes, que eu era perigosa. Eles falaram, eles avisaram tanto. Eles não me deixavam ter amigos, e foi o melhor. Eu nunca causei um acidente antes, entende? Mas aqui... Aqui vocês ficam querendo mudar as coisas... E aí, agora eu quase matei você...
Fechei os olhos e respirei fundo. Olhei para ele.
- Eu quase matei você Nevra. Você estava lá em Genkaku. Me trouxe para cá. A Erika me protegeu dos Kitsunes. Vocês todos foram tão gentis, cuidaram de mim. Me ajudaram. Quando eu senti a morte do Edgard, você não me abandonou no gelo, você me levou. Deus! E agora eu... eu... Que tipo de monstro deixa isso acontecer? Eu não sei usar isso, eu não tenho coragem de fazer isso. E essa coisa, ela quer matar todo mundo. Mas ela quer mais ainda matar você e o Lance. Você ouviu. Ela quer torturar e matar todo mundo. E ela vai me usar para isso. Ela vai.
Naquele instante, entendi quem precisava morrer naquela Lua de Sangue. Olhei as criatura com ódio, e pela primeira vez, ela teve medo, silenciando e tentando fugir da prisão. Comecei a fechar o portal, pressionar, tentei atravessar ela. Nada era capaz de ferir seu corpo sombrio. Ela então gargalhou apontando para mim.
- Você não sabe! A Filha da Lua não sabe como me matar!
Com sede de sangue, tentei ir até ela. Nem que eu tivesse que matá-la com minhas mãos, eu iria trucidar aquele ser. Senti o Nevra me puxar para trás e me abraçar.
- Me solta. Eu vou matar essa criatura! Eu vou destruir cada vestígio desse ser!
Eu gritei e tentei me desvencilhar. Estava cega de um ódio ancestral. Algo mais antigo estava vindo à tona. Eu queria vingança!
- Calma. Shhh.
- Você não precisa matar isso, nós podemos tentar entender o que isso é, Elise.
A criatura se sentou, agora com uma forma humanoide.
- Quanto tempo vocês acham que ela pode me manter presa? Ahhh. Ela é tão fraca. E eu já me diverti tanto com essa aí. Você se lembra? Você se lembra do quanto nós duas já fomos íntimas? Seu doce sangue já correu tanto para meu prazer... Seus gritos me deleitavam tanto.
E ela ria, e ria. Pânico cresceu dentro de mim. Ela tinha me torturado? Quando? Então desejei queimar ela, viva, ouvir seus gritos como ela tinha ouvido os meus. E consegui. De alguma forma o quarto se iluminou com uma luz espectral, como prata materiaizada, iluminando tudo aos seu redor como um raio de luar em noite de lua cheia. E a criatura começou a urrar. Sob aquela luz era possível ver o verdadeiro corpo daquele ser. Parecia que um dia havia sido uma mulher, um tipo de mulher, mas hoje era uma sombra, disforme. Ossos incompletos, carne apodrecida. Seu corpo parecia impossível de se manter em qualquer posição, pois pedaços faltavam, ainda assim, ela se movimentava com a agilidade e velocidade incríveis dentro da jaula prateada.
Era visível de algum lugar dentro de mim eu arrancara uma forma de ferir aquele ser. Ela se debatia dentro da jaula em que eu a prendia. Mas ao contrário dela, seus gritos não me causavam prazer e sua dor não me causava nada além de vazio. Fazer ela sofrer, ao contrário do que eu esperava, arrancava pedaços de mim, da minha alma. Me senti quebrada como um vaso frágil sob seus gritos de dor. Meus gritos se somaram aos dela, como se eu sentisse mais dor que ela. Cada pedaço do meu corpo tremia. Eu não sabia por que eu gritava. Eles simplesmente vinham de algum lugar que eu desconhecia.
- Deixe-a ir, Filha. – era a voz, se infiltrando em algum lugar ainda consciente do meu ser.
Obedeci liberando a sombra, exausta demais. Estava cansada. Cansada de lutar. Cansada de segurar. Cansada de conter. Cansada de odiar. Caí em algum corpo que estava na minha frente. Senti um abraço me segurar por trás. Me senti protegida naquele lugar. Senti meu corpo ficar mole, cada tensão se desfazendo. Era como ficar líquida. Minha consciência ia me abandonar e isso era maravilhoso. Eu queria ser uma ameba, uma flor. Eu não queria nunca mais sentir nada, pensar nada. Eu queria ser uma pedra. Isso. Uma pedrinha, rolando pelo mundo. Só uma pedrinha a mais em qualquer lugar.
.。.:*☽*38 - Filha da Noite - Prisma*☾*:.。.
PDV Lance
Me sinto distraído coordenando o treino da guarda essa noite. A discussão com Mia foi… estranha. O que ela fazia no local onde meu irmão está enterrado? Seus olhos e rosto molhados com lágrimas. Mas pelo meu irmão? Ou era por outro motivo?
- Corrija a postura dos pés, Islam. Estamos treinando agilidade e não força, lembre-se.
Volto a caminhar entre os membros da minha guarda que estão treinando. A raiva da Mia, parecia obviamente direcionada a mim. Mesmo antes que eu contasse que ela era um dragão. Não era como eu pretendia fazer, mas vê-la lutando com o silêncio, algo que acontece quando um dragão tenta mentir para o outro, me cortou o coração. Eu podia sentir que ela estava tentando mentir para mim, provavelmente falar que estava tudo bem, sem conseguir. Achei que facilitaria explicar o motivo dela não conseguir falar, especialmente depois dela já saber que era faeliana. Usualmente faelianos adoram descobrir suas raças, mas ela reagiu muito mal. Eu poderia ter desconfiado na hora em que ela me olhou com raiva, quase como se me acusasse de algo.
- Kirina, seu flanco está ficando descoberto com frequência.
Mas não me lembro de ter feito nada para irritá-la. Rememoro todas as nossas interações desde que nos conhecemos e não identifico nenhuma que poderia ter causado toda irritação. Ela é impulsiva e impaciente, e já explodiu comigo em quase todo o treino, como se algo em mim a deixasse desconfortável. Incluindo a forma estranha como ela me encarou quando nos conhecemos e seu comportamento meio obsessivo ao me olhar durante a viagem. Embora desconfortável, imaginei que ela estivesse lidando com a surpresa de encontrar outro dragão, de sentir uma aura de um igual pela primeira vez. Até mantive distância para que o relacionamento dela não fosse afetado de nenhuma forma. Eu estava enganado?
A forma como ela falou os nomes do Valkyon e do Fáfnir. A pronúncia foi perfeita, como alguém que aprendeu e conviveu por muito tempo, havia uma intimidade na forma de falar. Não é como se fala de quem se ouviu falar, de um conto ou uma lenda. É como se fala de alguém que é conhecido. Posso estar enganado, mas havia intimidade no tom de voz dela ao se referir à minha família. Mas como ela poderia conhecer os que estão mortos? Impossível. Talvez… durante o coma?
Ouço um grito agudo de agonia que interrompe minhas reflexões e reconheço vir do Nevra. O que é capaz de ferir um vampiro puro como ele? Enquanto corro em direção aos gritos, vejo outras pessoas seguindo para o corredor das guardas, todas armadas. Uma aglomeração na frente do quarto da Elise. Merda!
- O que está acontecendo? - Questiono, tentando entender a comoção.
- Uma guarda inconsciente e agora ela está torturando meu irmão. – Karen rosna a resposta entre os dentes.
Vejo Jamon afastar a aglomeração. Huang Hua e Huang Chu analisam com atenção a porta. Os gritos do Nevra estão ficando mais altos. Dá para ouvir daqui os estalos de ossos sendo quebrados. A dor deve ser insuportável. Olho dentro do quarto e a vejo ondular o corpo sobre o dele mimetizando uma relação íntima. Alisando, mordendo e lambendo seu peito, onde é possível ver pontos estranhos, alguns inchados, como se o osso tentasse sair e outros fundos. O rosto dele está retorcido de dor, mas seu corpo continua imóvel.
- Ela o paralisou. Isso é novo. – penso alto.
- É o que parece. E ela bloqueou a porta e o acesso pela janela. – Complementou a Huang Hua. Olho a janela e vejo Celis, uma harpia, e Acos, um garuda, tentando entrar pela janela.
- Não dá para abrir rápido o suficiente - diz a Huang Chu.
- Essa mulher tá morta. – rosna a Karen.
É uma cena de uma perversão absurda. E as coisas que ela fala, no mesmo sotaque estranho, carregado, estrangeiro. Como um alter ego de extrema crueldade. Vejo a Karenn, concentrada em uma forma de entrar e matar a Elise, suas adagas riscando a parede. Nevra está visivelmente fraco e apenas geme. Droga, ela vai matar ele. Olho em volta. Tem uma chance. Ela bloqueou a porta e a janela. Mas não deve ter bloqueado as paredes.
- Se afastem todos, eu vou quebrar a parede!
- Lance! - Huang Hua sabe que será doloroso e que posso me ferir no processo.
- Rápido! O Nevra não tem muito tempo! Ele só está vivo porque ela acha que nós não vamos entrar!
- Karen proteja o Nevra. Mateus proteja Maya. Huang Chu e Ewelein, primeiros socorros. Lance, Jamon, Chrome, Linha de frente. - Huang Hua começa a organizar todos.
Todos se afastam rápido e me transformo em dragão, sinto o impacto de me transformar em um lugar tão pequeno e me sinto preso, asfixiado. É doloroso me transformar em um lugar pequeno, mas forço a transformação assim mesmo, quebrando várias paredes no processo, inclusive a do quarto da Elise. Rápido, consegui jogar ela longe do Nevra, pegando-a de surpresa. Ela caiu na janela, sob a luz do luar, e assim que a luz a iluminou todos vimos, de relance, uma criatura, meio humana, enroscada no corpo dela. Meio sobreposta ao corpo dela, meio montada nela, como uma sombra. Pela primeira vez todos nós conseguimos ouvir a criatura rir, divertida ao se afastar do corpo da Elise. Vimos ela cair ajoelhada no chão, enquanto parecia orar, chorando.
Elise parecia travar um diálogo interno. Nevra e Maya estavam em uma situação deplorável pelo que ouvíamos da Huang Chu e da Ewelein. E Elise apenas havia brincado com eles. Ela não havia atacado para matar. Ambos estariam mortos se ela tivesse desejado. Se a criatura medonha tivesse desejado. Eu pude ver a criatura dançar um balé macabro diante de meus olhos.
- Huang Hua? - Eu sabia que ela não veria a criatura, mas veria sua aura.
- É um espírito. Nós não temos armas aqui para atacar um espírito. Vamos ter que manter a Elise desacordada...
Nesse instante o céu noturno começou a ficar vermelho, a lua cresceu como nunca vimos em Eldarya, como apenas conhecíamos das lendas e histórias antigas da Terra. Uma Lua de Sangue, a Lua da Guerra e da Morte. A criatura não bailava mais, e encarou a janela, imóvel. E Elise, sua roupa desapareceu diante dos nossos olhos e sobre seu corpo se materializou, como se tivesse vida, e saísse de dentro do corpo dela, uma espécie de armadura, da mais absoluta delicadeza, como talvez, apenas talvez, o mais hábil armeiro élfico seja capaz de fazer, mas duvido. Uma rede intrincada de um metal prateado que emitia luz, contratando com um tipo de tecido vermelho como sangue fresco, diáfano como a luz que nos iluminava. Olhos leigos diriam que a armadura é frágil, minha experiência me diz que talvez essa seja a melhor armadura que já vi na vida. Além disso, duas longas, largas e delicadas asas duplas se revelaram nas suas costas, refletindo o tom de sangue, impossibilitando que identificassem a cor verdadeira.
Sem olhar de lado, ela fez um gesto e capturou a criatura em uma prisão prateada, similar ao escudo que Mia usou para defender a balsa, recordei imediatamente. A criatura gritou, esperneou e tentou fugir, mas estava presa. E percebi que sob a luz vermelha da Lua, todos viam a criatura. E nenhum de nós nunca tinha visto aquilo. Enquanto Elise me lembrou que mesmo faeries tem seus contos de fadas, e os nossos nos falavam das fadas ancestrais, e suas asas etéreas e a magia que fluía de suas almas para o mundo. Seres que respiravam e viviam de magia, e que mantinham a ordem no mundo mágico. Elas desapareceram misteriosamente, milhares de anos atrás. Sempre achei que eram lendas. Vendo Elise assim, desconfio que nossa lenda é real. E se for, temos um problema, pois fadas ancestrais eram mais fortes que dragões ou aengels.
Vi Elise levantar as mãos e delas saírem luzes em diversos tons de verde, do mais claro ao mais escuro, que iam até o Nevra e a Maya, desviando suavemente de nós. Karen tentou impedir mas a luz desviava dela sem nenhuma dificuldade, chegando ao Nevra. Imediatamente o vampiro e a guardiã ferida começaram um impressionante processo de cura diante de nossos olhos, o que acalmou o desespero da vampira. Elise nos afastou sem esforço, mas delicada, e se ajoelhou ao lado da cama pegando a mão dele. Ao fazer isso, Nevra parou de gemer dolorosamente.
- Ela está curando-os rápido demais. Maya está desacordada, então não está sofrendo. Mas Nevra está, e ele sente todo o processo acelerado. – explicou a Huang Chu, analisando a situação, as armas relaxando.
- Mas ele não parece estar sofrendo mais. – Comentei e indiquei o rosto tranquilo do Nevra, instantes depois.
- Porque ela está absorvendo a dor dele. – Voltei meu olhar e encontrei o rosto retorcido de dor da Elise.
Mais rápido do que havia levado para torturá-lo, Nevra voltou a ficar bem. Entendeu o que estava acontecendo e pediu que ela parasse de absorver a dor dele. Como eu esperava, ela não obedeceu. Ela deveria estar se sentindo culpada, e não ficaria em paz até que ele estivesse 100% curado. Ele tentou se levantar, e para tentar evitar isso, ela deitou a cabeça no colo dele. E ele entendeu que ela precisava desse momento, pois ficou quieto com a mão na cabeça dela, aconchegando-a como pôde. Sob o olhar atento e nada contente da sua irmã.
- Olhe para mim, Elise.
- Não.
- Por favor.
- Eu quase te matei...
- Não foi culpa sua...
- Mentira! Todos vocês estão mentindo! É culpa minha sim! A Erika, a Huang Chu, você! É tudo culpa minha! Porque eu não consigo controlar essa merda! Por que essa coisa horrível – ela apontou a criatura que ria cruel – esse monstro psicopata consegue me usar! É culpa minha! Eu odeio isso tudo! – e apontava para si mesma.
Ela começou a chorar sem parar, incontrolável. Agora era possível distinguir claramente entre o ser que tomava Elise e ela. Ela jamais faria mal a nenhum de nós voluntariamente. Mas por algum motivo, ela era totalmente acessível àquele ser cruel.
- Elise...
- Não. Me escuta. Você tem que me matar Nevra. Aqui. Agora. Não vai melhorar. Eu não sei fazer melhor. Eu nunca aprendi a fazer melhor. Eu cresci assim. Meus pais sempre me avisaram, eles sabiam, sabiam o perigo que eu era. Eles me diziam, que eu nunca deveria usar meus poderes, que eu era perigosa. Eles falaram, eles avisaram tanto. Eles não me deixavam ter amigos, e foi o melhor. Eu nunca causei um acidente antes entende? Sem amigos eu era inofensiva. Mas aqui... Aqui vocês ficam querendo mudar as coisas... Querem que eu goste de vocês. E aí, agora eu quase matei você... Eu quase matei você Nevra. Você estava lá em Genkaku. Me trouxe para cá. A Erika me protegeu dos Kitsunes. Vocês todos foram tão gentis, cuidaram de mim. Me ajudaram. Quando eu senti a morte do Edgard, você não me abandonou no gelo, você me levou. Deus! E agora eu... eu... Que tipo de monstro deixa isso acontecer? Eu não sei usar meus poderes, eu não tenho coragem de fazer isso. E essa coisa, ela quer matar todo mundo. Mas ela quer mais ainda matar você e o Lance. Você ouviu. Ela quer torturar e matar todo mundo. E ela vai me usar para isso. Ela vai.
Naquele instante, Elise tentou matar a criatura, mas não conseguiu.
- Você não sabe! A Filha da Lua não sabe como me matar! – riu desvairadamente apontando para Elise.
Filha da Lua? Elise era uma Filha da Lua? Todas as raças noturnas eram chamadas assim. Vampiros, lobisomens. Por que aquele ser havia falado como se fosse algo mais específico?
- Quanto tempo vocês acham que ela pode me manter presa? Ahhh. Ela é tão fraca. E eu já me diverti tanto com essa aí. Você se lembra? Se lembra do quanto nós duas já fomos íntimas? Seu doce sangue já correu tanto para meu prazer... Seus gritos me deleitaram tanto.
Ela disse que havia torturado Elise. Aquela informação era um soco no meu estômago. Eu havia visto minutos do que ela havia feito com Nevra, usando Elise. Mas ela havia dito que tinha torturado Elise por muito tempo. Se fosse verdade... Olhei a loira que parecia desmoronar. Ela liberou a criatura que fugiu do quarto, nos deixando com uma sensação ruim no estômago. Corri e aparei o corpo dela antes que ela caísse, visivelmente se desligando. A lua continuava vermelha. Vi suas asas começaram a desaparecer, como se nunca tivessem estado ali. Me surpreendi ao ver o Nevra abraçá-la por trás e sussurrar para ela:
- Vai ficar tudo bem.
.。.:*☽*39 - Nada Pode Mudar o Passado I*☾*:.。.
PDV Mia - 7 anos atrás.
- Quem é o povo sombrio?
- Um povo de um universo que amaldiçoou a si próprio e tiveram que ser isolados de todos os outros. – me respondeu a mulher albina.
- Por quê?
- Eles decidiram que queriam vida eterna, nunca mais morrer. Passaram eras nessa busca, envolveram todos os povos em todos os mundos, vivos e mortos. Um trabalho de busca coletiva. Um compromisso coletivo. Um delírio coletivo. Eles acreditavam que a causa de todos os males e sofrimento era ter que nascer e morrer, o esquecimento.
- Eles conseguiram? – senti um arrepio pensando em uma vida eterna, sem fim.
- Sim. Tanto buscaram que conseguiram. Um dia uma nova magia finalmente foi lançada, e ninguém mais morreu. E houve festa por muito tempo.
Assenti com a cabeça, tentando imaginar uma vida eterna, onde ninguém morre. Um arrepio percorreu meu corpo. A albina me encarou com olhos doces e gentis, acariciando meu cabelo.
- Eles criaram uma magia, mas não sabiam o custo dela. Uma vez feita, tudo que estava vivo nunca mais morreria. O custo da magia, pois toda magia tem um custo, é que nenhuma nova vida surgiria, mas eles só descobriram isso tarde demais. O custo da vida é a morte e o tributo da morte é a vida. Um não existe sem o outro.
- Nada nunca morre lá? Plantas, animais, pessoas?
- Nada morre. A magia cobrou seu preço.
- E nada nasce?
- Não. Por piedade, os poucos espíritos inocentes foram removidos do espaço dos vivos.
- Inocentes?
- Animais, plantas…
- Como eles vivem sem animais e plantas?
- Isso faz parte do preço que eles pagaram. Fome e sede nunca saciados. Realizar uma magia sem saber os custos que ela cobra, é aceitar pagar um preço sem saber o valor cobrado. Eles aceitaram de olhos fechados.
- Uau. E as almas dos mortos?
- Muitos rezaram por piedade, pois nunca mais poderiam nascer novamente. Condenados à existência espiritual de uma dimensão morta em vida. O guardião daquela dimensão havia tentado trazer bom senso, mas falhou. Sua última ação foi intervir pelas poucas almas que não aderiram à loucura coletiva. Não eram realmente inocentes, pois não lutaram contra, mas tampouco eram culpados, pois nunca ajudaram na criação e busca da magia que condenou esse lugar. O guardião do universo condenado pediu aos guardiões de outros universos que acolhessem essas almas, para que eles não fossem condenados juntos aos demais.
- E foi atendido?
- Sim.
- Os que estavam vivos deixaram corpos vazios e imortais, vasos ocos. Os que estavam mortos deixaram o universo sem se despedir.
- Sim. Mas não demorou para que os vivos sentissem as consequências de suas escolhas. Sem morte, não havia amarras para a crueldade dos maus, nem barreiras para a tirania. Não havia mais renovação, nem novas chances. A eternidade das penas se tornou uma realidade, e o paraíso sonhado, aos poucos, se tornou um inferno dominado pelo egoísmo, orgulho e crueldade sem fim, um caos. Sem morte e nascimento, não há o ciclo da vida, e sem vida e morte, não há esperança. Muitos resistiram e se esforçaram, mas um povo que procura atalhos, é um povo sem disciplina. Sem novas vidas, não há esperança renovada nos corações, pois cada vida que nasce, é um alento às almas dos vivos.
- Que horror! – olhei ao meu redor e até mesmo os pequenos dragões não voavam mais enquanto a mulher albina contava a triste história daquele povo amaldiçoado por si mesmo.
- Os milênios passaram, e os peregrinos de outras dimensões que sonhavam ou caminhavam nesse lugar, voltavam com narrativas infernais. No seu mundo, um famoso autor chamou os lugares que visitou de sete níveis infernais. Mas se há caminho de ida, há caminho de vinda. E os tiranos de lá, olharam com inveja e ganância para toda a vida e esperança que havia aqui fora, nos outros universos. E começaram a planejar formas de se apoderar dela. E isso, nós, protetores dimensionais não poderíamos admitir.
- Eles queriam expandir as garras para cá?
- Para todos os lugares. Levar seu inferno para todos os lugares. Normalmente os seres de uma dimensão não conseguem interagir com seres de outra dimensão adequadamente. As matérias diferem muito, a energia vibra em níveis diferentes demais. O máximo possível é a influência, que precisa de receptividade para ser posta em prática. Sintonia é essencial.
- Mas… e as almas que vocês acolheram? Elas têm a mesma energia deles, não?
- Sim. Elas podiam ser atacadas por eles, muito facilmente. Ao serem tiradas de sua dimensão, essas almas perderam uma proteção básica, seus corpos áuricos. E isso as deixam frágeis em relação às influências de qualquer alma mal intencionada, e até mesmo ao controle deles.
Senti meu coração congelar diante daquela informação. Eu me lembrava dela dizer que eu não tinha aura e por isso precisava dos meus protetores, e por isso eu quase morri quando eles morreram. Valkyon trabalhou sem descansar por semanas para me proteger com suas escamas, para me dar uma aura de forma alternativa, me permitindo sobreviver. Olhei para a belíssima mulher, que tinha muito pouco de humana, e que estava me olhando com carinho.
- Cada alma acolhida é preciosa para nós. Todas elas sentiram profundo arrependimento do que aconteceu em suas dimensões e, se pudessem, mudariam o passado, lutariam com todas as forças para impedir o que aconteceu. Mas não podem. Nada pode mudar o passado. Mas todas se voluntariaram para defender as dimensões que as acolheram, mesmo sem saber como.
Senti lágrimas rolarem em meus olhos emocionada. Aquela história tocava fundo em meu ser, na minha alma. Mesmo não me lembrando, meu coração sentia que aquela era a verdade da minha vida e eu lutaria pela minha liberdade, pela liberdade de todos com todas as minhas forças.
- Nós, guardiões, nos reunimos e abençoamos essas almas com uma conexão especial com protetores, espíritos afins e simpáticos às lutas dessas almas, e que se comprometeram a ajudá-las a se integrarem em nossas dimensões, suprindo elas com proteção áurica, dividindo o próprio maana vital. Com o tempo, muito tempo, elas acabariam absorvendo energia do novo universo que habitam e formariam a própria aura. Também garantimos a elas forças mágicas para que pudessem lutar contra a dimensão sombria.
- Como elas lutavam?
- De formas únicas em cada dimensão. Nessa, com a minha benção e apoio de guardiões.
- Sua benção?
- Sim. Com a força da Lua. Muitos pensam que a lua apenas reflete a luz do Sol, mas não, ela filtra a luz do Sol, e a reflete modificada, com magia. E essa magia é minha benção, pois minhas filhas podem manipular tudo que minha magia toca.
E ela me ensinou a usar sua magia, dobrando raios de luar, manipulando-os, intensificando sua luz, ou cegando tudo ao redor. A luz do luar não era difícil de manipular depois que senti como fazer isso. O mais surpreendente foi descobrir que o luar existe mesmo quando não o vemos, pois ele é uma mistura de energia clara e escura do universo.
- E o que você espera que eu faça com isso?
- Capture e mate.
Acordei escutando gritos e uma movimentação no corredor. Claude não estava no quarto. Abri a porta e segui o barulho da movimentação. Vi um dragão enorme em um corredor minúsculo, destruindo a estrutura ao redor dele. Ouvi mais gritos e voltei correndo para o meu quarto. Olhei pela janela e vi que tinham dois guardiões alados lá, na janela do quarto que eu imagino ser a que o dragão estava. Mas eles não conseguiam entrar. O que estava acontecendo? Analisei a janela e notei magia. Não qualquer magia, Magia Lunar. Havia muita preocupação e ansiedade, muita tensão e uma sede de sangue. Senti antes de ver, a Lua crescer e adquirir um tom vermelho sangue, uma Lua de Sangue, e me senti estranha conforme a mudança ocorria, como se algo me chamasse para a luta, uma fúria e uma vontade de guerrear também. Imediatamente soube que essa era a Lua da Guerra.
Assombrada, vi uma roupa metálica cobriu meu corpo, brotando da minha pele, como se viesse de dentro. Senti algo estranho em minhas costas e ao olhar, vi longas asas semitransparentes, reluzindo o vermelho da lua, com veios internos, como de uma libélula ou inseto, dessas asas um pó fino se desprendia, com um brilho prateado e furtacor. Maiores do que eu, suas pontas superiores ficavam acima da minha cabeça e eram pontiagudas, e suas pontas inferiores tocavam levemente o chão. Com novo choque, percebi que sentia onde elas tocavam. Tentei mexer levemente elas e senti músculos novos nos ombros, costas e costelas. Toquei as asas e eram estranhas, nem finas, nem grossas, mas firmes. Ao tocá-las vi que minhas mãos estavam cobertas de delicadas escamas em vários tons de vermelho e algumas marrons e outras poucas douradas. As escamas cobriam minha pele de maneira irregular, como se elas estivessem abaixo da minha pele e agora aparecessem em falhas da minha epiderme. Meus braços também revelavam pontos com escamas e outros pontos em que apenas a textura das escamas se revelavam.
- Capture e destrua!
A voz da mulher albina ressoou em minha mente, impositiva. Corri instintivamente para a janela e vi sair, da janela onde as criaturas aladas estavam, uma sombra que escapou rapidamente por elas, que estavam preocupadas com o ambiente interno. A mesma sombra que seguia constantemente a Elise, soube na hora. Sem pensar duas vezes, com uma fúria que não sei de onde veio, capturei a criatura das sombras como eu havia feito antes no sonho.
- Destrua!
Ao ouvir o comando, destruí o material que envolvia a criatura usando os raios de luar, solidificando-os como fiz em Memória, fatiando-a e depois queimando cada pedaço com o próprio luar. Após terminar meu trabalho, me senti mais leve, mais calma e mais tranquila, em paz. Eu deveria estar chocada, apavorada, mas a única coisa que sentia era paz e a sensação do serviço bem feito. Aquela criatura não nos aterrorizaria mais tão cedo. Aos poucos senti as asas desaparecendo e me senti exausta. Me deitei na cama quase inconsciente e dormi novamente, um sono sem pesadelos daquela vez.
PDV Nevra.
Elise estava na enfermaria, novamente. Ela parecia concorrer com a Erika para saber quem ia mais para a Enfermaria em menos tempo. Enquanto isso, Ewelein havia feito um exame completo em mim e na Maya. Huang Chu e a Absinto em peso examinaram o quarto da Elise buscando rastros da criatura. Huang Hua convocou uma reunião de emergência, para logo depois desses exames. Encaro toda a reluzente reunida, e todos me olham preocupados, buscando qualquer sinal de dor. Chrome me abraça e eu sei que esse lobisomem gigante está chorando, como uma criança. A noite será longa. Nossa líder nos olha um por um, parando um longo tempo em mim, e nos pede para contar detalhadamente o que aconteceu. Eu fui o primeiro a relatar cada detalhe, incluindo o relato da Maya que eu havia coletado antes e a ameaça especial da criatura a mim e ao Lance.
- Isso pode estar relacionado às marcas no pescoço dela. Foi o primeiro episódio em que ela se manifestou. E eu comparei as mordidas. A marca que você vê, bate perfeitamente com sua mordida, mas não com a de outros vampiros da Guarda, como a Karen. A que o Lance vê, efetivamente bate com a de um dragão na transformação intermediária. Consegui a informação da Biblioteca de Liaval. - revelou Ewelein. - Precisamos tirar a prova, Lance.
O dragão assentiu imediatamente, sério.
- Ou pode ser um jogo mental, visto que a criatura parece sentir um claro prazer em torturar. - comentou Feng Zifu.
- Precisamos considerar as duas opções. - decidiu Huang Hua. - Não podemos nos dar ao luxo de dispensar hipóteses no momento - ela olhou para Huang Chu.
- Dessa vez encontramos traços da criatura presos nos raios de luar. Não sabemos o que é, nem porque ficou preso nos raios de luar, mas identificamos semelhanças com o veneno que ataca os mascotes e que encontramos em algumas regiões em desequilíbrio. Os testes preliminares mostraram uma concentração alta de corrupção mágica.
- Seria possível pensarmos em uma vacina? Ou um tratamento precoce que reduza a sensibilidade da Elise? – questionou a Huang Hua.
- É difícil, pois não sabemos como esse elemento age no organismo. Mas tendo acesso às amostras, posso trabalhar nas possibilidades.
- Certo. Ewelein? - Huag hua encarou a elfa de longos cabelos azuis.
- Maya e Nevra estão ambos com a saúde impecável, como se nada tivesse acontecido com eles e sem nenhuma alteração no maana. Nem mesmo cicatrizes nos ossos foram encontradas. Na realidade, eles estão mais saudáveis do que antes, pois pequenas alterações nutricionais da Maya e carências de sangue do Nevra, bem como marcas de acidentes anteriores foram completamente sanadas. Pelo que vi, o Nevra não deve precisar de sangue por meses. E talvez volte a enxergar.
Ouvi surpreso a informação. Era verdade que estava sentindo na minha melhor forma. Apesar do trauma do que havia passado, fisicamente, eu me sentia melhor do que nunca. Mas voltar a enxergar? Notei que minha mão estava em meu rosto, sobre meu olho ferido. Era possível?
- Seu olho está completamente curado, Nevra. - A elfa enfatizou cada palavra, provavelmente notando minha descrança. - Vamos acompanhar para saber se haverá recuperação da visão. Elise sofreu algumas alterações físicas também. A criatura parece drenar as energias físicas dela, e confirmei que, após o ataque, o corpo dela se debilitou sensivelmente em micronutrientes. Precisei garantir nutrição diretamente por via intravenosa pois ela apresentou uma desnutrição muito severa. Ela também ficou desidratada. E as asas, parecem ser permanentes, embora invisíveis.
Todos olhamos curiosos para Ewelein.
- Toda a estrutura física apareceu como se sempre tivesse estado ali. Ossos, músculos, tendões. Ela apenas não é visível nem material externamente. Mas internamente, ela está totalmente visível. Também confirmei, devido aos equipamentos de monitoramento no quarto, que é o próprio corpo da Elise quem produz maana. O corpo inteiro dela se transforma em uma fonte de maana ao usar magia. Ela não absorve do ambiente, a criatura não traz para ela. É dela. É da Elise.
- Você está dizendo, que a Elise é uma fonte de maana ambulante? – perguntou o Chrome.
- Apenas quando ela usa magia. Todo o sistema que identificamos anteriormente se preenche de maana e distribui rapidamente por todo o organismo dela. Um processo que leva segundos. Nesses momentos, ela emana mais maana que o Cristal emanava quando estava íntegro.
Um silêncio pairou sobre o Salão. Não era uma informação qualquer. Nenhuma raça faerie jamais foi uma fonte de maana, ou alterava a maana do corpo conforme precisava, naturalmente. Todos nós tínhamos quantidades específicas de maana, específicas de cada raça. Ao ponto que a inserção ou extração de maana era um método de tortura e envenenamento, pois além de ser extremamente doloroso, ainda leva o infectado à loucura. Aquilo era... inédito.
- Me chamou atenção a criatura chamar Elise de Filha da Lua. – comentou Lance.
- Todas as raças noturnas são chamadas assim Lance. Ela deve ser de uma raça noturna. – comentou o Chrome.
- Não concordo. – comentei. – Ela não falou como se ela fosse apenas uma filha da noite comum. Ela teve medo do ataque da Elise. Mesmo usando ela, quando Elise a atacou, ela teve medo. E quando ela não conseguiu, a criatura tentou provocar a Elise justamente chamando ela de Filha da Lua. Pode ter algum significado.
- Talvez – disse Huang Hua – no momento precisamos nos ater aos fatos que temos em mãos.
Continuamos conversando por um longo tempo. Ao final, Huang Hua pediu que eu e Lance ficássemos para conversar.
Huang Hua estava calada. Ela olhou o Feng Zifu pensativa. E fez um sinal positivo.
- Pode haver um significado para o Termo Filha Lua. Uma Lenda Antiga para ser exato.
Olhamos Feng Zifu atentos.
- Somente a conheço por ter lido pergaminhos antigos na Biblioteca Feng Huang quando novo. E esse estava rasgado em muitas partes. O que estava legível e íntegro, falava de um povo antigo, composto de mulheres apenas, as Filhas da Lua. Elas eram incapazes de conceber homens, assim como suas filhas e as filhas de suas filhas.
Ele pausou, refletindo nas palavras.
- Suas habilidades refletiam as dos parceiros, como a Lua reflete o Sol. Se o parceiro fosse forte, a Filha da Lua era forte como uma Lua Cheia. Se ele fosse fraco, ela era fraca como uma Lua Nova. Quanto mais perto de seus parceiros, mais forte elas ficavam. Quanto mais longe, mais fracas. Se estavam em paz com eles, amando e sendo amadas, eram fortes. Se não eram amadas, eram vulneráveis. No pouco do pergaminho que era legível, foi possível ver que as Filhas da Lua eram conhecidas pelas outras raças por sua força mágica. Mas elas pareciam carregar um desprezo pelo mundo, não se importando com o que acontecia fora de suas terras e servindo apenas a Lua. Além de terem uma clara preferência por parceiros de raças fortes como dragões, aengels, feng huangs e vampiros. A raça desapareceu há mais de quinze milênios sem deixar vestígios. A humanidade ainda estava no início da sua caminhada para a civilização.
Refleti rápido que a raça tinha sido extinta há tempo demais para Elise ser uma. Então Feng Zifu continuou.
- O pergaminho relatava que, as Filhas da Lua, enquanto existiam, eram muito cobiçadas, pela beleza e completa fidelidade aos parceiros. E eram parte do grupo de raças que, assim como lobisomens e vampiros, podiam ser marcadas. Uma vez marcadas, elas viviam e morriam ao lado daquele que as marcavam, e eram completamente incapazes de amar os outros. Para protegê-las de mal-intencionados, que poderiam tentar marcá-las e escravizá-las, a Lua as protegia com um mecanismo simples e eficiente de defesa. – Feng Zifu olhou para mim e o Lance – Com uma marca prateada no pescoço, no formato exato da mordida dos seus parceiros, e que somente eles eram capazes de ver sob a luz da Lua. Era o sinal da benção dela para eles, de que poderiam se aproximar da Filha Dela, conquistá-las, e somente eles seriam capazes de marcá-las como deles. Qualquer outro que tentasse, tinha seus dentes e ossos da mandíbula destruídos por um sistema de defesa mágico nunca desvendado, acabando, na maioria das vezes, morto.
Fiquei completamente tenso. Marcar uma mulher era uma prática arcaica e bárbara, que havia caído em desuso há séculos, logo que chegamos em Eldarya o Conselho decidiu proibir a prática com pena de morte. A marca em parceiros vinculava a vida de um à do outro. Os sofrimentos de um eram sentidos pelo outro, pois a marca torna dois como um. Nunca ouvi falar de alguém ser marcado por dois seres diferentes. E mais importante, nenhum homem ou mulher civilizados e de bom senso faria uma barbaridade dessas. Eu nunca faria isso, e desconfio que o Lance tampouco.
- Vocês dois não precisam ficar tensos. Ninguém está pedindo ou sequer sugerindo a vocês que realizem esse costume bárbaro. Mas não podemos ignorar a coincidência. Elise está mais forte a cada dia, e ela está próxima de ambos. O que vou dizer a partir de agora, está inteiramente no campo da teoria, mas baseado no que temos até agora. Os poderes dela se fortaleceram quando você quebrou o Cristal, Lance, há sete anos atrás. Na ocasião, a barreira entre a Terra e Eldarya se enfraqueceu, e ela pode ter sentido ambos pela primeira vez. Os poderes dela se fortaleceram novamente com a saída da Erika e Leiftan do Cristal, quando a Terra começou a puxar Eldarya de volta. Talvez, não seja ao Cristal que ela responde, mas a vocês dois. Agora ela está fisicamente próxima de vocês, e os poderes dela estão cada vez mais fortes, pois ambos são excelentes guerreiros.
Me mexi desconfortável na cadeira. Não estava gostando nada dessa história.
- Poderiam ter muitos outros motivos Huang Hua. – comentei. – Sua teoria faz sentido dentro da lenda que o Feng Zifu nos contou, mas poderia ser muitas outras coisas. E não explica a criatura.
- Não. Mas essa lenda pode ser facilmente testada Nevra.
- Como?
- Depois do Baile da Koori, você sairá em missão. E nós vamos analisar a Elise. Será nossa chance de testar a teoria. Se a lenda estiver certa, a magia dela enfraquecerá ao ficar distante de você.
- Mas como vocês testarão isso? Esperando um ataque da criatura?
- Não. Testando as habilidades mágicas dela. Huang Chu percebeu que Elise faz magia sem ingredientes, apenas recitando os versos. Testaremos ela antes, durante e depois do seu afastamento. Se a lenda for verdadeira, haverá alteração significativa nela em cada momento. Se não for, você apenas cumprirá uma missão.
- Sem ingredientes? Apenas recitando?
- Sim. E desconfio que possa não precisar sequer de palavras. - Huang Hua respondeu.
- Entendo. Poderá nos trazer luz.
- E eu? – perguntou o Lance.
- Você não deve alterar sua rotina com ela. Para não influenciar nos testes. Treine ela normalmente, mas não faça mais do que isso.
- Certo.
Finalmente tínhamos um plano de ação para agir. E eu esperava realmente que não fosse aquela a explicação para as marcas no pescoço da Elise. Embora não tivéssemos nada além daquela migalha para seguir.
.。.:*☽*40 - Nada Pode Mudar o Passado II*☾*:.。.
Elise
Acordei devagar na enfermaria da Guarda. Quando finalmente descobri minha consciência, mantive meus olhos fechados e tentei silenciar minha mente. Onde estava meu sonho de ser uma pedra? Eu seria uma excelente pedra. Poderia ser moldada. Rolar por um rio. Compor uma calçada. Pedras podiam ser úteis. Ou não. Nada importava para uma pedra. Elas podiam virar poeira e não importava. Estava afundando em meu estado de autocomiseração quando ouvi uma voz me importunar.
- Você pode continuar de olhos fechados ou pode se levantar e tomar café da manhã. Karuto preparou algo especial para você. – ouvi Huang Chu falar num tom divertido.
Abri um olho com o objetivo de espiar a bandeja do café da manhã. Merda. Era do outro lado. Tomei consciência do cheiro e meu estômago também. Estômago traidor. Maldita Huang Chu! Abri o outro olho e vi uma bandeja linda ser exibida para os meus olhos. Pareciam ovos mexidos, bacon frito, bolinho, frutas com iogurte, panquecas. Eu estava num hotel? Pedras não comiam, e eu podia comer antes de tentar ser uma pedra.
Me sentei emburrada e olhei a comida curiosa. Eu estava mal-humorada. Mas a visão da comida, seu cheiro e a antecipação da comida, definitivamente estavam ajudando a melhorar meu bom humor. Eu nem sabia por onde começar. Ela me estendeu um copo de suco. Laranja com fruta da noite. Tomei um grande gole. Eu estava com sede. Muita sede.
- Bem que o Lance comentou que você comia com uma alegria invejável. Olha aí. Miserável em um instante. Alegre e feliz com um gole de suco depois.
Olhei ela com meu melhor ar superior. E enfiei meio bolinho na boca. Maçã bem vermelha com chocolate. O Karuto tinha se superado. Eu estava faminta!
- Esse bolinho era inocente coitado. E eu juro que a outra metade está morta e não vai fugir dessa bandeja.
- Eu não... vou... te... oferecer. - Falei de boca cheia.
- Você está com medo disso? Não se preocupe, coma com calma. Eu já comi meus bolinhos.
Continuei comendo gulosa. Estava tudo delicioso e eu, faminta demais para negar uma boa comida do Grand Chef Karuto! Depois que terminei, estava com um humor melhor. Encostei na cabeceira da cama, acariciei meu estômago inchado de comida satisfeita e então me voltei para Huang Chu desconfiada.
- Relaxa. Nós só queríamos que você visse um rosto amigo quando acordasse. Eu dei sorte de estar aqui.
Olhei para cima e respirei fundo.
- Huang Chu...
- Não pensa tanto, Elise.
- Eu só não sei o que aconteceu. É horrível não entender nada do que aconteceu.
- Talvez a gente saiba um pouco mais... Um pouco Elise. Mas também estamos no escuro sobre muito do que aconteceu ali. Mas nós estamos no escuro juntos.
E ela segurou minha mão. Me senti acolhida por ela. Mesmo depois de tudo, ali estava ela, do meu lado.
- Ora, ora! Bom dia, Cinderela! Depois de uma boa noite de sono, tudo pode melhorar.
- E bolinhos. – eu brinquei, disfarçando as lágrimas nos olhos. Eu estava de TPM para estar emocionada com uma mão na minha?
- Não qualquer bolinho. Maçãs bem vermelhas com chocolate. Somente os preferidos do Karuto recebem essa iguaria. Ele deve gostar muito de você!
Eu ri divertida, lembrando das receitas que eu assistia obcecadamente no Instagram e Youtube sem nunca conseguir replicar. Eu lembrava das mais simples e tinha passado para o Karuto.
- Como você está se sentindo hoje, Elise? - Ewellein chegou na enfermaria e se aproximou lentamente, com um meio sorriso que me pareceu preocupado.
Senti a mão de Huang Chu apertar a minha, como se dissesse que estava ali, comigo. E isso me deixou mais forte. Me lembrei de tudo que havia acontecido, de como aquela coisa se aproveitou de mim. Ao mesmo tempo, me lembrei que aquela voz havia deixado um conhecimento precioso comigo. Aquele ser se aproveitava das minhas fraquezas e inseguranças. Se eu me fechasse, como sempre fiz ao longo da minha vida inteira, ele sempre teria acesso livre. Eu não sabia ser diferente, mas ser como eu era, mataria as pessoas ao meu redor, pessoas que me acolheram como eu verdadeiramente era, com minhas fraquezas quase letais para eles. Eles mereciam meu esforço. Olhei para a Ewelein. Eu merecia esse esforço.
- Triste. Eu... queria ser uma pedra? - Respondi insegura.
- Uma pedra?
- É.
- Por quê?
- Porque as pedras não sentem nada. Não fazem nada. Não se importam com nada. Eu... queria ser assim.
- Você acha que seria feliz assim?
- Não. Mas eu também não seria triste, nem culpada, nem nada. – Me encolhi na cama, abraçando meu corpo.
- Mas nunca seria feliz. Nem comeria bolinhos.
Olhei as migalhas da bandeja vazia.
- Eu sentiria falta dos bolinhos.
- Só dos bolinhos?
- E de vocês. Alguns de vocês.
Ela sorriu gentil.
- Infelizmente não dá para escolher só uma coisa da vida, Elise. Não dá para ter bolinhos apenas. É preciso sentir para poder apreciar esses bolinhos. Sem sentir você não vai comer bolinhos e sentir o prazer que eles te dão, nem a felicidade de saber que o Karuto os fez com a esperança de você acordar e comê-los, e que isso te deixasse feliz.
- Ele fez?
- Fez. Você não quer mais sentir isso?
- Não... quer dizer, eu quero. Mas... é tão confuso.
- O que é confuso, Elise?
- Minhas habilidades... Elas são tão erradas!
- Por que elas seriam erradas?
- Por quê? Meus pais me disseram! Eu sempre soube! É errado! Eu vejo como o Mateus fica desconfortável perto de mim. Ele tá me evitando pois ele sabe que não consigo evitar saber o que ele sente. Eu evito ele pelo mesmo motivo! Você ficaria confortável se eu invadisse suas emoções? Óbvio que não! É errado! Eu sou errada! – e comecei a chorar, compulsivamente, abraçada às minhas pernas, com a Huang Chu segurando firme minha mão.
- Elise, Elise. Seus pais, eles fizeram o melhor que podiam com o que sabiam. Na Terra, se alguém descobrisse seus poderes, quais as chances de as coisas darem muito errado para você? De acontecer uma caça às bruxas? De te perseguirem? De fazerem experiências em você? Você era uma criança, e eles não sabiam como te proteger melhor. Eles fizeram o melhor que podiam para proteger a filhinha deles. Mas você não precisa carregar esse fardo o resto da vida. Você não está mais na Terra. Aqui, ninguém é humano. Todos nós temos nossas habilidades especiais. Somos todos diferentes. O seu poder, para nós, não é um defeito, não é errado. É um dom. Uma habilidade. Algo natural. Que a natureza te deu. Você nasceu assim!
Conforme ela falava, meu choro foi se acalmando em meu peito. Eu nunca havia visto daquela forma. Não havia entendido assim. Simplesmente entendia que era errada. Nascida quebrada. Nunca havia pensado na possibilidade de que meus pais apenas tentaram me proteger.
- Olha para mim. Eu tenho um dom natural para magia de cura. Tenho cabelos azuis e orelhas pontiagudas. Magia Elise, como você. Tudo que eu precisei, foi de treino, esforço, estudo, dedicação, e eu sei que tudo isso, você tem. Veja os membros da Guarda, o Lance é um Dragão, ele se transforma e voa. Cospe fogo. Ele nasceu assim. Chrome é um lobisomem. Se vivesse na Terra, a lua comandaria suas transformações. Aqui em Eldarya, ele é livre. Karen e Nevra são vampiros. Na Terra teriam que fugir do sol. Eles precisam de sangue. Muitos veriam eles como monstros por precisarem de um pouco de sangue esporadicamente para sobreviver. Mas ambos são membros importantes para nós. Nós somos a Guarda de Eel. O diferente, aqui, é acolhido.
Eu ri da forma como ela falou isso. Realmente, vendo assim. Eu era apenas mais uma ali.
- Na Guarda de Eel, poucos podem dizer que tem um passado feliz Elise. Menos ainda são os que podem se orgulhar de ter um passado ilibado, perfeito e sem manchas. Todos nós temos nossa história. Mas aqui, nós temos nossa chance de ser melhores, de dar uma nova direção para nossas vidas. De fazer novas escolhas. Você pode ser uma pedra se quiser. Abandonar tudo que te faz feliz e te dá prazer apenas para se poupar do sofrimento. Ou você pode abraçar a vida, sentir tudo que ela te dá, de bom e de ruim. Aproveitar os momentos bons, enfrentar os ruins, batalhar por dias melhores. A escolha é sua. E nós estamos aqui para te apoiar, lembre-se disso.
- Obrigada.
- Mas posso te fazer um pedido? – Huang Chu pigarreou e fez a pergunta.
- Hã... Claro!
- Recomendo fortemente que você viva. A alquimia de se transformar em uma pedra não foi desenvolvida, e seria algo experimental...
Eu não acreditei que ela estava mesmo falando aquilo! Lentamente comecei a gargalhar com a piada da Huang Chu. Chorei e ri ao mesmo tempo. Eu precisaria pensar no que a Ewelein falou, mas eu me sentia mais forte ali, para ser diferente. Conversamos ainda mais um tempo. E de nossa conversa, mesmo sabendo que eu não podia mudar o passado, eu sentia que podia ter um presente diferente do que eu havia planejado. Eu podia me permitir um presente melhor.
Alguns dias se passaram e eu ainda ame lembrava da felicidade que senti quando soube que Maya e Nevra estão realmente bem de saúde. Eu gostaria de não me lembrar do que eu...
- Não! – digo em voz alta.
Não fui eu que fiz aquilo. Posso me lembrar como se fosse, mas não fui eu. Aquelas lembranças não me excitam, me causam mal-estar. Então eu sei que não fui eu. Resolvo tomar um banho para tentar tirar da minha cabeça aquilo. No banho eu aproveito para mentalizar que eu me lavo daquelas memórias. Esfregando bem meu corpo. Deixo a água correr lavando meu corpo e as memórias. Vou levar um tempo para superar isso.
Eu sei que vou enfrentar ainda mais olhares. O meu agora antigo quarto teve a parede destruída pelo Lance. Huang Hua informou que houve um ataque e que eu fui envenenada, como a Erika, o que me fez atacar a Maya e o Nevra. Ela é bem honesta com todos, mas oculta que eu quase os matei. Isso ficou entre os que participaram da batalha. Evito a vampira de cabelo rosa, A Karen, que agora eu sei ser a irmã do Nevra, pois ela me olha como se estivesse sempre pronta para me matar, e eu só cruzei com ela duas vezes antes. Ela definitivamente me assusta.
Me preparo para mais um dia. Eu tenho pessoas que gostam de mim aqui. Karuto, Huang Chu, Ewelein. Pelo menos eu acho. Afasto as dúvidas da minha cabeça e pego meu livro e meu caderno de anotações. Ao menos agora tenho o que ler e ocupar minha cabeça. Tenho um cronograma de treinos com a Huang Chu. Passo me agarrando à felicidade pelo refeitório, como meu café da manhã conversando com o Karuto sobre o caderninho de receitas que dei para ele, e sigo para o Laboratório de Alquimia.
- Bom dia Huang Chu! – digo alegre.
- Bom dia! Pronta para começar?
- Sim! Trouxe algumas anotações e dúvidas. – coloco meu livro e o caderno cheio de dúvidas ao lado.
Ela olha meu caderno e sorri genuinamente feliz.
- Quem dera todos os aprendizes fossem dedicados assim. Você já leu tudo isso?
- Sim. Mas tive muitas dúvidas, especialmente sem internet para pesquisar. E eu confesso que evitei a biblioteca ontem, então me desculpe se as dúvidas forem muito básicas. – Disse com um pouco envergonha.
- Não se sinta mal. Muita coisa tem acontecido com você. E eu sei bem como é usar os estudos como um ponto de referência para estabilidade e calmaria. E nenhuma pergunta será básica, lembre-se: você veio da Terra e nunca teve contato com magia, alquimia e nada do nosso mundo. Tudo aqui é novo para você. Pergunte tudo.
- Combinado! – respondi aliviada.
Comecei fazendo todas as perguntas que tinha anotado. Gastamos um bom tempo com Huang Chu me respondendo e me ajudando a conectar aqueles conhecimentos, até que tudo fizesse sentido na minha mente e eu me sentisse pronta para começar.
- Pronta?
- Sim.
- Então vamos tentar fazer o mesmo arco-íris. Mas dessa vez, tente não fazer isso irritada.
Sorri sem graça lembrando da ocasião e e meu olhar buscou imediatamente o canto onde eu havia visto a sombra pela primeira vez. Um arrepio passou pela minha pele. Balancei levemente a cabeça e foquei na minha tarefa. Se eu havia entendido bem, tanto magia quanto alquimia, envolviam sentimentos e pensamentos. O ideal era idealizar e sentir o que você fazia, sincronizando todo seu corpo e alma com o que estava fazendo. Eu ainda me sentia meio boba fazendo aquilo, mas eu já tinha me visto fazer, então sabia que conseguia.
Puxei da memória uma lembrança de arco-íris e me lembrei de uma com meus pais. Um passeio no parque. Tentei me lembrar do cheiro de terra molhada pós-chuva, do calorzinho do sol na minha pele, da aparência do parque, e das cores do arco-íris no céu. Surpresa, senti quando algo começou a fluir de mim, e o arco íris começou a se formar no Laboratório, bonito, mas não tão forte dessa vez. Sorri feliz para a Huang Chu.
- Muito bem! Agora tente movimentar ele de lugar.
Fazer aquilo foi mais fácil, pois era apenas movimentar minhas mãos e ele seguia a direção que eu fazia.
- Agora encerre ele.
Olhei ele e mentalizei ele desaparecendo, no que ele respondeu imediatamente.
- Yes! Consegui!
- Sim. Você foi muito bem. Agora vamos praticar mais algumas vezes.
Praticamos mais algumas vezes. Huang Chu me pedia para mudar o tamanho, a forma e até a densidade do arco-íris. O mais difícil foi conseguir tornar o arco-íris denso e consistente, mas consegui deixá-lo como um doce, comestível. Ela anotava as experiências e observava um aparelho que nos monitorava.
- Excelente desempenho, Elise. Continue estudando e se dedicando. E foque nas emoções positivas de hoje. Sua magia foi muito mais estável assim.
Concordei com a cabeça.
- Eu também me senti melhor assim. Além de ter me lembrado de bons momentos.
- Isso é bom. Agora, que tal almoçarmos? Já está na hora, não?
- Sim! – abri meu mais bonito sorriso, pensando ansiosa nas delícias do almoço.
Almoçamos juntas e conversamos bastante sobre a Guarda. Ela me contou sobre os desafios que ela tinha com o Mateus e como ele odiava estar na Absinto, e a dificuldade dele em aprender o básico da Alquimia, além da total inabilidade para magia básica. Fora as personalidade incompatíveis de ambos. Ela parecia sentir uma irritação profunda pelo Mateus. Depois do almoço ela voltou para o Laboratório e eu fui descansar no quarto, e me preparar para meu treino com o Lance à tarde.
Decidi tirar uma soneca, satisfeita com meu avanço na magia. Acabei acordando com algumas batidas na porta. Levantei de supetão assustada com a hora. Merda! Lance! Abri a porta e dei de cara com uma expressão preocupada. Ele olhou meu rosto inchado, a expressão culpada, e a cama bagunçada.
- Desculpa, eu tirei uma soneca depois do almoço e perdi hora...
- Você está atrasada meia hora. Eu fiquei preocupado. - Ele me encarou sério e analisou rapidamente meu quarto.
- Desculpa.
- Se arruma para o treino. Eu espero. - Ele fez um gesto casual e encostou na parede do lado do carredor.
- Claro! – endireitei meu corpo, e corri para pegar minhas coisas. Ouvi a porta ser fechada e troquei de roupa correndo. – Pronto.
Ele me encaminhou para aa área de treinamento, começamos a treinar e ele conversava com tranquilidade comigo. Tentei copiar o melhor possível os movimentos dele. Eu sabia como fazer, mas meu corpo não respondia bem. Mas continuei tentando, não queria incomodar ele. Em determinado momento ele começou a me segurar para eu fazer o movimento corretamente, como se fosse um fisioterapeuta. Aquilo me ajudou muito, pois me deu estabilidade. Eu sentia meus músculos tremendo e já estava suada. Ele não estava para brincadeira. Saímos para a caminhada, e demos uma volta completa no QG. Depois saímos e demos a volta na área externa do QG. Eu estava exausta quando terminamos.Recovery, por James Arthur
Recovery
James Arthur
Eu não quero mais jogar este jogo
Eu não quero jogá-lo
Eu não quero mais ficar por aqui
Eu não quero ficar aqui
Como a chuva em uma manhã de segunda-feira
Como a dor que só continua acontecendo
Olhe para todo o ódio que eles continuam mostrando
Eu não quero ver isso
Olhe para todas as pedras que eles continuam jogando
Eu não quero sentir isso
Como o sol que vai continuar a queimar
E eu costumava ser tão perspicaz oh
Na minha recuperação
Sou um soldado em guerra
Eu quebrei as paredes
Eu defini, eu projetei
Minha recuperação
No sal do mar
Nos oceanos de mim
Eu defini, eu projetei
Minha recuperação
Continue subindo, continue compondo
Continue subindo, continue compondo
Minha recuperação, recuperação
Recuperação, recuperação
Minha recuperação
Continue subindo, continue compondo
Continue subindo, continue compondo
Recuperação, recuperação
Recuperação, recuperação
E eu consigo ouvir que o coro continua cantando
Me conte o que eles estão dizendo
Posso ouvir o telefone, ele continua tocando
Não quero atender
Sei que costumava escutar
E eu sei que eu me tornei arrogante
Na minha recuperação
Sou um soldado em guerra
Eu quebrei as paredes
Eu defini, eu projetei
Minha recuperação
No sal do mar
Nos oceanos de mim
Eu defini, eu projetei
Minha recuperação
Continue subindo, continue compondo
Continue subindo, continue compondo
Minha recuperação, recuperação
Recuperação, recuperação
Minha recuperação
Continue subindo, continue compondo
Continue subindo, continue compondo
Recuperação, recuperação
Recuperação, recuperação
Recuperação, recuperação
Recuperação, recuperação
Recuperação, recuperação
Recuperação, recuperação
Na minha recuperação
Sou um soldado em guerra
Eu quebrei as paredes
Eu defini, eu projetei
Minha recuperação
No sal do mar
Nos oceanos de mim
Eu defini, eu projetei
Minha recuperação
Continue subindo, continue compondo
Continue subindo, continue compondo
Minha recuperação, recuperação
Recuperação, recuperação
Minha recuperação
Minha recuperação
Minha recuperação
Continue subindo, continue compondo
Continue subindo, continue compondo
Minha recuperação, recuperação
Recuperação, recuperação
Continue subindo, continue compondo
.。.:*☽*41 - Nada Pode Mudar o Passado III*☾*:.。.
Mia
PDV Mia.
Acordei me sentindo leve. Lembrei do que aconteceu e me sentei rapidamente na cama. Claude estava ao meu lado, deitado, dormindo. Toquei minhas costas, procurando, mas não haviam mais asas. Tinha sido um sonho? Olhei ao meu redor, em busca de algum sinal de que foi real e encontrei uma camada fina de pó, levemente brilhante cobrindo tudo. Fiz uma careta. Parecia que meu quarto tinha sofrido um despejo de iluminador. Toquei o pó fino com as mãos e vi que ele grudava com gosto. Não tinha cheiro nem cor, era como uma purpurina extra fina. Uma prova de que não tinha sido um sonho.
- O que eu faço? - Perguntei para mim mesma, ainda sem compreender o que estava acontecendo.
- Com o quê? - A voz sonolenta de Claude se fez ouvir no quarto.
Abraço Claude com força. Ele é meu porto seguro, sempre foi. Conto a ele toda a história de Eldarya. A relação de Lance com Valkyon. Claude me abraça firme, mesmo recém desperto.
- Eu não sei o que fazer. - Choraminguei.
- Então não faça nada. Eles perdoaram o Lance pelo visto. O que era o desejo do Valkyon se eu entendi bem. E se me lembro do que você já me contou das suas lembranças, Valkyon amava esse irmão o suficiente para ter desistido da luta antes dela começar.
Assenti com a cabeça.
- Isso não significa que nós temos que confiar nele. Mas ele também merece um voto de confiança por ter nos salvado. Ele pode realmente ter se regenerado.
Suspirei profundamente. É verdade. Eu tinha me esquecido disso. Eu havia sido golpeada na cabeça e estava tonta, mas antes de desmaiar, eu vi um dragão nos céus. O mesmo que nos salvou. E ontem a noite, vi o mesmo dragão no corredor. Mordi os lábios. Aquilo era confuso.
- Como se perdoa um assassino, Claude?
Senti o corpo do meu amigo se enrijecer. Tonta! Como pude não me tocar? Ele era um ex-militar que já havia ido para a guerra! Encarei ele culpada.
- Me desculpe, eu não pensei...
- Tudo bem. Você está sobrecarregada com informações. Eu não estou defendendo o Lance, mas a história de Eldarya, parece a história de zonas de conflito. Eu não conheço a história pessoal dele e do irmão, e sei que nada justifica esse tipo de situação. Mas ao menos podemos tentar entender o que levou a esse tipo de atitude, até para tentar prevenir no futuro. - Claude fez uma pausa, refletindo. - Some a isso que ele entrou nessa Guarda de Eel novo demais. Você viu que têm menores de idade aqui? - Assenti. - Essas coisas mexem com nossa cabeça. Alistado novo demais, hormônios a mil, descobrir que seus antepassados se sacrificaram coletivamente para criar um mundo novo, de paz, e que os seres pelos quais seus antepassados fizeram isso matam, caçam, exterminam, fazem exatamente aquilo do qual diziam fugir. Isso pode dar um nó na cabeça de um moleque sem estrutura emocional, que não conta com suporte. Afinal, mesmo sendo gêmeos ele era o mais velho, o suporte do irmão mais novo. E você sabe o quanto de merda podemos fazer acreditando piamente que estamos fazendo a coisa certa. - Claude suspirou, certamente lembrando de seu passado. - E pensa pelo lado dele, ele perdeu tudo e todos. Isso é pesado, Mia. Imagina ser o último da sua espécie?
Abaixei a cabeça concordando. A humanidade está cheia de histórias assim. Se os que viveram na pele a guerra o perdoaram, quem sou eu para julgá-lo com tanta severidade?
- Leva seu tempo, mas não seja severa com os outros, ok? Todos nós precisamos de um pouco de paciência com nossos erros.
- Pode deixar.
Eu não tinha, definitivamente, pensado em nada do que o Claude me indicou. Me senti meio culpada por não ter feito o que sempre defendi que deveria ser feito, analisar todos os lados de uma história. Os crimes do Lance eram crimes pesados e severos, mas ele continuava tendo direito à sua "humanidade" e à defesa.
- Agora, a senhorita pode me explicar o que é esse pó brilhante no seu quarto?
Encarei o quarto com um olhar culpado e, sem saber o motivo, menti.
- Purpurina?
Claude me encarou sério.
- Mas como que você...? Esquece, não quero saber. Isso vai ser um inferno de limpar. Não me peça ajuda.
Fiz carinha de cachorrinho pidão, mas ele não se apiedou da minha situação e eu não insisti.
- Na realidade, eu tenho outra coisa para falar contigo.
Me virei para ele curiosa, esperando a novidade e quando ouvi, fiquei chocada.
- Você fez o que, Claude?
- Eu sabia que você ia ficar irritada.
- Como você queria que eu ficasse?
- Animada!
- Eu não quero cantar para estranhos!
- Você faz isso no coral da Universidade. Qual a diferença?
- Lá não tem tantas pessoas? Não é como se o Coral fosse badalado. - Na realidade as apresentações eram sempre para uns gatos pingados.
- Qual é? Eu sei que você adora cantar. - Fiz uma careta e gemi alto. - Você é uma velha rabugenta. Como eu aguento sua cara de ranzinza?
- Você me ama e eu te amo. Mas você é um pé no saco.
- Qual é? Umas musiquinhas, o povo aqui não vai conhecer nada do que a gente cantar mesmo.
- E isso é bom?
- Seremos astros da música, baby!
- Eles têm algum lugar para dançar aqui?
- Eu sabia! A centelha da juventude ainda anima o coração ressecado dessa idosa de mil anos.
- Idiota. Responde logo.
- Sim. Parece que de vez em quando rola uma festinha com música e dança.
- Sério? O que eles tocam? Enya?
- Você tem tão pouca fé neles assim?
- Eles não têm energia elétrica. O máximo que eles devem ter é música clássica ou músicas medievais. - Não resisti e cantarolei a abertura de Game of Thrones.
- Tenha fé. Impossível não ter algo de bom. Eles tem magia e não são completamente leigos quanto ao que acontece na Terra...
- Eles desconhecem celulares, carros, eletricidade... preciso continuar?
- Eles tem magia.
- Magia não resolve tudo...
- Fé pequeno gafanhoto, você precisa ter fé. Além disso, é tudo liberado. O chef Karuto prepara os comes e bebes, e a galera se reúne no Jardim de Música para cantar e dançar.
- Não falei? – levantei os braços dramática - Vai ser um lance hippie paz e amor.
- Dá um voto de confiança. Eles devem ter uma baladinha top aqui. - Ele me encarou curioso. - Eu nunca entendi. Você odeia multidões, mas ama raves e música eletrônica.
Como explicar ao Claude que a sobreposição de tantas pessoas, mas tantas, tantas, todas juntas e com música alta, mais o jogo de luzes gera uma sobrecarga tão grande de informações no meu corpo que eu me sinto meio... drogada?
- Meu amigo, a gente nunca mais vai ver uma festa decente na vida, escuta a voz da sabedoria. - Resolvi não responder.
- A voz da desesperança você quer dizer.
- Pode ser.
- Que dia é a festa?
- Nesse final de semana e, nossos lindos e deliciosos corpos estarão lá. Eu espero cantar contigo umas músicas da Terra.
- Se a festa for boa, a gente canta. Se for uma bosta, a gente finge que enlouqueceu.
- Combinado.
- Agora vai ser torturado pelo Solomon.
- Eu não acho que ele seja tão cruel, Mia.
- Só porque você aprecia o traseiro dele, ou melhor, aquele rabão gigante de lagartixa.
- Isso é ofensivo.
- Primeiro, ele é um lagarto. Segundo, ele tem um rabão, é um fato. - Levantei os dedos conforme enumerava. E me ajoelhei na cama rebolando a bunda para lá e para cá. - Impossível ser ofensiva falando a pura verdade. - Claude balançou a cabeça rindo.
- Ok. Mas ele é um lagarto gato e hot.
- Chamar um lagarto de gato não é ofensivo? Afinal...
- Não pira, doida.
- Ele é um lagarto verde, Claude. Lagartos são répteis, frios. Eu não animaria muito.
- Excelente no verão, geladinho.
- E no inverno? – perguntei não tão inocentemente, sorrindo maldosa e passando um balm labial.
- Você é impossível. - Claude revirou os olhos.
Nossas provocações eram sempre nossa marca. Logo Claude me abandonou com a limpeza infernal do meu quarto que custou todo meu tempo livre e um certo atraso na minha leitura. Só então consegui tomar banho e pegar minha comida para viagem. E eu tinha que admitir, os itens de cuidados pessoais daqui eram incríveis. Meu cabelo estava uma seda, meus cachos nunca foram tão controlados e macios, bem definidos. Minha pele estava saudável, brilhante. Eu realmente estava uma belezinha de ver.[Wild Child, por Enya
Nunca feche seus olhos
Ever close your eyes
Nunca pare e ouça
Ever stop and listen
Já se sentiu vivo
Ever feel alive
E você não tem nada faltando
And you've nothing missing
Você não precisa de um motivo
You don't need a reason
Deixe o dia continuar e continuar
Let the day go on and on
Deixe a chuva cair
Let the rain fall down
Em todos os lugares ao seu redor
Everywhere around you
Entregue-se agora
Give into it now
Deixe o dia te envolver
Let the day surround you
Você não precisa de um motivo
You don't need a reason
Deixe a chuva continuar e continuar
Let the rain go on and on
Que dia, que dia para levar para
What a day, what a day to take to
Que maneira, que maneira de passar por isso
What a way, what a way to make it through
Que dia, que dia para levar para uma criança selvagem
What a day, what a day to take to a wild child
Só tome o tempo
Only take the time
Do helter skelter
From the helter skelter
Todos os dias você encontra
Every day you find
Está tudo em ordem
Everything's in kilter
Você não precisa de um motivo
You don't need a reason
Deixe o dia continuar e continuar
Let the day go on and on
Todo sol de verão
Every summer sun
Todas as noites de inverno
Every winter evening
Toda primavera que vem
Every spring to come
Todo outono partindo
Every autumn leaving
Você não precisa de um motivo
You don't need a reason
Deixe tudo continuar e continuar
Let it all go on and on
Que dia, que dia para levar para
What a day, what a day to take to
Que maneira, que maneira de passar por isso
What a way, what a way to make it through
Que dia, que dia para levar para uma criança selvagem
What a day, what a day to take to a wild child
Que dia, que dia para levar para
What a day, what a day to take to
Que maneira, que maneira de passar por isso
What a way, what a way to make it through
Que dia, que dia para levar para uma criança selvagem
What a day, what a day to take to a wild child
Da-da-da-da, da-da-da-da
Da-da-da-da, da-da-da-da
Da-da-da-da, da-da-da-da
Da-da-da-da, da-da-da-da
Da-da-da-da-da, da-da-da-da-da-da
Da-da-da-da-da, da-da-da-da-da-da
Que dia, que dia para levar para
What a day, what a day to take to
Que maneira, que maneira de passar por isso
What a way, what a way to make it through
Que dia, que dia para levar para
What a day, what a day to take to
Da-da-da, da-da-da-da-da-da
Da-da-da, da-da-da-da-da-da
Que maneira, que maneira de passar por isso
What a way, what a way to make it through
Da-da-da, da-da-da-da-da-da
Da-da-da, da-da-da-da-da-da
Da-da-da, da-da-da-da-da-da
Da-da-da, da-da-da-da-da-da
Que maneira, que maneira de passar por isso
What a way, what a way to make it through
Que dia, que dia para levar para uma criança selvagem
What a day, what a day to take to a wild child
Que dia, que dia para levar para uma criança selvagem
What a day, what a day to take to a wild child
.。.:*☽*42 - Meditação e Treino *☾*:.。.
Mia[/b]
Encarei o vidro onde guardei o pó que me deu um trabalho infernal para limpar do meu quarto. Embora eu ainda ache, esporadicamente, pó brilhante espalhado aqui e ali. Não tenho pesadelos há dois dias e estou me sentindo mais leve e tranquila. Sobre as sombras, ainda não tenho ideia do que elas são, mas as vejo desde que saí do coma. A primeira vez quase tive um troço, mas quando percebi que ela não fazia nada, apenas ignorei. Peguei meu caderno e desenhei a última detalhadamente no meu caderno, como me lembrava e pesquisei na Biblioteca da Sombra e do QG mas, até agora, não achei nenhuma criatura similar. Vou falar com a Ewelein mais tarde, mas como falar com ela sem falar sobre meu coma? Eles vão me achar louca se eu contar que eu soube o que fazer por causa de algo que me lembrei que aprendi quando estava em coma? Eu estaria forçando? E se eu falar do meu coma, terei que falar com o Lance, de quem tenho fugido com sucesso há dois dias.
Sobre o Lance, refleti muito nesses dias, e ele parece ter me evitado pois nem me buscou para o treinamento diário. Compreendi que minha reação foi exagerada, como são todas as minhas reações em relação a ele. De longe, com calma, consigo ver que tenho agido de forma estranha a mim mesma quando estou na presença dele. Não faz sentido nenhum ter me sentido traída sendo que sequer nos conhecíamos no passado. E agora, eu preciso olhar e trabalhar com ele como a realidade se apresenta, um homem com história e que, por acaso, é irmão de alguém muito caro a mim. Me convenço que minhas reações se devem à relação dele com o Valkyon e me sinto muito mais tranquila, em paz para voltar a vê-lo.
Esses últimos dias me ajudaram a estabelecer uma rotina no QG. Eu e Claude conversamos com pessoas de todos os lugares sobre o QG e não descobrimos nada que desabone esse lugar. Não descobrimos lugares inacessíveis nem segredos obscuros. Com esse pensamento na cabeça cheguei a minha meditação diária com Leiftan. Eu sei que ele medita muito mais que eu. Mas eu sempre passo aqui para gastar um tempo com ele. É calmo e sinto que me deixa tranquila. Além disso minha conexão com o Aengel é gratuita e, acredito eu, de outras vidas.
- Leiftan. - Sorrio levemente para ele e ele responde com um sorriso amplo e caloroso. Mas hoje seus olhos não sorriram com seus lábios.
- Mia.
- Como você está?
- Cada vez melhor, e você?
- Também.
- Vamos começar?
- Sim.
Me sentei confortável e foquei na minha respiração, como sempre. Sentia meu corpo ir relaxando aos poucos. Às vezes um pensamento teimava em roubar a cena, mas eu não me apegava e tentava focar de novo na respiração. Sempre chegava o momento em que minha concentração ficava tão profunda que eu perdia a noção do tempo e me sentia imersa no ambiente, nos sons que me cercavam, nos sons da Amaya, a mascote do Leiftan, que caminhava ou se mexia se ajeitando. Em algum momento eu ou Leiftan íamos voltando e respirando mais alto, para alertar o outro que estávamos finalizando a meditação. Hoje foi ele.
- Você terminou cedo, Leiftan.
- Sim. Estou um pouco distraído.
- O que foi?
- Apenas preocupado.
- Quer conversar?
Ele suspirou profundamente, encarando o céu. Depois me encarou, os olhos cheios de algo que eu não soube definir o que era.
- Você já conversou sobre mim no QG, Mia?
- Não. - Mas eu sabia que ele tinha ajudado o Lance no plano de destruição de Eldarya. Curiosamente, não senti um pingo de raiva dele e fui capaz de ter empatia com ele desde o momento em que li seu papel na história. Minha sensação em relação a ele reforçou o exagero em relação ao Lance.
- Eu tenho um passado conturbado.
Leiftan então me contou que ele, junto com Lance, havia planejado destruir Eldarya. O ódio que ele sentia pelos eldaryanos por terem caçado os aengels. Que ele tinha visto a família dele ser morta diante dele, e que tinha sobrevivido apenas por ter sido escondido pelos seus pais. E ele era apenas uma criança. Ele cresceu com aquele ódio e alimentando a sede por vingança pelos que mataram seus pais, e logo esse ódio se estendeu a todos que caçaram aengels. Sua atuação fria e calculista na morte de tantos. E que a única coisa que havia sido capaz de mudar ele, havia sido o amor à Érika, que era como uma luz na vida dele, a única que ele tinha. Mas que se sentia confuso com o quanto ele estava disposto a tudo por ela pois nada nunca tinha importado para ele.
- E hoje você medita por isso?
- Também. Eu tento encontrar paz com meu passado e entender melhor o que está acontecendo com meu presente. Eu deveria estar morto. Eu morri. Mas agora, de repente, estou vivo.
- É uma segunda chance. Algo maravilhoso na minha opinião.
- Sim, mas o que fazer com ela?
- O que você quiser, ué. Estudar, peregrinar, turismar, passear, fazer amigos, ser feliz. - Encarei o olhos verdes do aengel, um homem bonito que parecia um anjo torturado. Toquei o rosto dele e fiz uma carícia que pareceu surpreendê-lo. - Fazer o bem.
- Eu não quero mais lutar, Mia. Não quero cair na tentação de usar meus poderes.
- É bom assim?
- Sim. É maravilhoso o poder que sinto ao usar. A intensidade, a liberdade, a quase completa falta de limites.
- Mas não usar eles, por medo, não é... covarde?
- Pode ser, mas prefiro ser covarde a cometer os mesmos erros. - Refleti um pouco sobre as palavras dele e o que tinha aprendido, meditando ao lado dele. Os olhos dele não deixaram os meus, curiosamente, parecia que ele queria realmente a minha opinião.
- Não querer cometer os mesmos erros é bom. Mostra que você realmente se arrependeu. – ficamos em silêncio um tempo. Me lembrei do meu sonho e do que, talvez, eu tenha ajudado a provocar em outra dimensão. Fechei meus olhos com a lembrança da loucura de um povo. Se aquilo fosse verdade, e algo em mim dizia que era, eu não tinha moral para julgar absolutamente ninguém. A lembrança da minha irritação com Lance me atingiu com força novamente. Suspirei e voltei a falar encarando o céu bonito que fazia. - Talvez você só precise fortalecer suas convicções, Leiftan. Às vezes, só precisamos de tempo para respirar. Seus poderes, pelo que li, também podem ser muito benéficos. E lutar para proteger é precioso.
- Pode ser. - A voz dele insegura incerta aos meus ouvidos.
- Pode sim. Só você pode saber. Se dê o tempo que precisa. Mas não deixe o medo te dominar, ok?
Dei um abraço nele, como fazia com Claude, sem pensar muito. Eu gostava dele, de uma forma instintiva. Só depois que estava com ele nos braços foi que me toquei que era uma situação estranha. Eu não costumava abraçar as pessoas e Leiftan nunca tinha me dado aquela liberdade. Mas ele me abraçou de volta depois da tensão inicial. Acho que estava fazendo um amigo ali.
- Até amanhã, Leif.
- Até amanhã, Mia.
Depois de nosso encontro, resolvi que era hora de encarar o treino com o Lance. Fui encontrá-lo pensando em como as pessoas eram complicadas. Como todos tinham sua própria história e como era fácil julgar duramente do alto do próprio pedestal de cristal os crimes alheios, sem estar na pele dos que o cometeram. E olhando de perto, não sei se eu teria feito diferente.
Se entendi bem, depois das minhas pesquisas. Os eldaryanos podem ser bem preconceituosos. O ódio aos aengels só cedeu com a chegada da Érika, por ela ser escolhida do Oráculo. E apenas por ela ter sido envolvida em uma situação em que os idolatrados dragões se revelaram não tão puros na pele do Lance, que tentou destruir Eldarya. E os odiados aengels, então chamados pejorativamente de daemons, salvaram o mundo na pele da Escolhida do Oráculo e do Traidor arrependido no Sacrifício Branco que salvou Eldarya da destruição. Se Lance não tivesse tentado destruir Eldarya, e os Eldaryanos descobrissem que Érika era meio aengel, o que pesaria mais: ser escolhida pelo Oráculo ou o ódio aos Aengels?
Esse povo podia se julgar superior aos humanos, mas eram capazes das mesmas atrocidades e crueldades. E dos mesmos sacrifícios e exemplos superiores. No final das contas, eram raças diferentes, mas os corações eram igualmente complexos. Nem melhores, nem piores, apenas diferentes nas formas e nas composições.
Estava sentada, com esse pensamento em mente, quando vi o Lance se aproximar. Como era para ele? Ter feito parte desse caminho tortuoso? Eu sabia a história que contavam, mas era apenas a versão dos outros. Queimou em mim a vontade de saber a versão dele, como ele via o que tinha acontecido na história. A jornada que o havia forjado como o homem que eu via hoje, calmo, controlado, que mesmo quando sorria, esse sorriso nunca chegava aos seus olhos. Embora não fosse realmente difícil ver ele sorrir, gentil e tranquilo. Eu ainda achava que tinha uma tempestade escondida, ninguém muda tão rápido. Mas nem todo mundo mata o próprio irmão.
Abandonei meus pensamentos reflexivos conforme ele chegava mais perto, e me preparei para nosso treino. Analisei sua figura, me fixando no que o tornava único, diferente do Valkyon. Sua escolha de cores, ele parecia gostar de cores frias, seria influência da tal benção de Quione? E exceto pelos dias no barco, em que o via de armadura, agora sempre que o encontrava ele estava de calça preta e cinza, e uma camisa de manga longa azul. Tudo muito simples e sem acessórios. Uma adaga presa na lateral do corpo por um tipo de cinto. Ele parecia ter uma coleção de roupas similares, pois o visual era religiosamente o mesmo, todos os dias, como um uniforme. Alto como era, aquela roupa só fazia valorizar o físico dele, ainda que não fosse justa, na realidade o tecido era meio solto e parecia ser bem confortável, moldando o corpo dele conforme ele se movimentava, denunciando os músculos torneados e hipertrofiados. Lembro que Valk sempre usava armadura. Não tenho uma única lembrança dele sem armadura.
Me levantei assim que ele chegou perto, pronta para mais um treino e sem graça. Sorri para ele esperançosa de que conseguiria quebrar o clima ruim de antemão. Estava disposta a ter um bom relacionamento com o irmão do Valk. Se ele perdoou o irmão, eu, que devo a vida a ele, também posso perdoar. Pelo Valkyon.
- Finalmente você chegou!
- Alguém está ansiosa para treinar, isso é bom. - Ele me olhava curioso e cuidadoso.
- Estou cheia de energia. Cuidado que hoje eu posso te derrotar.
- Claro, quem sabe? - Ele fez um gesto displicente e me esforcei em me manter cordial. Eu podia!
Começamos com um alongamento e aquecimento.
- Você está na guarda há muito tempo, Lance?
- Sim.
- E você gosta?
- Sim, sou útil aqui.
- Hum... Não foi o que eu perguntei.
- Eu gosto de ser útil, Mia. – ele me respondeu com um olhar que não deixava dúvidas que aquela era a resposta que eu ia obter.
- Essa é uma resposta tão... programada.
- É a que eu tenho.
- Se eu te perguntar sua comida favorita, você vai responder a que for servida no QG?
Ele me deu um meio sorriso.
- O Karuto é muito bom no que faz.
- Céus. Um soldado dos pés à cabeça.
- É o que eu sou.
- Eu não sei se sou tão disciplinada assim. Você não sente falta de... sei lá, fazer o que quiser?
- Não. – a resposta foi mais seca do que eu esperava, e encarei ele alguns segundos. Mas eu não ia me deixar vencer por uma resposta seca.
- Entendo. E você sempre gostou de lutar?
Agora era ele que me encarava.
- Eu sou bom nisso, é algo inerente à minha raça.
- Dragão?
- É.
Depois do aquecimento passamos para treino de combate, algo que eu odiava fazer com qualquer outro, mas amava treinar com Lance. Pois ele me lembrava o Valkyon. E um misto de saudade e ansiedade me preenchia nas aulas. Eu havia odiado as aulas de defesa pessoal na Terra, tinha odiado os treinos de combate com Solomon, pois eu odiava que me tocassem. Treinava mais ou menos com Claude, fazia mais corpo mole que treino propriamente dito. Mas eu sempre gostava quando Lance me tocava, o que acontecia com frequência nos treinos de combate. Em determinado momento, ele me agarrou pelas costas, os braços ao redor da minha cintura, me levantando do chão.
- Tenta se soltar.
Eu me esforcei para me soltar, mas não consegui. Tentei chutar o pé dele, até as canelas. Qualquer um sente dor com um chute nas canelas, certo? Não ele. Ele não se protegeu e simplesmente levou meus chutes, murros e cotoveladas, impassível. Do que ele era feito? Minhas mãos, cotovelos e calcanhares estavam doendo de bater nele!
- Eu não estou te machucando, só te segurando.
Respirei fundo e me acalmei, me deixando relaxar para tentar achar uma solução para aquela situação. Não era confortável ficar agarrada assim, mas era visível que ele me segurava de forma que não fosse tão desconfortável. Analisei minha situação. Chutes e murros não funcionavam, era como bater em um muro. Ele era firme e musculoso contra meu corpo. Tinha uma aura fria ao seu redor e um cheiro fresco que me lembrava pinheiro e neve. Me mexer insanamente também tinha falhado de forma miserável. Uma ideia vergonhosa se passou pela minha cabeça, mas eu tinha certeza que funcionaria, então me esforcei e alcancei o quadril dele dei uma batidinha, para ele saber exatamente onde minha mão estava.
- Eu poderia tentar te agarrar mais ou menos aqui, e te machucar. - Céus, meu rosto estava quente, provavelmente vermelho. Agradeci rapidamente por estar de costas para ele.
- Inteligente com muitos homens. - A voz firme dele deixou claro que se ele ficou sem graça, não deixou transparecer nem um tremorzinho ou riso. - Mas inútil com mulheres e com machos que não tenham o mesmo ponto fraco. E no meu caso, e de muitos que compartilham essa fraqueza, eu uso armadura em missões, você não teria acesso para me atingir. Como você escaparia sem essa alternativa? Até agora nada funcionou e eu não estou te atacando, só imobilizando. Você estaria morta se eu tivesse realmente te atacado, Mia.
Apoiei as mãos nos braços dele, meio apoiando, meio empurrando. Deixei minha cabeça pender meio derrotada, meio envergonhada. Eu era pequena, eu sabia. Mas ele estava me pendurando de um jeito que nem meus pés tocavam o chão, nem minha cabeça ficava acima da dele, me tornando hiperconsciente do quão pequena era perto dele. Me senti meio frustrada. E estava ficando desconfortável, ficar pendurada daquela forma. Fechei os olhos e deitei a cabeça no peito dele. Eu tinha que admitir que ele estava certo. Na Terra os homens não usavam armaduras, então não me ocorreu aquela hipótese, e eu nunca pensei em ter que lutar contra uma mulher. A orientação da polícia em casos de sequestro e assaltos, era que nós fossemos calmos e pacíficos, evitando irritar os bandidos. Na minha cabeça, o único motivo para eu ter que me defender em uma luta física, era contra um homem que me atacasse sexualmente. O que me causava pânico e aflição. Estava quase desistindo quando lembrei das aulas de autodefesa. Olhei para cima e ele estava me encarando, sério, um poço de paciência nos olhos azuis.
- Nos olhos, eu tentaria alcançar seus olhos. - Sugeri insegura.
- Muito bem. Faça.
Tentei alcançar os olhos dele, o que foi fácil, encostei devagar meus dedões nos olhos dele e pressionei levemente.
- Isso que você fez é excelente. Me obrigaria a liberar você para me defender, te dando espaço para fuga. E entenda Mia, se você enfrenta alguém maior e mais habilidoso que você, tente fugir, ok? Esse é o tipo de coisa que você tem que pensar. Quase todas as criaturas têm olhos sensíveis, independente de gênero ou raça, e um forte instinto de proteção em relação a eles. Logo atacá-los é uma excelente estratégia. E esteja sempre pronta para contra-ataques.
Ele me soltou, estava me afastando dele quando ele voltou a me atacar, dessa vez colocando a mão em minha garganta. Nessa hora um medo primitivo me preencheu, a lembrança viva de quando meu padrasto me atacava. Ele sempre me pegava pelo pescoço, me deixando sem respirar. Eu tinha que ser rápida antes de desmaiar sem ar, e não podia fugir pois ele me alcançaria, então ataquei meu padrasto com fúria cega. Agarrei a mão dele cravando a unha em pontos que eu sabia que eram de carne delicada, machucando-o, que abriu a mão surpreso. Fugir não era uma opção, ele sempre me alcança. O melhor é machucá-lo, irritá-lo. Uma surra é sempre o melhor. Me virei e escalei o corpo dele, rápida, mordendo seu pescoço até sentir o gosto do sangue dele na minha boca.
- Mia, calma, calma, sou eu, Lance. – A voz do Lance me alcançou em algum lugar da minha mente embotada. – Calma, calma. Você está no QG, está tudo bem. Está segura.
Percebi que estava com as pernas em volta do tronco do Lance, os braços travados em um abraço estranho, com uma mão ele segurava meus pulsos atrás do pescoço dele, a outra mão acariciava minha cabeça, me acalmando. Eu mordia a lateral do pescoço dele, que estava sangrando significativamente. Minha mente confusa entre o que eu achei que estava acontecendo e o que realmente tinha acontecido. Parei de morder, sentindo o gosto de férreo de sangue na boca, tentando me localizar, entendendo que estava no QG e não na casa da minha infância.
- Tudo bem, já passou. Você está aqui no QG, lembra? Em Eldarya. Eu sou o Lance, e nós estamos treinando.
Sim, eu lembrava agora. Desmoronei assim que entendi o que tinha acontecido. Me encolhi inteira no colo dele tentando conter a emoção, mas não consegui. Tremores sacudiam meu corpo e faziam meus dentes se baterem como se eu estivesse morta de frio. Eram anos demais contendo aquilo. Tempo demais. Ele se sentou no chão e ficou comigo naquela planície, me ninando enquanto eu chorava como uma criança, sem conseguir conter aquele mar de medo que me inundava ante a simples ideia do meu padrasto existir na minha vida. Lance seguia acariciando meu cabelo e me dizendo que eu podia chorar o quanto eu quisesse.
Quando melhorei, ele não me largou, continuou me abraçando e ninando.
- O que aconteceu, Mia?
- Eu não quero falar sobre isso, Lance.
- Tudo bem. Eu te machuquei?
- Não.
- Entendo... Você pode conversar com a Ewelein sobre isso.
- Eu já conversei com psicólogos na Terra. Já fiz terapia. Só não me sufoque, nunca, Ok? Eu já quebrei a cara de moleques com o dobro do meu tamanho por causa disso, sabia? - Comentei tentando descontrair o ambiente e afastar minha mente.
- Como assim? – ele me olhou curioso.
Eu ri um pouco, lembrando de uma história.
- Eu era uma criança nerd e quieta no início da escola e, por ser assim, algumas crianças acharam que eu era perfeita para ser zoada. Então um dia, eles me disseram que a aula tinha mudado de sala. E eu fui, distraída, lendo um livro e seguindo meus colegas. Não vi que era o almoxarifado. Eles me trancaram lá. Mas o lugar era pequeno e escuro, com cheiro forte de produtos de limpeza. Eles me largaram trancada lá, rindo muito mesmo eu pedindo que não fizessem isso. Fiquei furiosa por perder a aula e ser trancada naquele lugar horrível. A zeladora não demorou a me encontrar. Primeiro eu denunciei todos que fizeram aquilo comigo. Eles foram advertidos e tentaram me amedrontar, dizendo que fariam da minha vida um inferno. Decidi que era eles ou eu. Se eu não fizesse da vida daqueles valentões um inferno antes, eles fariam da minha vida um. Comecei a planejar pequenas vinganças que destruía a moral deles diante da escola, e em menos de um mês, eu tinha minha própria turma, pessoas que eles tinham zoado e agora me ajudavam a zoar eles.
Me alonguei, sentindo a tensão deixar meu corpo, sorrindo diante da lembrança da briga de gangues do primário.
- Até que o garoto que era parte da turma deles, mas de uma turma mais avançada resolveu ajudá-los. Ele e a turma vieram para cima de mim, jogaram uma gosma no meu rosto. Aquela merda entrou no meu nariz e boca e me fez sufocar enquanto eles riam ao redor. Foi a primeira vez que eu fiquei realmente furiosa e quis machucar alguém. Parti para cima dele com minha lancheira direto na cara dele. Ele não esperava que uma menina minúscula da quarta série atacasse a ele, um garoto da sétima. A lancheira era de metal e atingiu em cheio o nariz, quebrando na hora. Ele caiu e me sentei sobre ele, esmurrando e arranhando o rosto dele, irada. Nós fomos levados para a diretoria. Foi minha única suspensão da vida. Mas não era a primeira dele, que quase foi expulso por atacar alunos mais novos, provocar brigas e quase me sufocar com a gosma. Nem ele, nem a turma dele nunca mais mexeram comigo.
- E muito sua cara fazer algo do gênero. – ele bagunçou meu cabelo rindo divertido. – uma valentona de um metro e meio!
- Hey! Um metro e sessenta com muito orgulho. São dez centímetros a mais. Fazem muita diferença!
- Claro. Muita diferença.
- Eu não posso entrar nos brinquedos infantis por causa deles. – fiz um beicinho. – Você pode imaginar a tristeza? Um pouco menos e eu ainda poderia ir ao pula-pula e entrar na piscina de bolinhas!
Ele sorriu para mim, tocou meu rosto secando o resto das lágrimas que ainda tinham o rastro ali. Me dei conta, subitamente, de ainda estar sentada no colo dele. Vi a mordida no seu pescoço e toquei próximo.
- Você não está sentindo dor, Lance?
- Estou. – Na hora me senti culpada.
- Nem parece. - Falei mais para mim mesma que para ele. Chocada com o autocontrole que ele era capaz de ter.
- Sem problemas. Existem coisas mais importantes que a dor agora.
- Me desculpa. - falei baixinho.
- Tudo bem. Me desculpe também por ter acionado um gatilho de algo doloroso para você.
- Não tinha como você saber. Nem o Claude sabe.
Ele me abraçou firmemente, me apertando contra o corpo dele, o queixo sobre a minha cabeça. Me senti protegida ali. Fechei meus olhos e inspirei profundamente o ar. O ar ao redor dele era fresco, gelado quase. Pinheiro e neve, com certeza. Lance cheirava a uma floresta de pinheiros coberta com neve. Que imagem estranha. Claude sabia de parte do que eu tinha passado com meu padrasto, mas não tudo. Não todo o inferno que eu tinha vivido com aquele ser demoníaco até que minha mãe descobrisse e fugisse comigo. Ninguém sabia. E eu não pretendia materializar aquilo em palavras. Que o passado morresse enterrado no passado. Abri meus olhos e encontrei os do Lance me encarando. Olhos azuis como o oceano. Havia ali algo que não identifiquei, carinho, talvez?
- Vem, vamos para a enfermaria. Você pode ser durão, mas a Ewelein vai te matar se você não for lá e se cuidar. – então pisquei para ele, tentando fazer graça – eu falei que ia te derrubar hoje.
- Uma mulher que cumpre o que promete. Tenho que ter cuidado com você.
.。.:*☽*43 - Uma Tarde na Praia *☾*:.。.
PDV Nevra.
Sirvo alguns Gallyflores para minha Black Gallytrot e acaricio suas orelhas macias enquanto ela se delicia com calma. Seus pelos macios e brilhantes revelam que sua saúde segue excelente, e a energia quase inesgotável dela a torna uma companheira perfeita. Shaïtan sempre me enche de felicidade e paz. Brinco um pouco com ela, buscando aliviar um pouco da tensão que me preenche.
Essa foi uma semana tranquila, sem novos incidentes com a Elise, nem com nenhum outro membro da Guarda. Huang Chu está trabalhando em dois projetos principais, testar as habilidades da Elise e abrir um Portal para a Terra. As notícias que recebemos são preocupantes. Novos portais surgem constantemente para a Terra, nenhum parece ser apto para viagem, mas expõe Eldarya ao olhar terreno. Ao mesmo tempo, cada vez mais animais e plantas da Terra aparecem em Eldarya.
Sobre a criatura que possui o corpo de Elise, encontramos provas suficientes para saber que ela não é da Terra nem de Eldarya e, definitivamente, está conectada à contaminação dos mascotes. O que nos causa uma preocupação nova, pois sugere que a contaminação não está acontecendo ao acaso, mas planejada. Os elementos que a compõem também são novos em Eldarya. Componentes completamente novos, sem relato anterior em nenhum livro de alquimia. Não sabemos se é algum tipo de mutação, transformação ou criação. Estamos cegos em relação à criatura, exceto sua aparência, que visualizamos no dia do ataque, e que ela sente prazer ao torturar suas vítimas.
Meu corpo imediatamente ficou tenso com a lembrança de quando fui o alvo direto dela. Eu já enfrentei e fiz muitas coisas ao longo de minha vida, mas nunca enfrentei nada similar. Já lutei em batalha, torturei e fui torturado. Nunca encontrei algum ser que se sentisse tão pleno e satisfeito ao fazer isso. E aquela criatura... Respirei fundo tentando lembrar os exercícios que a Ewelein havia me passado. Olhei em volta me localizando no presente e no agora. Ver cinco coisas, escutar o som de quatro, cheirar três, tocar duas e saborear uma. Nomeando cada item.
A dor de ter meu corpo imobilizado e atacado. A expressão desfigurada da Elise, seu sotaque estrangeiro e completamente estranho. Suas palavras, a forma como ela me tocou e me obrigou a tocar no seu corpo... Eu sabia que não era ela, que era a criatura controlando-a, tão claro quanto um cristal. Mas era o rosto dela que eu via, sobreposto ao da criatura vil, desfigurado, que agora aterrorizava meu sono. Como consequência, agora eu estava dormindo mal toda noite, com pesadelos. Sempre aquela criatura controlando a Elise e me atormentando ou pior, atormentando outros membros da Guarda. Minha irmã. Merda.
Paradoxalmente, ao ver a Elise flertar abertamente com vários membros da Guarda de Eel, sentia vontade de roubar a atenção dela, de entrar na competição, de ser o escolhido dela. Ela e aquele ar doce, sério, reservado e o discreto ar travesso que descobri que ela tinha quando flertava. Busquei ficar longe dela apenas para descobrir que não conseguia mais tirá-la da cabeça.
- Você precisa descansar. – Asseverei encarando minha imagem no espelho.
Peguei minhas coisas e me dirigi para a praia. Relaxar eram ordens médicas. O sol não estava bonito o suficiente para atrair os amantes da praia. E o mar não estava calmo o suficiente para os nadadores e mergulhadores. Então eu esperava uma praia vazia e calma, como eu precisava. Desci a escadaria antecipando minha folga, concentrado no delicioso ar salgado que atingia minha pele, preenchendo meus sentidos, acariciando meus lábios e minha língua.
Me dirigi para a parte mais distante e, chegando lá, depois de ajeitar minhas coisas, percebi que, atrás do rochedo, meio escondido, havia uma bolsa de piquenique e um chapéu feminino. Olhei ao redor e não vi ninguém na praia. A direção do ar, contra meu corpo, não me ajudava a farejar a dona dos objetos. Observei o mar e identifiquei uma silhueta estava nadando. Quem entrava no mar nesse tempo nublado e com o mar agitado? Impossível não me sentir responsável pelo irresponsável que nadava. Me obriguei a observar o ambiente ao redor, buscando sinais de perigo, até perceber que a nadadora começou a boiar. Elise.
Desde quando ela nadava sozinha no mar? O QG era seguro, mas isso não significava que nosso mar era 100% seguro. Especialmente não para um nadador solitário. O soldado em mim me impediu de relaxar, pronto para agir caso precisasse. Mas ela ficou boiando tranquilamente, por um bom tempo. Depois de cerca de meia hora ela saiu da água e veio em minha direção, confirmando minha hipótese dela ser a dona dos objetos.
Salivei diante da visão da loira. Se havia algo mais sexy que ela saindo do mar eu precisava ser informado do que era. Seu corpo cansado a fazia apoiar o corpo a cada passo jogando o quadril para os lados. Quase uma batida de cada lado do corpo. Ela usava um biquíni rosa claro, a cor de rosampgnes, que valorizava sua pele clara e rosada e seu corpo longilíneo e esbelto. O top marcando seu busto pequeno, em um decote princesa, delicado. Um pingente de coração dourado chamando atenção ao início de uma delicada e discreta linha alba no topo do seu abdômen. Duas fitas saiam de onde o pingente estava e faziam a curva superior do seio dela, fechando um círculo perfeito ao redor de cada seio. O biquíni, com laterais larguinhas e drapeadas, valorizando o quadril estreito.
E as tatuagens. Além do que eu já tinha visto, algo estava parcialmente coberto sob a calcinha do biquíni, mas podia jurar ver, parcialmente, um corvo na virilha dela, segurando uma rosa vermelha no bico, que era a parte que eu conseguia ver claramente. Fiquei hipnotizado pelo bico do pássaro e a rosa, imaginando como seria o resto. Eu só precisaria afastar um pouquinho aquele biquini... Fechei os olhos e respirei fundo. Essa mulher é uma obra de arte ambulante. E minha tensão não é mais por perigo.
- Oi, Nevra! – ela acenou à distância, a voz soando insegura.
Levantei uma mão e sorri de volta. Meu plano de relaxar estava derretendo, pois senti minha tensão no ápice. Ela chegou perto com um sorriso que era, ao mesmo tempo, feliz e um pouco sem graça. Há mais de uma semana não nos falamos. Desde o incidente.
- Posso me sentar? – ela perguntou tímida.
- Por favor. – sorri para ela incentivando. Talvez fosse aquela a nossa oportunidade de conversar. Elise não é o primeiro caso de possessão que enfrentamos na Guarda, mas é, definitivamente, o mais perigoso. Chu e Ewie já tem um plano para ajudá-la. Em possessões a autoestima e segurança da vítima é essencial para o controle do espírito. E Elise tem ambos bem baixos.
A vi se dirigir até a bolsa, pegar um tecido florido e abrir na areia da praia. Depois pegou uma garrafa de água, espalhou alguns objetos nas pontas do tecido, o que servia para segurar o tecido no lugar e, ao mesmo tempo, organizar suas coisas. Eram um livro, frutas, dois sanduíches, e a própria bolsa. Sua movimentação me permitiu apreciar a parte de trás do biquíni, que tinha um recorte no formato de coração, no cós, com outro pingente, que brincava com o início da curva do bumbum dela. A Purriry tinha se superado com aquela obra prima.
- Como você está, Nevra?
Com tesão, é o que eu queria responder. Ou talvez eu devesse dizer que queria morder o bumbum dela. Mas a vi se virar e subi meu olhar rápido, para que ela não me pegasse encarando seu traseiro. Encarei o olhar dela sério. As informações sobre a Lenda e o que aconteceu conosco, me deixaram desconfortável ao lado dela, ao mesmo tempo, imagino que ela também esteja desconfortável ao meu lado. Eu sou o segundo no comando de Eel, e ela é completamente inexperiente no mundo feérico, é minha obrigação orientá-la. Resolvi responder com sinceridade.
- Melhor a cada dia. E você?
- Também. Me sinto mais feliz agora.
- É mesmo?
- Sim. Aqui eu não preciso me esconder, então eu posso ser eu mesma. Ewie e Chu tem conversado comigo, me explicado muitas coisas. Além disso, se a Ewellein estiver certa, quanto melhor eu estiver, menores as chances daquela coisa me controlar.
- Isso é importante. Poder ser você mesma te tornará mais forte de qualquer maneira.
- É verdade.
Vi ela se sentar rápida, virada para mim.
- Tem certeza de que você está bem?
Olhei nos olhos dela e me sentei com calma.
- Eu disse que estou melhor a cada dia, não que estou bem.
Ela mordeu os lábios olhando de lado, parecendo meio atormentada.
- É só que eu... eu queria dizer que se você precisar de qualquer coisa, eu gostaria de poder te ajudar. – Sim, mesmo nos meus pesadelos, eu sabia que o rosto podia ser o dela, mesmo nos pesadelos eu sabia que nunca era ela me machucando.
- Eu sei, querida. Eu sei. É só que. Você sabe. Foi... – minha coluna ficou rígida, os ombros tensos e encarei o horizonte sem saber o que dizer. Senti uma mão calorosa e insegura no meu ombro algum tempo depois, gentil, e senti algo quente descer pelo meu rosto. Baixei a cabeça sem saber muito bem o que fazer. Eu já tinha passado por muita coisa. Havia perdido meus melhores amigos. Vi meu mundo quase ser destruído. Mas aquilo tinha sido a coisa mais degradante da minha vida. Eu sempre pude fazer algo, sempre tive força para lutar. Ter aquilo tirado de mim, ser imobilizado, foi a personificação do meu pior pesadelo.
Em alguns instantes estava chorando, com a Elise abraçando minhas costas, silenciosa. Ela não falava nada, deixou os cabelos molhados caírem pelo meu peito, os braços agarrados à minha cintura. Chorei agarrando os braços dela como não fazia há anos, em lugar nenhum, com ninguém. Talvez porque ela soubesse como era estar vulnerável daquele jeito. Quando meu choro passou e os soluços desapareceram, achei que ela se afastaria, mas ela continuou. Sem me largar, ela se sentou atrás de mim, abriu as pernas e passou elas ao meu redor, agarrando minha cintura. Ela era menor que minha mochilas de missão, e ainda assim, me dava a segurança de um escudo protetor. Ficamos assim um longo tempo até ela se mover e eu sentir falta dela.
Mas ela apenas se moveu para trás e me convidou a deitar no colo dela. Merda. Como eu poderia resistir? Há quantas décadas eu não sabia o que era isso? Receber colo de forma tão descompromissada assim? Me senti meio infantil e sedento, deitando minha cabeça nas coxas frias dela. Ao mesmo tempo, sentindo seu cheiro, me conectando perigosamente ao que me era oferecido. Ela me olhou, sorriu e começou a acariciar o meu cabelo. Eu poderia facilmente dormir naquela posição confortável.
- Melhor?
- Sim. Obrigada.
- Não agradeça. Minha mãe sempre fazia isso comigo quando era viva. Eu me lembro como era bom botar para fora.
- Não é mais?
- É difícil achar colo no mundo.
- Eu posso te dar. – sugeri rápido.
- Obrigada. Pode ser nosso acordo? – ela me olhou com seus olhos calmos e tristes. Sim, eu queria ter um acordo com ela. Algo nosso, meu e dela.
- Sim. Nosso acordo.
- Fechado então. Sempre que um precisar, pode procurar o outro. – Valeu a pena ver aquele sorriso iluminar o seu rosto.
Nós ainda ficamos um longo tempo ali. Conversamos, e descobri que ela não tinha o hábito de beber, devido às fortes dores de cabeça e a incompatibilidade entre os remédios e álcool. Tive que me controlar para não tentar seduzi-la e mover nossa relação para outro nível. Me lembrava constantemente que não me envolvia com mulheres da Guarda, afinal eu era o chefe delas e não seria de bom tom. Além disso, mulheres da Guarda vivem expostas ao perigo e eu não estava disposto a correr o risco de perder mais pessoas. Era um risco emocional muito alto. Em vários momentos, quase me esqueci disso.
Quando as estrelas subiram, voltamos ao QG juntos, ainda conversando muito. Nós tínhamos várias coisas em comum, outras nem tanto. Mas ambos concordamos quanto à importância do diálogo. Entendi rápido que eu era mais ciumento e possessivo que ela. Nenhum de nós dois nunca teve um relacionamento sério na vida.
- Você já conheceu alguém interessante no QG? - Perguntei com receio.
- Já, mas não avancei em nada ainda. Prefiro ir com calma.
- É melhor. Logo, logo, você encontrará alguém para namorar. – Dizer aquilo me matou um pouco por dentro, mas era o certo a dizer.
Ela sorriu de um jeito leve, pendendo a cabeça de lado, como se eu tivesse dito algo realmente bobo. Ali estava, o leve traço de travessura.
- Eu não estou procurando um namorado, Nevra. Estou procurando um amante. Ou mais de um. Não sei. Na Terra eu tinha alguns contatos. Sabe como é, como você tem entre as civis.
Ela me olhou tranquila, sem saber que havia despertado uma tempestade dentro de mim. Amantes? Como eu? Contatos? A ideia dela ter vários amantes ocasionais e sem compromisso, me fez ter mini ataques. Me virei pronto para beijá-la, deitá-la no chão, fazer amor até ela ficar rouca gritando meu nome e esquecer essa frase odiosa, quando notei que estávamos no meio do QG, com várias pessoas ao nosso redor. Respirei fundo, sem controlar meu ciúme.
- Você deveria focar em um único amante, não em vários.
- Por que eu preciso ter apenas um? Que eu saiba você e outros homens do QG tem várias amantes. Há alguma regra que diga que comigo tem que ser diferente? - Ela me observou levantando um sobrancelha, e usando um tom de voz duro demais na minha opinião. - Você perguntou e não tenho problema em falar desse assunto com meus amigos. Mas se você for agir com hipocrisia, melhor não tratarmos do tópico, ok?
Baixei a cabeça num misto de vergonha, luxúria e ciúme. Eu ainda queria fazê-la gritar meu nome e se arrepender de querer outros amantes, de me chamar de amigo, mas ela estava certa quanto à minha hipocrisia. Nos despedimos logo em seguida, e segui atormentado com a revelação. Fiquei tão focado que não notei que naquela noite, e nas seguintes, dormi bem. Um sono tranquilo, reparador, sem pesadelos. Atormentado unicamente pela expectativa de descobrir que ela tinha arrumado alguém para estar na sua cama.
.。.:*☽*44 - Rotina *☾*:.。.
Spoiler NE Ep. 7 - Rota Nevra
PDV Elise.
Acabei criando uma rotina rapidamente. Acordava cedo, ia ao banheiro quando ainda estava vazio. Tomava café da manhã conversando com o Karuto. Treinava magia com a Huang Chu. Almoçava com ela. Treinava com o Lance, que voltou a ser simpático desde que não atrasei mais para o treino. Tomava outro banho. Ia para a biblioteca estudar. Se eu desse sorte, ela tinha poucas pessoas. Se eu desse azar, a Karen estava lá e me sentia ser esfaqueada nas costas o tempo todo. Jantava sozinha ou com a Koori ou a Erika. Passava a noite lendo alguma outra coisa.
Sinto falta de ter um amante para relaxar, mas já entendi que minhas duas primeiras opções, o Nevra e o Lance não vão rolar. Koori me revelou a política de não envolvimento com membros da guarda do Nevra, e o Lance, bom, ele não me deu a mínima bola. Desconfio que ele está fascinado pela Mia. Uma pena, eu teria adorado um dos dois. Mas realmente estou precisando de alguém. Depois da morte dos meus pais e do tratamento psicológico, me liberei muito sexualmente, e nunca mais passei tanto tempo sem fazer sexo. Sempre me mantive com contatos de colegas para essa função. Preciso das umas voltas no QG para buscar alternativas. Deve haver solteiros disponíveis para sexo casual.
Pensando nisso, coloco o short com tiras nas coxas, minha regata com uma blusa transparente por cima. Vamos ver de quem eu chamo atenção e quem chama a minha. Resolvo passar pela Biblioteca para ver se tem algum livro para pegar emprestado. Na entrada eu vejo o Nevra de costas, escrevendo algo. Me lembro da nossa última conversa e o comportamento hipócrita dele. Homens. Mas ainda assim eu gosto de conversar com ele e resolvo entrar silenciosa para ver o que ele está fazendo.
- Olá, Elise. – Ele nem levantou a cabeça para me olhar, antes de dizer isso. Só então ele me olhou e deu um sorriso. Vampiro.
- Oi, como você está? – Me sentei ao lado dele.
- Trabalhando em alguns relatórios.
- Algum segredo? – Disse com um sorriso travesso.
- Se fosse segredo você nem ficaria sabendo. – Ele me respondeu com um meio sorriso.
- Droga. – Olhei o tanto de folhas que ele estava preenchendo. Ele tinha uma letra pequena. - Precisa de ajuda?
- Não, estou quase no fim. Posso fazer algo por você?
- Também não. Eu vou tomar café da manhã. Passei aqui antes para pegar um livro.
- Algum livro específico? Ou está procurando informações sobre alguma coisa?
- Não, é apenas para passatempo.
- Isso é importante. Infelizmente o clima tende a ficar pesado nos próximos dias.
- Por causa da notícia de que Eldarya e a Terra estão se fundindo? – Eu sabia sobre esse tópico, sentia no ar a tensão, e que era um tema difícil para os Faeries. Especialmente os que não tinham aparência humana, como o Nevra. Como seria para um Vampiro como ele, ser obrigado a voltar a ser noturno na Terra? A aparência dele também seria um problema, facilmente resolvido com uma cirurgia plástica, mas seria ainda assim...
- Sim. E precisamos fazer de tudo para continuar bem dispostos. Isso é importante.
- Está contente que eu tenha vindo te distrair um pouco? – aquilo soou mais sugestivo quando eu falei do que na minha cabeça.
- Estou muito feliz, é sempre um prazer estar na sua companhia.
- Ah, vamos, assim você me deixará sem graça.
- Se eu quisesse te deixar sem graça, posso garantir que você ficaria sem graça.
Uau! O que foi isso? Senti meu rosto ficar um pouco vermelho de surpresa. Eu não vi isso chegando. Vampiro malvado.
- Adoro suas qualidades, Nevra. Especialmente a modéstia.
- Eu tenho muitas qualidades, a modéstia não está entre elas.
- Percebi.
Encarei ele alguns segundos. Analisei a cicatriz mais clara que a pele e que marcava seu olho esquerdo, provavelmente cego. O outro olho, cinza, me olhava de volta com atenção.
- Você disse que ia tomar café da manhã?
- Sim.
- É melhor ir logo, especialmente se você não quiser perder a hora do seu treinamento com a Huang Chu.
Olhei o relógio da Biblioteca. Ele estava certo, eu iria me atrasar se ficasse de bobeira ali.
- Eu já vou indo então Sr. Modéstia.
Dei um beijo estalado na bochecha do Nevra para provocá-lo e saí rindo. Ele era um típico mulherengo, exatamente como muitos da Terra. Adorável para o flerte e um bom sexo. Detestável se você cair no erro de se apaixonar. E ele estava interessado em mim, sorri deliciada. Primeira isca jogada. Segui para meu café da manhã e fiquei atenta enquanto conversava com o Karuto. Identifiquei alguns homens e algumas mulheres me olharem interessados. Distribui alguns sorrisos.
- Você está diferente hoje.
- Como assim, Karuto?
- Normalmente você chega, come, conversa comigo e vai embora.
- É o que estou fazendo, ué.
- Nã na ni na não. Hoje a mocinha está interessada nas pessoas ao redor dela. – ele piscou para mim. – Não pense que não estou vendo esses sorrisinhos.
- Ahhhh. Eu não quero morrer sozinha, Karuto. Uma garota tem suas necessidades.
Ele riu divertido com meu jeito de falar.
- Então se divirta minha jovem. Pois tem muitos olhos para você por aqui.
- E não só para mim, né, Karuto? Mas você só tem olhos para um...
Arrisquei. Era meio óbvio que o Karuto arrastava um caminhão pelo Feng Zifu. E pessoalmente, eu acreditava que não era nada unilateral. Mas o outro tinha um nariz empinado demais para admitir. E Karuto era tímido demais para ter coragem de chegar junto.
- Não vamos falar de mim. Além disso, tá na sua hora mocinha.
- Não fuja do assunto, Karuto. Eu vou, mas eu voltarei. E conversaremos sobre essa sua vergonha. Só se vive uma vez Karuto! Uma vez!
Saí feliz exibindo meu corpo para os olhares gulosos ao meu redor, consciente da minha aparência. Durante algum tempo acreditei que ser magra demais era ruim, num mundo de culto aos corpos sarados e às gostosas cheias de curvas. Até entender que independente do que a mídia mostrava, no dia a dia, não era o físico das pessoas que atrai nossa atenção, era a personalidade, a forma como ela lidava com o corpo, se mostrava, se revelava. Ao perceber isso, fui aos poucos me empoderando de mim, do meu corpo. E cada vez mais, ser muito magra importou menos. Eu gostava do meu corpo, valorizava ele, e o mundo o apreciava de volta. E quem não apreciava, foda-se, não me importava. Mas esses simplesmente eram mal-amados carentes de atenção, destilando ódio para conseguir migalhas de atenção.
Então ali estava eu, desfilando meu corpo e procurando pessoas interessantes que pudessem estar, em breve, na minha cama. E aquilo era excitante. Passei a manhã com a Huang Chu no Laboratório, em nosso treinamento, e faço o mesmo, observando outros membros da Absinto. Um homem com orelhas de ovelha me parece especialmente fofo e sorrio para ele. Eu não falo o que estou fazendo, mas não disfarço. Não é um crime e sou adulta.
No almoço, aproveito para me sentar numa posição privilegiada e observo bem todos que passam. Ainda não achei alguém realmente excitante, mas é só questão de dar uma chance. As pessoas podem surpreender. Vejo o Lance passar e aprecio como ele é gostoso, uma senhora bunda recheando a calça cinza escura que mais revelava que ocultava. Como eu queria dar umazinha com ele. Olho ao redor e vejo o Mateus. Ele daria para o gasto, mas lembro de que eu sinto ele e não quero isso. Dispenso-o mentalmente. Vejo um homem alto, tão alto quanto o Lance, que vi no café da manhã, vir na minha direção. Ele é moreno, com a pele bem bronzeada, um subtom oliva, parece ser do oriente médio. Musculoso, com algumas cicatrizes e vestindo calça de couro e uma camisa branca aberta no peito. Me lembrou imediatamente capa de revista de romance feminino.
- Posso sentar? – ele pergunta em um sotaque exótico que me faz salivar levemente.
- Claro! – respondo com meu melhor sorriso.
Ele se senta com um prato enorme de comida completamente vegetariano pelo que consigo identificar. Me surpreendo pelo tamanho dele.
- Meu nome é Jhalil, e você?
- Elise. Muito prazer.
- O prazer é meu.
- Me diga Jhalil, o que você faz?
- Eu sou membro da Guarda Obsidiana. Sou um guerreiro. E você?
- Estagiando na Absinto.
- Ah! Você é a novata que o teste mostrou que poderia ser parte da Absinto ou da Sombra.
- Você sabe disso?
- As notícias correm. Você ficou famosa. – vi o olhar dele passear discretamente pelos meus seios.
- Ah! Que bom que é por isso. Eu vou passar um mês ali. Depois um mês na sombra. Só depois farei parte de uma Guarda oficialmente.
- A Guarda que você escolher será sortuda de te ter. É sempre bom ter uma Guarda, ela é nossa família.
Gostei como ele disse aquilo. E gostei do papo dele. Jhalil era simpático, galanteador e charmoso. Definitivamente um bom tipo. Estávamos flertando bem, o almoço terminou há tempos. Eu passava a mão nos braços dele, incentivando, e ele me olhava com cada vez menos discrição. Já ia marcar algo à noite com ele quando vi uma parede aparecer do meu lado.
- Vamos para o nosso treino, Elise?
Jhalil encarou o Lance sem perder a desenvoltura.
- Eu posso treiná-la, Lance!
- Não. Eu mesmo treino ela. Vamos, Elise.
- Claro. – me virei para o Jhalil – nos vemos outra hora.
- Com certeza. Até mais, Elise. – e ele me mandou um beijo charmoso.
Segui o Lance como estava, pois podia treinar com aquela roupa tranquila.
- Eu não ia perder a hora – mostrei meu relógio para o Lance – eu estava atenta ao horário. Vi que faltava vinte minutos. Então eu estou adiantada. Mas eu não preciso trocar de roupa pois posso treinar com essa mesmo.
- Não se preocupe, é que eu tenho um compromisso depois.
- Entendi. Sem problemas. Mas eu não ia perder a hora viu? – reforcei para ele ter certeza. Não precisa ficar mal-humorado e me destruir no treino, pensei comigo mesma.
Na sala de treinos, Lance começou com posicionamentos, nos quais eu estava bem melhor. Com o apoio dele, meu corpo estava visivelmente mais firme, e respondia melhor aos meus comandos. Senti ele me segurando para estabilizar em novos exercícios. Já estava acostumada à calma e foco dele para treinamentos físicos. Enquanto ele me equilibrava, notei que os curativos no pescoço e na mão dele, e me perguntei como ele tinha conseguido os machucados. O que era capaz de ferir um dragão?I’m Not Here to Make Friends
Todo mundo está procurando alguém, alguém para levar para casa
Everybody's looking for somebody, for somebody to take home
Eu não sou a exceção, sou uma bênção de um corpo para amar
I'm not the exception, I'm a blessing of a body to love on
Se você quer muito esta noite
If you want it bad tonight
Venha até mim e deixe cair uma linha
Come by me and drop a line
Coloque sua aura na minha
Put your aura into mine
Não tenha medo se você gosta
Don't be scared if you like it
eu poderia te encher de vida
I could fill you up with life
eu poderia aliviar o seu apetite
I could ease your appetite
Saiba que você nunca esteve tão alto
Know you've never been this high
Não tenha medo se você gosta
Don't be scared if you like it
Porque não estou aqui para fazer amigos
'Cause I'm not here to make friends
Não, não estou aqui para fazer amigos, sim
No, I'm not here to make friends, yeah
Porque não estou aqui para fazer amigos
'Cause I'm not here to make friends
Eu preciso de um amante, preciso de um amante (preciso de um amante, preciso de um amante)
I need a lover, I need a lover (I need a lover, I need a lover)
Eu só estou sendo honesto, baby
I'm just being honest, baby
Eu só preciso de um parceiro quando as luzes se acendem, sim (as luzes se acendem)
I just need a partner when the lights come on, yeah (the lights come on)
Trinta quase me pegou, e eu cansei de canções de amor, sim
Thirty almost got me, and I'm so over love songs, yeah
Então, se você quer muito esta noite
So if you want it bad tonight
Venha até mim e deixe cair uma linha
Come by me and drop a line
Saiba que você nunca esteve tão alto
Know you've never been this high
Não tenha medo se você gosta
Don't be scared if you like it
Porque não estou aqui para fazer amigos
'Cause I'm not here to make friends
Não, não estou aqui para fazer amigos, sim
No, I'm not here to make friends, yeah
Porque não estou aqui para fazer amigos
'Cause I'm not here to make friends
Eu preciso de um amante, preciso de um amante (preciso de um amante, preciso de um amante)
I need a lover, I need a lover (I need a lover, I need a lover)
Eu preciso de um la, la, la, la, la, la, la, la-la
I need a la, la, la, la, la, la, la, la-la
Eu preciso de um amante, preciso de um amante (preciso de um amante, preciso de um amante)
I need a lover, I need a lover (I need a lover, I need a lover)
Todo mundo está procurando alguém, alguém para levar para casa
Everybody's looking for somebody, for somebody to take home
Eu não sou a exceção, sou uma bênção de um corpo para amar
I'm not the exception, I'm a blessing of a body to love on
Sim, não estou aqui para fazer amigos
Yeah, I'm not here to make friends
Não, não estou aqui para fazer amigos
No, I'm not here to make friends
Porque não estou aqui para fazer amigos
'Cause I'm not here to make friends
Eu preciso de um amante, preciso de um amante (preciso de um amante, preciso de um amante)
I need a lover, I need a lover (I need a lover, I need a lover)
Eu preciso de um la, la, la, la, la, la, la, la-la
I need a la, la, la, la, la, la, la, la-la
Eu preciso de um la, la, la, la, la, la, la, la-la
I need a la, la, la, la, la, la, la, la-la
Eu preciso de um la, la, la, la, la, la, la, la-la
I need a la, la, la, la, la, la, la, la-la
Eu preciso de um amante, eu preciso de um amante
I need a lover, I need a lover
Eu preciso de um la, la, la, la, la, la, la, la-la
I need a la, la, la, la, la, la, la, la-la
Eu preciso de um amante, preciso de um amante (preciso de um amante, preciso de um amante)
I need a lover, I need a lover (I need a lover, I need a lover)
.。.:*☽*45 - Eu não sou um dragão *☾*:.。.
PDV Lance.
Esse é o terceiro treino depois da discussão com Mia. Ela continua tentando arrancar informações minhas no meio das conversas, o que me prova que ela definitivamente está na guarda certa. Só lhe falta treinamento para ser mais discreta. Mas o instinto está todo aí. Ela está investigando todos que conhece, fazendo perguntas, buscando descobrir mais e mais informações.
- Foi um treino divertido… - Ouço a voz cansada dela comentar.
- Talvez eu deva exigir mais de você. - A vi levantar as mãos e então se jogar na grama fofa em um teatro exagerado.
- Divertido… - Ela fala ofegando de maneira falsa agora. - Mas estou acabada. Você me destruiu.
Sorrio diante do esforço dela, mas já decidi que posso exigir mais. O corpo dela reage muito bem ao treino, obviamente ela tem uma resistência física alta e, honestamente? Parece já ter sido treinada antes. É quase como se um excelente lutador, com ótimos reflexos estivesse enferrujado depois de anos, talvez décadas sem lutar. O corpo se lembra e reage rápido em resposta. Reconheço diversos movimentos e seu estilo de luta não me é estranho, mas não consigo imaginar como poderia conhecer quem a treinou, e não me ocorre nenhuma ideia. Mas ela precisa de mais músculos. O que, para minha infelicidade, causará o emagrecimento dela. Mia é linda como é, cheinha. Sem perceber, dou um suspiro triste ao pensar nela com um corpo mais musculoso e magro. Ela continuará linda, mas não mais macia como é hoje.
- Bem melhor agora… - Resmungo baixo comigo mesmo.
Já estou me preparando para ir embora depois de recolher os equipamentos que usamos quando ouço a voz dela suave, gentil e um pouco aguda me chamar.
- Lance?
- Sim? - Me viro e a encontro apoiada nos cotovelos, um ar de dúvida nos olhos.
- Você tinha um irmão, não tinha?
Encaro ela por alguns segundos, identificando traços do seu nervosismo. Aceno que sim com a cabeça. Ela se senta no chão e finge estar relaxada, acariciando a grama.
- Como ele era?
Por que ela quer saber?
- O nome dele era Valkyon. Você já leu sobre a história de Eldarya?
Ela abaixa os olhos e balança a cabeça informando que sim.
- É o motivo de você estar irritada comigo naquele dia?
Ela suspirou e confirmou novamente, sem graça. Pelo menos está sendo sincera. Me sento ao seu lado e me lembro do meu irmão.
- Ele era muito introspectivo e calmo. E generoso. E tinha uma alma extremamente generosa. Em excesso até.
- Por que você fez tudo aquilo no passado?
Suspirei.
- Medo.
- Medo? - Ela me olhou confusa.
- Sim, medo. Quando descobri sobre os dragões e que eu e meu irmão éramos os últimos da nossa raça, eu tive medo. Medo da solidão, medo do futuro, medo da responsabilidade.
Percebi pelo olhar dela que não fazia sentido. Toquei seu rosto gentilmente e esclareci:
- Quando deixamos que o medo assuma o controle, ele corrói o que há de melhor em nós e nos tornamos monstros. Meu medo foi tão assustador que, para me esconder dele, de forma torta e confusa, e sem sentido nenhum, o concretizei.
Senti sua mão em meu braço, acalentador.
- Deixei a raiva assumir, como se ela pudesse ser mais forte, quis destruir tudo que tinha causado a destruição dos meus pais e meus antepassados. Cacei os que caçaram os descendentes dos dragões. Sem perceber nem me dar conta, me tornei exatamente o tipo de ser que causou dor aos meus antepassados. Me tornei o monstro contra o qual meu pais lutaram contra, o motivo do sacrifício deles. Foi preciso ver meu irmão morto, estar em face do meu maior medo, para finalmente entender que ao lutar contra meu maior medo, eu o concretizei com minhas próprias ações.
- Lance, eu sinto muito. - Seus lindos olhos cinzentos me encararam úmidos e cheio de pesar.
- Tudo bem. - Sorri para ela. - Meu maior medo era ficar sozinho no mundo. Me tornar o último dos dragões. Que ironia que eu tenha provocado justamente ele, não?
Encarei o céu com tristeza e senti os braços do pequeno dragãozinho me envolver. Devolvi o abraço e aspirei seu perfume. Aquele cheiro doce e cítrico, como uma fruta doce e ácida. O perfume dela nunca era forte, sempre exigia atenção para ser sentido, leve, alegre, suave e elegante, e ainda assim marcante. Inspirei novamente e senti um novo cheiro, levemente diferente, mais saboroso excitante. Imediatamente pensei que ela estava ovulando. Espera. Supreso, me questionei de onde tirei essa informação. Inalei profundamente os cabelos negros cheios de cachos macios e tive certeza que ela estava ovulando. O olfato de dragões é sensível, mas não tanto. A imagem de Mia grávida, carregando um filho meu invadiu minha retina rapidamente, e se foi com a mesma velocidade, pausando minha respiração por uma fração de microssegundos.
- Como você lida com tudo isso? - A pergunta dela me desviou a atenção.
- Ele se foi há sete anos, Mia. - Acariciei seus cabelos macios. - Desde então eu vivo o meu destino, o que eu mesmo construí. Imagina minha felicidade quando senti sua aura?
- Minha aura? - Ela levantou a cabeça e me encarou, com um olhar interrogativo.
- Dragões reconhecem outros dragões pela aura. Eu senti a sua a muitos quilômetros de distância.
Vi seu olhar se desviar do meu. O que ela estava escondendo de mim? Achei que esse seria um momento de honestidade.
- Eu não sou um dragão, Lance. Falei sério aquele dia. Depois que você disse que eu era um dragão, fui à biblioteca e li sobre dragões e aengels. Eu não sou dragão.
- Como você pode ter tanta certeza? - Perguntei com o coração apertado, mas sem soltá-la dos meus braços. Eu tinha me agarrado à esperança de não ser o último. - Você não sabia que era faeliana até esses dias.
- Eu vi que dragões nascem de ovos, correto? - Assenti. - Eu não nasci de um ovo. Eu tenho fotos e vídeos meus como bebezinho. Bem... tinha. E dragões já nascem um pouco mais desenvolvidos. Quando saem dos ovos, parecem crianças de cerca de dois anos, que caminham e falam. Mas o mais importante, é que no livro que li, um dragão nasce do ovo sabendo que é um dragão. Eu não saí de um ovo. Me desculpe.
Ela parecia realmente triste em me dar a notícia. Senti minhas frágeis esperanças serem destruídas. Mas a aura dela. Essa aura potente e intensa de dragão que ela carrega, que me permite saber exatamente onde ela está a cada minuto do dia, o que significa? E ela não consegue mentir para mim, nem eu consigo mentir para ela. Essa é uma característica dos dragões puro sangue. A potência da aura dela, é de dragões puro sangue. Eu li no grimório de dragões. Eu sempre consegui me esconder do meu irmão por sempre o enxergar. Exige treino para ver auras e Valkyon nunca se dedicou a treinar como dragão. Descendentes, mesmo diretos, tem aura fraca, vista a apenas alguns metros, e eles conseguem mentir uns para os outros.
- Você não sente minha aura? Nem uma sensação de reconhecimento ao me encontrar? - Perguntei já sabendo a provável resposta.
- Não.
A memória dela poderia ter sido apagada? Com uma magia tão forte a ponto dela poder negar sua natureza diante de outro dragão? Ou ela realmente não era um dragão?
.。.:*☽*46 - Festa no Jardim *☾*:.。.
PDV Lance.
Durante a semana dormi bem e sem pesadelos depois de um bom tempo. Ao mesmo tempo, aos poucos, me dei conta de que eu matei alguma coisa a sangue frio. Mas não me sinto realmente mal. Não gosto de ter matado, mas sinto que era o certo a fazer. Aquela coisa é má. E realmente matei? Mas eu preciso ter certeza. Preciso pesquisar sobre ela com mais afinco. E asas? Olhei minhas costas e não vi nada além de duas marcas de onde as asas saiam. Mas sinto meu corpo diferente, consigo sentir minhas costas inteiras diferentes.
Nossa semana já tem uma rotina estabelecida e eu gosto dela. Acordamos, tomamos café da manhã juntos, nos separamos para os treinos, almoçamos juntos. Claude volta a treinar, medito com Leiftan e treino com Lance. Aliás sobre o Lance, definitivamente sinto algo por ele. Será por isso que me irritei tanto quando descobri o que tinha acontecido? Faz sentido. Já li sobre isso. E olhando minhas anotações sobre como me sinto em relação a ele, me sinto preocupada. Estou transferindo emoções? Projetando? Ou realmente desenvolvendo algo? Ele me acalma, mas me deixa ansiosa, não ele em si, mas o que eu sinto por ele. E acabo ficando irritada comigo mesma por me sentir assim com ele. Acho que discuti com ele todos os dias de treino, ao mesmo tempo não consigo parar de conversar e me sentir fascinada com a forma como ele vê o mundo e a vida. Ele deve pensar que eu sou cabeça quente, quando na realidade eu não sou assim. Mas quando vejo, já estou brava comigo, e tentando afastá-lo.
Fecho meu caderno e suspiro. Finalmente chegou o final de semana e a festinha que teria no Jardim de Música, e hoje é dia de descanso, e nada de treinos. Dei um jeitinho de conseguir uma roupa seminova no leilão que acontece por aqui diariamente. Sempre me pergunto de onde vem tanta roupa. Comprei ela pensando nessa festinha. Uma saia azul marinho, rodada, pulseirinhas e um colar. Combinou bem com minha camiseta branca e meu tênis azul escuro.
Claude também está lindo, em uma camisa diferente, com partes semitransparentes, geométricos, como eu nunca vi em uma roupa masculina, mas que valoriza o físico dele. A camisa branca combina com a calça azul marinho, ajustada no corpo, que deixa o bumbum dele extremamente redondinho e empinado, mas de uma forma bem masculina e gostosa. Eu estou babando nele, e olha que é meu melhor amigo. Eu e ele parecemos um desses casais que combinam a cor da roupa, mas na realidade foi na sorte. Eu queria uma saia na cor preta ou rosa, mas pagaram muito mais do que eu podia pagar, então fiquei com essa azul. Já a roupa masculina não é tão disputada, mas o azul é a cor predileta do Claude.
- E aí, vamos, gata?
- Vamos.
Saímos rindo para o Jardim de Música esperando não chegar cedo demais. Mas estávamos precisando de uma festa. Sim, nós éramos festeiros na Terra, e estávamos sentindo falta de farra. Eu estava insegura por não ser uma rave nem uma danceteria, mas aqui eu também não precisava me preocupar com as emoções de ninguém, então tudo bem. Quando chegamos no jardim de música, o local estava com muita gente quando chegamos. Corremos para a mesa de comes e bebes e pegamos o que parecia ser uma cerveja e brindamos.
- Uou! – falei depois de um gole. - Caramba!
- Forte? – ouvimos a voz grave do Solomon perto de nós.
- Demais – me virei respondendo e dei de cara com Lance. Céus, ele estava lindo. A roupa um pouco diferente. Calça branca, mas de um tecido que parecia mais nobre, mais estruturado, e uma camisa de manga comprida simples e azul, só que de botões e gola assimétrica, e a velha e boa adaga na cintura. Não consegui deixar de notar que eram as cores exatas da minha roupa. – Oi, Lance, não tinha te visto.
- Mia, Claude.
- Fala, Lance. – Claude já estava íntimo do chefe. – A cerveja de vocês capricha no álcool, hein?
- Nós gostamos de álcool – Solomon respondeu rindo. A lagartixa ria!
- Vai ser ofensivo se eu misturar água nisso aqui? – perguntei olhando desconfiada em volta.
- Não, mas ela vai ficar insossa. Não seria melhor pegar uma bebida mais suave? – Lance me perguntou.
- Eu gosto de cerveja...
- Karuto tem algumas cervejas mais suaves para eventos, mas nós não servimos aqui pois a maioria prefere as mais fortes. Você quer provar uma mais suave?
- Quero! – Entreguei meu copo sem pensar duas vezes para ele. Quando me toquei, ele já tinha pego o copo.
- Vem comigo.
Seguimos para fora do Jardim de Música, em direção ao Salão de Jantar.
- Você está muito bonita.
- Obrigada. – senti meu coração acelerar. Ele me achou bonita? Lembrei que ele não conseguia mentir para mim e tive vontade de dar pulinhos. Baixei o rosto para esconder meu sorriso imenso. - Nossa, foi muito difícil conseguir essa roupa, os leilões aqui são acirrados, eu e Claude precisamos nos organizar… - Comecei a explicar.
E gastei todo o caminho contando as peripécias que eu e Claude fizemos para conseguir comprar nossas roupas, pois queríamos estrear um visual novo.
- No final eu queria preto, eu gosto de roupas pretas, sabe? Mas azul não era tão disputado, então fiquei com azul, eu também gosto muito de rosa e de vermelho, eu também amo vermelho.
- Essa cor fica muito bem em você, valoriza a cor dos seus olhos.
- Obrigada. E combina com sua roupa. – De onde tinha saído aquilo? Minha boca não tinha controle? – digo, é uma coincidência, mas realmente combina, né? – Caralho! Alguém enfia uma rolha na minha boca! - Já chegamos?
- Sim. Espera um pouco. – ele procurou alguma coisa enquanto eu respirava fundo. Eu tinha falado sem parar o caminho todo e ainda soltava aquelas pérolas? O que estava acontecendo? Eu deveria estapear a minha cara para aprender a controlar minha língua grande.
- Aqui está, o que você acha? – ele me ofereceu um copo.
Tomei um gole grande rápido, sem pensar muito, nervosa. Levei um susto com o sabor delicioso que invadiu meus sentidos. Aquela bebida era um deleite. O cheiro era leve, uma mistura de cerveja com champanhe e suco de frutas vermelhas, a própria cerveja tinha uma espuma leve, rosada, levemente adocicada. Olhei o Lance surpresa e ele estava sorrindo. Tomei mais um gole com calma dessa vez, deliciada com aquela maravilha. Sim, aquela bebida é infinitamente superior àquela bebida amarga e puro álcool que estava sendo servida. Ela sozinha tinha me acalmado e agora eu estava sorrindo feliz.
- Gostou? – ele me perguntou sorrindo, como se não fosse óbvio.
- É a bebida mais perfeita que eu já tomei. Como você adivinhou?
- Você gosta de doces e de frutas vermelhas. Essa é uma cerveja espumante de frutas vermelhas, feita para acompanhar sobremesas, logo é mais adocicada. Imaginei que você gostaria. - Ele sabia do que eu gostava?
- Ela é perfeita. Deve ser a melhor bebida que já tomei na vida.
- Excelente. Vou levar um galão pequeno. Duvido que alguém além de você queira tomar, mas talvez alguém se interesse.
- Todo mundo aqui toma apenas bebidas tão fortes?
- Faeries são muito resistentes ao álcool, sabia?
- Mas eu sou faerie também...
- É verdade. Mas você não curtiu o nível de álcool da nossa cerveja... Paladar, talvez?
Pensei um pouco.
- Provavelmente. Eu sempre gostei de bebidas leves. E eu também não gosto de perder o controle, como pessoas alcoolizadas costumam perder.
- Faz sentido. Vamos voltar?
- Vamos.
Ele segurou um galão em um ombro e me deu o outro braço, o qual agarrei depressa demais. Voltamos silenciosos, e quando chegamos, reparei que ele estava bebendo no meu antigo copo, e eu sabia disso por causa da marca do meu batom na borda, onde ele estava bebendo, distraído.
- Hey, Mia, vamos dançar? – ouvi o Claude me chamar enquanto eu encarava essa descoberta desconcertante.
- Oi?
- Dançar, está tocando tango.
- Tango? – Me concentrei na música. Realmente, era tango. Meu olhos foram atraídos para a boca do Lance novamente, como se os lábios dele tivessem um imã me atraindo.
- Eu seguro para você. – Ele estendeu a mão para pegar minha bebida, e senti seus dedos tocarem os meus. Acho que a música estava me influenciando, pois senti meus pêlos se arrepiarem e o arrepio percorreu meu corpo, me obrigando a disfarçar pulando para o lado do Claude e indo para a pista de dança, rindo nervosamente.
Começamos a dançar e eu estava no automático, sem tirar da mente a boca dele e meu batom. Meus olhos buscavam onde o Lance estava de tempos em tempos, sem um objetivo claro, eu apenas não conseguia parar de olhar. E quase todas as vezes que o encontrei, ele olhava para nós. Mas logo a música me contagiou e mergulhei na energia da festa. Eu odiava dançar antes de aprender, como a raposa que odeia as uvas verdes. Mas assim que aprendi, me tornei um ser sedento por música, dança e festas. Eu e Claude dançamos uma ou duas horas, passando pelo Lance e Solomon rápidos apenas para engolir alguns goles de bebidas, até pararmos finalmente para descansar, suados e ofegantes. Lance e Solomon estavam conversando, mas pararam quando chegamos.
- Está explicado a agilidade de ambos. Vocês dançam muito bem! – Solomon comentou com um sorriso no rosto.
- Obrigado!
- Obrigada!
Respondemos juntos fazendo uma mesura palhaça. Peguei minha bebida com o Lance, que manteve meu copo cheio, e bebi da cerveja maravilhosa.
- Vocês não dançam? – Claude perguntou para eles.
- Raramente. Preferimos apreciar o show. – Solomon respondeu rindo. – Além do mais, os reptilianos não são conhecidos pelo talento na dança.
- Todo ser carrega em si o bichinho da música, Solomon. Alguns apenas tem um bichinho que dança de um jeitinho especial.
E eu e Claude começamos a dançar esquisito, ora juntos, ora separados.
- Vocês dois são loucos. - Solomon comentou sem graça.
- Dança com a gente. – Claude pegou um braço dele. Eu notei um brilho diferente nos olhos dele. Seria possível que o Claude realmente estivesse interessado no Solomon?
- Eu não sou bom.
- Claro que é. – peguei outro braço dele e dei meu copo de cerveja de volta para o Lance.
- Está bem, mas não reclamem depois.
E ele começou a dançar, realmente esquisito e desconjuntado. Como um peso pesado dançaria. Nós já estávamos altinhos pela bebida e euforia de festejar. Nos unimos a ele com passos que tentavam imitar os dele, o que nos tornou a atração da festa em pouquíssimos segundos, trazendo pessoas tímidas para a pista, alguns que achavam que não dançavam “bonito”. Foda-se dançar certinho. Após algumas músicas, deixei Claude e Solomon dançando e fui até o Lance.
- O que uma garota precisa fazer para te convencer a dançar, Lance?
- Um simples convite basta.
- Simples assim? – Olhei fazendo uma cara de surpresa, olhos o mais arregalados que consegui.
- Sim. – Ele levantou uma sobrancelha e me deu um sorriso torto, de um lado só. Bonito.
- Me dê dois minutos para respirar, e então vou te convidar, ok? Reserve a dança para mim, caso alguém tente te convidar antes.
- Certo.
Parei ao lado dele um pouco ofegante, e não era apenas cansaço se eu fosse admitir, e descansei um pouco. Tomei o resto da cerveja no meu copo e então me virei para ele como se fosse um cavalheiro.
- Me dá o prazer dessa dança, Milorde?
Ele fez uma mesura como se fosse uma dama aceitando o convite, me fazendo rir. Então puxei a mão dele sobre o meu ombro, me virei de costas e o puxei em direção à pista dos faeries efervescentes. Aquele pessoal sabia fazer uma festa, eu teria que confessar. Senti ele se aproximar quando entramos na multidão. Parecia uma rave, mas ao som de outras músicas e passos muito variados. Quem queria dançar os passos certos estava nas bordas. Os louquinhos foram para o centro e se amontoaram, impedindo que alguém notasse os passos estranhos que eram feitos. A noite seguiu animada e não havia muitas luzes iluminando o local, o que deixava todo mundo em uma espécie de meia luz.
Olhei sobre os ombros sorrindo e vi os olhos do Lance me seguindo atentos, como duas jóias azuis me seguindo, seu corpo bem próximo ao meu, ele parecia curioso, sem pensar em nada, parei e dei um passo para trás, colando meu corpo ao dele. Estava sedenta há dias por algo que finalmente me sentia confiante para ter. Peguei suas duas mãos, fiz ele me abraçar e sem me importar com nada, comecei a dançar, feliz. Sentindo o corpo dele colado no meu, ondulei meu corpo ao som de algum som que eu não fazia ideia do que era e não me importava. Só queria sentir seu corpo firme. Céus, eu estava pensando nisso desde o dia que tinha acordado naquele barco e visto ele. Soltei suas mãos, e subi as minhas acariciando seus braços enquanto levava minhas mãos até seu pescoço, enfiando meus dedos em seu cabelo, na nuca, e puxando levemente. Senti suas mãos paradas na minha cintura. Por que ele não se mexia? Ele não sabia dançar? Eu queria mais dele, queria suas mãos em mim, me apertando. Na Terra qualquer homem estaria me agarrando por menos.
Do nada ele me soltou, me deixando sozinha na pista. Meu corpo ansiando por mais. Eu queria tanto dançar com ele, e ele não parecia querer dançar comigo. Meu cérebro embotado por bebida e euforia não conectava as ideias direito. Será que era só eu interessada? Alguns segundos se passaram e eu me sentia confusa e perdida. Comecei a ficar triste quando senti uma mão na minha, olhei e era o Claude, me chamando para cantar. Nós nos apresentamos com músicas da Terra, que o pessoal pareceu curtir. Em pouco tempo decidi ir embora para o quarto, tentar dormir. Era a primeira vez que eu desejava que um homem me tocasse daquela maneira. E tinha sido rejeitada.
.。.:*☽*47 - Novos Exames *☾*:.。.
PDV Mia.
Dormi mal pensando no Lance, e sonhei que ele brigava comigo ou tinha sonhos eróticos com ele, algo que nunca tive com ninguém. Acordei com calor, dor de cabeça e a súbita consciência de que, para o Lance, eu era comprometida com o Claude!
- Burra!
Eu tinha dançado com ele, me esfregado nele como um ser faminto. O que ele deve estar pensando de mim? Que vergonha! Enterrei o rosto no travesseiro gritando e pensando em uma forma de desaparecer.
- Porém eu não sou comprometida! – Disse para mim mesma me sentado de supetão e sentindo minha cabeça latejar com essa ação, me fazendo parar, temporariamente de respirar e focando 100% na dor latejante que parecia querer explodiar o topo da minha cabeça e atrás dos meus olhos. - Caralho que dor de cabeça infernal. Preciso visitar a enfermaria.
Apoiei a cabeça entre as mãos, massageei a nuca e tentei convencer a mim mesma que tudo era uma questão de esclarecer as coisas. Eu era uma mulher solteira, ele só não sabia disso, oras. Nesse instante ele deveria achar que eu era uma desavergonhada sem caráter, mas eu podia esclarecer isso, certo? Certo. Eu podia, tinha certeza.
Com esse pensamento em mente, vesti um short, uma camiseta e um tênis. Coloquei um óculos de sol também para diminuir a incidência de claridade nos meus olhos e fui para a enfermaria. Chegando lá percebi que não era a única a sofrer com os excessos da festa, outras pessoas também estavam ali. Aguardei minha vez até que a Ewelein me atendeu e me passou uma medicação para ressaca, e fiquei surpresa com a rapidez com que a poção fez efeito. Em menos de quinze minutos a dor de cabeça tinha passado, assim como o leve enjoo que tinha começado no caminho para a enfermaria. Depois disso corri para o salão para comer. No caminho, encontrei a Huang Chu e decidimos tomar café da manhã juntas.
- Como estão as coisas, Mia?
- Estão bem. Me sinto animada com o treino e aprendendo muito sobre a guarda. Eldarya é muito interessante!
- Que bom que você está gostando daqui! Fico muito feliz em saber que está gostando da sua guarda, nem todos se adaptam tão bem.
- Sério?
- Sim. alguns não conseguem se adaptar, e ficam treinando com outra guarda ao invés de se esforçarem para aprender as funções da guarda em que foram alocados.
- Mas neste caso não seria mais fácil realocar eles? Ou fazer um novo teste?
- Estou trabalhando para convencer meus colegas a aceitarem que o teste das guardas não é infalível.
- Isso me parece a ideia de vestibular na Terra.
- Vestibular?
- Sim. Vestibular é uma prova, como o Teste das Guardas, que os jovens fazem para entrar em uma universidade. Essa prova é encarado por muitos como um teste definitivo que vai definir a sua vida. Se você passar, ela define toda sua carreira profissional, se você não passar você é encarado como um fracasso social.
- Como foi para você?
- Eu fui muito bem, sempre fui muito estudiosa, tanto que virei professora, mas sei que pode ser uma tortura para muitos. Tive amigos e tenho alunos para quem o vestibular foi uma verdadeira tortura.
-Como assim?
- Ter algo definindo sua vida assim é pesado. Alguns levam muito tempo para entender que um teste não te define como pessoa, pois um teste não deveria definir a vida de ninguém. Pessoas mudam com o passar do tempo e com as experiências que nos marcam. Nada na vida é definitivo, um teste também não deveria ser.
- Isso é muito sábio e acho que vou usar esses argumentos para a próxima reunião da reluzente.
Conversamos um pouco sobre minha experiência com o vestibular na Terra. Huang Chu era uma pessoa fácil de conversar e conviver. Nos despedimos e segui para a área da Sombra para estudar. Minha mente estava confusa, com tudo que tinha acontecido nos últimos dias, mas especialmente ontem. Por isso eu, depois de estudar e seguir para o local de meditação mas tudo que eu conseguia, era pensar na merda que eu tinha feito, somado ao fato de ter matado algo e não me sentir mal com isso, e isso ser o que me fazia sentir mal.
- Merda! – Sai da minha posição e quase trombei no Leiftan que estava se sentando do meu lado, silencioso.
- Dia difícil? – ele sorriu para mim.
- Desculpa...
- Tudo bem. Quer conversar?
Olhei para o Leiftan tentando entender o motivo pelo qual eu confiava nele. Não havia nenhum. Eu simplesmente confiava. Ele havia me contado sobre seu passado, e eu precisava conversar com alguém. Claude estava ocupado com o lagartão dele.
- Na realidade sim. – ele ficou quieto me olhando. – Lembra a noite em que a Lua ficou vermelha? E teve aquele pandemônio no corredor das guardas? Alguns dias atrás?
- Sim.
- Naquela noite, uma coisa estranha aconteceu. – Me virei para ele, buscando, sei lá, conforto? Compreensão? – Eu acordei durante a noite, ouvindo os gritos, mas não foram os gritos que me acordaram, sabe? Foi uma mulher, no meu sonho. E não é a primeira vez que eu sonho com ela... Não lembro o nome dela, mas sempre a chamo de Albina, pois ela tem cabelos brancos, olhos sem pupilas nem íris.
Ele continuava em silêncio, atento, com um ar gentil nos olhos.
- Eu vi as pessoas no corredor, vi um dragão enorme no corredor, acho que era o Lance, mas corri para o meu quarto sem saber o que fazer. Vi a Lua crescer e se tornar vermelha, e ela me encheu de fúria, sabe? Como se ela me chamasse para uma batalha. Era uma sensação estranha, de raiva, de fúria. E então eu me dei conta, que tinham asas nas minhas costas, duas longas asas, maiores que eu, quase transparentes, mas firmes e fortes, e vermelhas. Eu senti nos meus músculos e ossos, como elas estavam ligadas no meu corpo.
Eu toquei minhas costas enquanto falava, lembrando a experiência de ter asas, o quanto eu sentia que o correto era ter elas, e não como eu estava agora, sem elas.
- Eu estava apreciando-as quando ouvi a voz da mulher me mandar capturar e destruir algo. Era a mesma ordem que tinha me acordado. De alguma maneira eu sabia exatamente o que fazer. Corri para janela e vi sair uma sombra, de onde os guardiões estavam, mas eles não pareciam vê-la, ou estavam mais preocupados com o que acontecia lá dentro. Era a mesma que estava rodeando a Elise, eu tenho certeza. Então eu a capturei. Em seguida a mulher me ordenou matá-la, e eu fiz sem pensar, Leiftan. Eu sabia como fazer e fiz. Sem nem pensar.
Abracei minhas pernas e olhei o horizonte, pensativa.
- Eu queria dizer que fiquei arrasada, sofrendo. Eu nunca matei nada na vida. Exceto uma baratinha ou outra. E mosquitos. Enfim, simplesmente fui para a cama, me deitei e voltei a dormir, como se capturar e matar aquela criatura fosse a coisa mais normal do mundo. Nem pesadelo tive, e olha que costumo ter pesadelos quase toda noite. Mas desde que matei a criatura estou dormindo como um anjo. Achei que era um sonho estranho, sabe, mais um. Mas eu ainda sinto nas minhas costas. E tem o pó que saiu das asas. Eu guardei ele em um vidro no meu quarto. São provas de que foi real.
Nesse instante entendi que o Leiftan era um excelente ouvinte. Aquele tipo de pessoa que realmente escuta quando falamos, não apenas finge. Pois eu falei e falei e ele me ouviu atento e calmo, sem me interromper.
- Imagino que você ainda não conversou com mais ninguém sobre isso? – balancei a cabeça negando. – Como você se sente agora?
- Que eu deveria me sentir mal, Leif. Eu matei algo. Mas não me sinto mal. Não me sinto nada mal. Será que eu sou uma psicopata?
- Você não se questionaria isso se fosse. Eu não sei o motivo de você ter feito o que fez, e nem você pelo visto, mas se martirizar não vai ajudar. Por que você não começa com o que você consegue controlar?
- Como assim?
- As asas. Você as sente. Converse com a Ewelein, faça um exame. Descubra mais sobre si mesma. Converse sobre esse sonho, essa mulher. Pode ser que isso ajude a entender quem você é, sua raça. No mínimo, colocar para fora, te ajudará a relaxar.
- Faz sentido.
- Conte com o apoio dos outros. Se você tentar carregar as coisas sozinha, você não dará conta.
Fiquei em silêncio. Eu carreguei meus fardos sozinha a vida toda. Não sabia ser diferente. Mas o que ele dizia, fazia sentido.
- E conte comigo sempre que precisar.
- Obrigada. – sorri para ele, que fez um carinho na minha bochecha. Me levantei e me espreguicei. – Vou fazer isso agora, vou conversar com a Ewelein.
- Excelente.
Abracei ele novamente e caminhei para a enfermaria. Eu estava certa de buscar o conselho do Leiftan, ele realmente era alguém em quem eu podia confiar.
- Olá, Ewelein.
- Entre, Mia. Sente aqui. Como você está?
- Bem. Mas eu preciso conversar sobre algumas coisas que aconteceram.
Contei a ela tudo que aconteceu, com todos os detalhes. Ela fez novos testes e Ewelein apenas me disse que minha saúde não tinha mudado. Mas eu tinha agora toda a estrutura física de um par de asas nas costas, mas que elas não eram visíveis. Fora isso, meus exames não apresentaram nenhuma alteração.
- Eu vou com você na Huang Chu para fazer alguns testes extras com magia, pode ser?
- Claro. Mas magia?
- Sim. Para tirar algumas dúvidas.
- Tudo bem então.
Fomos em direção do Laboratório de Alquimia e encontramos a Huang Chu, que ficou surpresa com o pedido da Ewelein mas fez os testes que ela pediu. Tentei fazer algumas receitas de alquimia, nas quais falhei terrivelmente. Mas eu nunca fui boa na cozinha, então já esperava. Afinal, alquimia me parecia ser um tipo de cozinha. Depois ela me passou ingredientes para uma magia de “arco-íris”, de acordo com ela, mas novamente não deu certo.
- Você pode ler em voz alta apenas a magia, Mia? – Huang Chu me pediu.
- Sem os ingredientes?
- Sim.
- Tudo bem.
Recitei em voz alta, e um lindo arco-íris se formou sobre a mesa de trabalho. Eu fiquei fascinada com a beleza.
- Eu fiz isso?
- Sim. É uma habilidade impressionante.
- Uau! Que legal. – olhei o arco-íris novamente.
- Se você tentar, pode mover o arco-íris. Basta imaginar que ele se move.
Eu o imaginei se movendo e fiquei abismada por ver o arco-íris se mover, obediente. Na hora me ocorreu que ele poderia aumentar e diminuir e imaginei. Percebi que ele respondia à minha imaginação e desejos. Inclusive se multiplicando. Senti uma felicidade intensa e uma conexão se estabeleceu em minha mente como um momento eureka. Eu fazia magia! Já tinha feito quando estava em coma, quando voltei, meu escudo devia ser magia! Dei um gritinho sentindo a excitação percorrer minhas células.
- Você aprende rápido. – Ewelein elogiou.
- Obrigada, - respondi com um sorriso gigante – isso significa que vocês sabem minha raça?
- Infelizmente ainda não. Mas temos mais pistas para pesquisar.
- Vou incluir treinamento comigo em magia no seu programa de estudos, tudo bem Mia? - Huang Hua perguntou.
- Com certeza! Isso é muito legal!
- Que bom que gostou.
Imaginei o arco-íris sólido e quando fui tocá-lo, ele era sólido!
- Vejam isso! Dá para tocar nele!
- Você é intuitiva com a magia. - Huang Chu comentou ao meu lado, uma expressão que eu só conseguia definir como um misto de analítica e satisfeita.
- Esse negócio obedece à minha imaginação se eu entendi bem. -Me expressei feliz, um pensamento me ocorreu, que me fez salivar.
- Exato. Mas tem limites. Não tente comer, ok? – Me alertou Huang Chu.
Fiz um cara culpada, pois era minha próxima tentativa. Ela lia mentes? Ou era óbvio o próximo passo?
- Nunca tente comer magia, os resultados são imprevisíveis.
- Certo.
Saí do Laboratório eufórica, louca para contar para o Claude sobre minha nova descoberta. Eu era capaz de materializar um arco-íris!
.。.:*☽*47 - Cada vez mais parecidas *☾*:.。.
PDV Lance.
Todos os dias a Reluzente se reúne no início do dia para alinhar as ordens gerais do dia. Usualmente são reuniões de quinze a vinte minutos, mas ao terminarmos o alinhamento, vi a Ewelein se apresentar para um tópico extra, e me dei conta que hoje teríamos uma reunião mais longa.
- Nós já observamos as similaridades entre a Mia e Elise antes, mas ontem essas similaridades se aprofundaram. - Senti meu coração se apertar. Algo aconteceu com ela? Alguma sombra? - Mia me buscou para conversar e explicar que, na noite do ataque da sombra, ela desempenhou um papel inesperado e desconhecido até agora.
Vi Nevra se mover desconfortável na cadeira, e todos nós nos colocamos em posição mais atenta.
- Naquela noite, Mia acordou com a movimentação no corredor. Durante a mudança da Lua, ela também foi influenciada, e descreveu as mesmas asas e a mesma roupa da Elise.
- Mesmo que tenhamos definido sigilo, alguém pode ter comentado, e depois ela sonhou? - Nevra comentou.
- Ela tem a mesma estrutura de asas nas costas, Nevra. E ela me apresentou uma prova.
Huang Chu apresentou um vidro até a metade, contendo um pó brilhante em prata furtacor.
- Mia entregou para a Ewelein esse pó, e disse que ele saiu das asas dela. Eu analisei, e é quase o mesmo pó que encontramos no quarto da Elise, e que saia das asas dela. A diferença é que o da Mia carrega mais maana que luar.
Aquela era uma prova impressionante. E me mostrava como Mia se afastava cada vez mais dos dragões.
- Naquela noite ela disse que ouviu uma voz dizer a ela que capturasse e destruísse a sombra. Então ela foi até a janela, viu a sombra, capturou e destruiu.
- Como ela fez isso? - Nevra perguntou em um tom de voz baixo. - Elise não soube como fazer naquela mesma noite.
- Ela me disse que não se lembra.
- Mas ela mentiu. - Explicou a Huang Chu. O que me fez engolir em seco.
- Sobre destruir a criatura? - perguntei, temeroso.
- Não, sobre não se lembrar como fez. - Huang Chu esclareceu. Nós conversamos depois, e pude perceber que ela não confia em nós o suficiente para dizer como sabe.
- Ela falou onde destruiu a criatura? - Nevra perguntou novamente. Seu tom de voz, o mesmo que ele usa para fazer sobre ameaças.
- Sim. E Ewelein me indicou a direção e eu consegui recuperar muito material. - Huang Chu explicou. - Mia parece ser muito mais habilidosa no uso dos raios de luar que Elise. Pelos quantidade de destroços que localizei, a criatura realmente foi destruída.
- Isso faz sentido… - Chrome disse distraído.
- Como? - Nevra perguntou para ele.
- É que ela tem feito muitas perguntas, aparentemente simples, mas todas parecem ter um objetivo comum, saber se somos confiáveis. Ela tem investido muito tempo nisso e tem lido livros básicos de história de Eldarya.
- Você está monitorando ela? - Huang Hua perguntou.
- Procedimento comum para novos recrutas. - Chrome deu de ombros. - O namorado dela, Claude, também faz perguntas, mas ele não é tão discreto, e se distrai fácil com os treinos. Elise é extremamente retraída e passa todo o tempo nas aulas ou lendo. Até o momento não fez nenhuma amizade.. Dos três recrutas, Mia é a que tem exigido mais atenção, pois embora seja muito comunicativa e extrovertida, nunca fala nada de si mesma, revelando ter cuidado com o que revela e faz a mesma pergunta de formas e para destinatários diferentes, como se quisesse comparar as respostas.
- Continue monitorando-a. - Huang Hua determinou. - Ela pode estar apenas determinada a saber se pode ou não confiar em nós, o que faria dela um típico membro da Sombra. - Ela encarou com um sorriso maroto o Nevra. - Mas se não for o caso, é bom estarmos de olho.
- Certo. Pode ser interessante que vocês saibam que ela também tem pesadelos e que Claude é quem costuma acalmá-la.
Pesadelos? Que tipo de pesadelos atormentam ela?
- Ela ainda não falou comigo sobre isso. - Ewelein anotou a informação. - Além das asas, Mia também lida com magia da mesma maneira que Elise. E ambas escutam mesma voz feminina que as orienta. E que Elise afirma não ter relação com Ofélia.
Não resisti a fazer uma careta diante daquela informação. Quem mais poderia ser? Alguma deusa? Se a história estava correta, deuses costumavam ser seres bastante temperamentais.
- Seu corpo também aumenta a emissão de maana ao lançar magia, e volta ao níveis normais pouco tempo depois. Ainda que seus níveis de maana sejam muito superiores aos de Elise. No dia a dia, os níveis de maana dela equivalem aos do Lance. - Fiquei curioso com essa informação. Dragões eram os seres com mais maana concentrada no corpo, até mais que aengels.
- E assim como Elise, ela também é incapaz de fazer alquimia e cozinhar. Algo no corpo delas as impede, mas ainda não identifiquei o quê. - Huang Chu complementou. - Novamente, Mia parece ter mais controle de suas habilidades que Elise, pois aprendeu magia de forma mais rápida e intuitiva. - A fenghuang fez uma pausa antes de continuar. - Há uma última questão, a pronúncia do idioma original por Mia. É excelente. Ela lê e fala com fluência, uma que nunca vi igual.
- Você a questionou? - Nevra perguntou.
- Não. Conhecendo o perfil desconfiado dela, preferi não assustá-la. Eu tive que ensinar as palavras do idioma original para Elise, mas Mia já conhecia, e leu a magia de primeira, sem que eu sequer a ensinasse. Pelo que observamos, ela nem se deu conta, e fez isso no automático.
- É uma habilidade ou ela estudou? - Refleti em voz alta.
- É uma excelente pergunta. - Nevra enfatizou a palavra excelente.
- Ou a ausência da sombra a deixe mais predisposta a acertar. - Huang Hua comentou.
- É uma possibilidade que vou testar.
- Agora precisamos entender: por que Mia tem mais controle das habilidades? E por que ela vê as sombras que afligem Elise? E a aura de Mia?
- Não apenas aura. Ela não consegue mentir para mim. Nem eu para ela. - Expliquei.
- Essa é uma característica exclusiva de dragões, Lance. E apenas dragões puros têm essa habilidade. - Huang Hua comentou pensativa.
- Exatamente. - Afirmei.
- Até agora. - Huang Chu falou. - Mia obviamente não parece ser um dragão. A não ser que ela seja um tipo de dragão não descrito na literatura.
Senti a esperança surgir teimosa no meu peito. Um dragão não descrito na literatura? Não seria a primeira vez que uma raça não é perfeitamente descrita. Mas logo a esperança se arrefeceu.
- Ela compartilha características demais com Elise. E não sinto nem aura, nem tenho problemas para mentir para ela.
- Você mentiu para ela? - Nevra me perguntou.
- Sim, para testar. - Expliquei. - Enganei ela em um treino, dizendo que já havia acabado, mas continuei. Eu não consigo fazer o mesmo com a Mia. Além disso, a Elise também já mentiu para mim, ao fingir não entender o que eu falava, quando nos conhecemos.
Todos entenderam claramente. Aparentemente, Mia compartilhava as habilidades de Elise, mas o contrário não era verdadeiro.
- Por acaso, a Srta. Mia também sente as sensações das outras pessoas? - Feng Zifu, fez a pergunta que já ia levantar.
- Se sente, ainda não revelou. Mas com todas essas semelhanças, eu aposto que sim. - Chrome comentou.
- Eu tenho que concordar com o Chrome, especialmente por um comentário que a Mia deixou escapar durante o teste com a sombra da Elise… - Ewelein parecia estar se lembrando de algo.
- O quê? - Nevra parecia bastante curioso com essa Elise.
- Ela disse que sentia o que a sombra sentia. - Aquela era uma informação que não podia ser ignorada. Ela sentia aquela sombra tenebrosa. Não apenas via?
- Eu me pergunto por que ela não matou a sombra antes. - Chrome fez a pergunta que rondava a mente de todos.
- Talvez ela não soubesse como. Talvez ela não soubesse o poder da sombra. Ou não saiba que a Elise é parecida com ela. Ou esperava que a Elise fizesse isso. São muitas possibilidades. Eu não vejo maldade na Mia quando a sondo, mas ela é desconfiada, e arisca. Elise não é diferente, mas foi obrigada a confiar em nós, por força das circunstâncias. As duas vêm da Terra, onde levaram uma vida de segredos. Talvez seja hora de convocar Mia a ajudar Elise. Pelo que entendi, as duas não são amigas no dia a dia, e não parece que se conheciam antes de vir para Eldarya, ainda que vivessem no mesmo país. A descrição do país delas, o Brasil, me pareceu continental. Se Mia sabe usar suas habilidades, é hora dela ensinar a Elise, para que ela saiba se defender. Talvez isso ajude Mia a confiar em nós. E Lance, - Huang Hua olhou diretamente para mim. - sonde Mia sobre as habilidades dela. Ela não conseguir mentir para você é uma vantagem tática.
Concordei com um gesto. Eu também queria entender melhor toda essa história.
.。.:*☽*48 - Preparativos para o Baile *☾*:.。.
PDV Elise
- Um baile? - Questionei.
- Koori não te falou? - Mia me perguntou.
- Acho que falou, mas devo ter esquecido.
- Pois ela está preparando um baile, e está bem próximo.
- Eu não tenho nada para usar em um baile. Quão formal será?
- Bastante pelo que vi.
- Ai. – gemi. – Eu preciso arranjar uma roupa rápido.
- Você pode verificar no Leilão ou na Loja da Purriry, se bem que ela deve estar lotada de encomendas a essa altura.
- Eu vou correr atrás disso.
Eu nunca imaginei que teria que me virar para conseguir algo tão banal quanto uma roupa de baile aqui em Eldarya. Mas no final das contas, eles são como nós. Eu fiquei sabendo da festa agitada que teve recentemente no QG, com música até de madrugada. Nunca gostei muito de festas, mas estou curiosa com a ideia de um baile formal, como será que eles fazem? O que eu devo vestir?
Decidi ir até a Purriry, mas ela não está mais aceitando encomendas e os vestidos prontos estão infinitamente além das minhas condições financeiras. Terei que apelar para o Leilão, algo que nunca fiz na vida. Eles têm leilões regulares promovidos pelos Purrekos, peguei a agenda e decidi comparecer a todos que estão programados. Estava a caminho do primeiro quando encontrei o Nevra.
- Olá, Elise.
- Nevra.
- Onde você está indo?
- Ao leilão.
- Posso te acompanhar?
- Claro.
- Você vai em busca de algo específico?
- Quero uma roupa para o baile que a Koori está organizando.
- Por que não encomenda na Purriry?
- Primeiro ela está cheia, segundo só tem um vestido pronto, terceiro está muito caro. Espero conseguir algo mais em conta no Leilão. Pelo menos a Mia me disse que conseguiu um vestido lindo e mais em conta lá.
- Sim, dá para conseguir coisas interessantes no Leilão.
- Excelente. Vou verificar. Pelo tempo que eu tenho, é melhor eu achar algo.
- Quer companhia?
- Se quiser, pode me acompanhar. – o que ele queria?
Caminhamos até o leilão e cheguei antes do horário marcado, conseguindo um bom lugar. Eu e Nevra nos sentamos esperando o horário. Vi a Mia e o Claude chegarem, com certeza em busca de algo também e os chamei para se sentarem conosco.
- Você veio! – Mia comemorou com um gritinho. É incrível como essa mulher é animada.
- Sim, eu disse que viria.
- Rá! Podemos unir forças por uma roupa maneira! – vi ela fechar um dos punhos na frente do rosto.
- Você também vai comprar algo, Claude?
- No mínimo uma camisa, mas quero ver o que os homens aqui usam em um baile. Nevra, você poderia me ajudar com isso.
- Na realidade eu não sei, eu nunca fui a um baile. Eu vou usar apenas uma roupa mais formal.
- Será que uma camisa basta?
- Creio que sim. Você não olhou as opções da Purriry para ter uma ideia? - Nevra fez um questão que incluía uma sugestão.
- Sim eu olhei, mas achei um pouco...
- Espalhafatoso? – Mia completou a frase quando Claude parou para procurar palavras.
- Não fala alto. - Claude se encolheu um pouco na cadeira. - Ou aquela gata, digo, purreka, me mata.
- Mas era. A roupa formal era tão... eca. Nenhum homem ficaria sexy naquilo. - Mia fez uma careta exagerada, me deixando curiosa.
- Como era? - perguntei.
Ela se virou animada, como se fosse contar um segredo enorme.
- Sabe aquelas roupas cheias de firulas da monarquia? Com babados, rendas e cara de coisa de velho? Que a gente via nos livros da escola ou em filmes de época? – balancei a cabeça imaginando. – daquele jeito. - Nada sexy como um terno ou smoking. Precisamos dar a dica para a Purriry. - Mia comentou com uma expressão engraçada.
- Como é um terno? – ouvi o Nevra perguntar e ele pareceu honestamente curioso.
Vi a Mia abrir a boca para responder, mas então o Claude tapou a boca dela com um sorriso enorme no rosto.
- Nada disso mocinha. Acabei de descobrir a roupa que vou usar. O Nevra vai descobrir como é um terno no dia do baile.
Ela deu um grito agudo cheio de animação, atraindo atenção de muitas pessoas ao nosso redor e que feriu meus ouvidos, e obviamente os do Nevra já que ele virou o rosto com uma careta discreta.
- Genial! Mas considerando que eu te dei a ideia você terá que me ajudar com as maanas para comprar a minha roupa, pois te fiz economizar muito. - Ri um pouco ao perceber que o Gato de botas perderia para o olhar que Mia lançou ao Claude.
- Você me explora...
- Errado, eu te dou ideias geniais.
Encerramos nossa conversa pois o leilão começou. Eu me interessei por alguns conjuntos, mas todos eram muito caros e disputados demais. Até que apareceu um conjunto rosa, delicado, de um tecido fresco, com uma leve transparência, extremamente bonito, com ar dos anos 1920. Dei meu lance no set, mas outras duas mulheres também deram, gerando uma disputa que encareceu um pouco a roupa. Eu tenho um limite para gastar, pois estamos aqui há pouco tempo e, mesmo que a Guarda tenha nos dado um pouco de dinheiro, não é tanto que eu possa esbanjar. Aliás, curioso eles chamarem dinheiro de maana, o mesmo elemento vital para faeries. Estava quase desistindo quando percebi que as outras duas também estavam no limite, então me arrisquei e cheguei perto do meu limite, e acabei conseguindo o conjunto que eu queria.
Mia comprou imediatamente três peças aleatórias que eu não sei como ela vai combinar, um collant, uma tiara e uma espécie de ombreira. Mesmo sendo pretos, não vejo eles em um mesmo visual. Em seguida ela entrou em uma disputa por uma saia longa belíssima que, pelo que eu entendi, custou todo o dinheiro dela e um empréstimo do Claude. Alguém aqui não é boa em economia.
- Eu terminei. – ela disse tranquila. – Só preciso pegar uma sandália que o Claude vai pagar para mim, mas ela está numa banca e eu já deixei reservado. Vocês vão pegar algo mais?
- Eu não. Você vai pegar algo, Nevra?
- Não.
- Então vamos.
Saímos todos juntos, satisfeitos com nossas compras. Eu ainda teria que testar se o vestido precisava de algum ajuste, esperava que não visto que gastei mais do que planejava, e não tenho um melhor amigo para cobrir meu rombo. Claude e Mia correram para as bancas para buscar algum sapato que faria par com as roupas que ela tinha comprado. Eu estava curiosa para ver como ela combinaria tudo aquilo.
- O conjunto que você comprou é muito bonito, e a cor ficará perfeita em você. - Nevra comentou sem me olhar, enquanto caminhávamos.
- Imagino que sim. Faz muito meu estilo. E quem desenhou é talentoso pois é muito feminino e delicado. – toquei o tecido fino. – só espero que não seja muito transparente.
- Não é. Apenas um pouco. A sobreposição do tecido cria um efeito que nubla a transparência.
- Você conhecia esse conjunto?
- Sim. Se você precisar ajustar algo, a Guarda tem algumas pessoas que fazem esse serviço a preços justos. É só falar comigo.
- Obrigada.
Ele me acompanhou até a porta do meu quarto e seguiu seu caminho. Experimentei o meu vestido novo, surpresa com a qualidade do tecido. Eu tinha tido a chance de dar as minhas medidas e os purrekos tinham confirmado se ele me servia antes de autorizar que eu entrasse no Leilão por ele. Mas somente agora pude experimentá-lo, e ele era divino, cheio de detalhes assimétricos e com uma leve transparência que era sensual o suficiente para revelar, mas recatado o suficiente para não ser muito. Me senti muito satisfeita com minha compra.
.。.:*☽*49 - Noite de Baile *☾*:.。.
Alerta de SPOILER NE Ep. 07
PDV Lance
Essa é mais uma noite que eu não consigo dormir direito. Não é uma novidade para mim. Há sete anos que eu não sei o que é conseguir dormir em paz. Dizem que a consciência limpa é o melhor travesseiro, e a minha é mais suja que uma fossa milenar. Sentei na cama consciente que não vou mais pregar os olhos. Se eu não fosse um dragão, teria problemas de saúde dormindo tão pouco, mas dragões tem uma resistência muito acima do normal, e minhas noites insones sequer afetam meu desempenho.
Decido tomar um banho para começar meu dia logo, assim posso adiantar meus afazeres. Tiro a roupa e vou de toalha para o banheiro, a essa hora não me preocupo se vou encontrar alguém no corredor da Guarda. No início eu me dava o trabalho de ir vestido, mas já faz quatro anos que tomo banho a essa hora e se encontrei alguém cinco vezes, é demais. Levo minhas coisas e me dispo no banheiro sem me preocupar, entro na ducha e deixo a água tentar fazer o seu trabalho de relaxar meus músculos tensos, o que ela não faz nada bem.
Após o banho, prendi o cabelo, escovei os dentes e aparei a barba, quando me virei para pegar minha toalha e ir embora do banheiro a porta se abriu e a Mia entrou. bocejando. Merda! Estendi a mão rápido para pegar minha toalha e me cobrir, mas o olhar dela me fez desacelerar imediatamente. Ela não desviou o olhar, nem se virou, simplesmente ficou me olhando, com os lábios entreabertos, como se eu fosse uma obra prima. os lábios entreabertos como se ela precisasse de mais ar para respirar e continuar apreciando. Amei ver o olhar dela, fascinado a princípio, e faminto depois.
Peguei lentamente minha toalha, dando tempo a ela para que me apreciasse. Eu sou um dragão, vaidade é um dos pecados da minha raça. Como guerreiro cuido muito bem do meu corpo e mesmo com meu passado delituoso, tenho consciência de atrair olhares por onde eu passo. E mesmo se fosse um tapado, as insinuações e convites que já recebi bastariam para que eu entendesse que minha aparência agrada. Observei ela ficar vermelha como um pimentão, seus olhos bem abertos descerem pelo meu corpo, sua respiração cada vez mais rápida. Como uma mulher comprometida pode agir assim? Eu não deveria agir assim. Parece até que estou tentando seduzi-la. E não estou? Me recrimino sem muita ênfase. Mais um pecado na minha longa lista. Prendi a toalha na minha cintura sem pressa alguma, sob seu olhar hipnotizado, escondendo um pouco do meu corpo do olhar ávido dela. Estaria mentindo se não admitisse que me sinto orgulhoso por provocar essa reação, que segue muda.
- Desculpe, não ouvi você chegar. E você não bateu na porta... - Comentei, orgulhoso da reação causada.
Ela levou tempo demais para responder e parecia confusa. Um sorriso vaidoso e incontrolável se revelou em meu rosto e se revelou impossível de desgrudar de meus lábios. Definitivamente ela me deseja tanto quanto eu a desejo.
- Não... É... Foi culpa minha, totalmente minha... Desculpe.
- Vou deixar o espaço para você. Boa noite.
Sai do banheiro com pressa, ciente de que era agora ou nunca. Se eu não saísse agora, eu somaria mais um pecado na minha já longa lista de pecados. Cheguei no meu quarto, encostei a porta e respirei fundo.
Há anos nenhuma mulher me atraía. Se antes era a vingança que me consumia, depois era a culpa. Mia era a primeira a provocar qualquer reação em mim ou no meu corpo. Respirei fundo buscando relaxar. Involuntariamente lembrei da pequena morena, de olhos cinzas passionais, a boca cheia, o cabelo macio e perfumado, cheio de cachos negros, seus quadris redondos, sua barriguinha saliente. Será que ela acharia ruim se eu desse algumas mordidinhas nela, só algumas? Rosnei diante do rumo dos meus pensamentos incapaz de acalmar meu corpo apenas com meus pensamentos rebeldes apenas para descobrir que o dia seria longo e talvez doloroso. Troquei de roupa rápido. Nem gelo resolveria minha situação. Aquela morena ia me enlouquecer.
O resto do dia passou tranquilo, meu pensamento fugindo para a morena que eu não vi em nenhum momento. Brinquei com a Skala, que fazia coisas que eu não entendia direito. Afinal, o que ela queria que eu fizesse com o galho? À noite, antes do famoso baile da Koori eu não sabia bem o que vestir, então decidi tomar outro banho, para me livrar do suor do dia e coloquei minha armadura. Festas eram o momento perfeito para um ataque, por isso eu preferia estar pronto. Fui para a Sala do Cristal e percebi que os Guerreiros da Obsidiana mais antigos também estavam de armadura.
Observei, com preocupação, que a maioria não estava nada preocupada e com roupas completamente inapropriadas caso houvesse um ataque. Eu ainda tinha muito trabalho a fazer para preparar todos. A maioria era jovem, despreparada e inocente demais. Olhei ao redor e vi Jamón, me aproximei dele para conversar. Sempre me surpreendia como o ogro tinha o papo fácil e era, de longe, uma das pessoas com quem eu tinha mais facilidade para conversar. Logo vi Solomon chegar, também de armadura, e fiquei satisfeito. Meu segundo no comando nunca decepcionava.
De onde eu estava, conseguia ver a entrada e saída da Sala do Cristal, e também de toda a vista da Sala, me permitindo cuidar da segurança de todos. Eu veria um ataque vindo de qualquer lugar. Vi Elise chegar com um vestido delicado e completamente inapropriado para uma batalha, para piorar usando saltos, e Jhalil se aproximar dela, interessado. Ouvi um rosnado baixo à minha esquerda, e sem surpresa nenhuma descobri o Nevra, com um olhar assassino para os dois. Sorri divertido para mim mesmo. Já notei o interesse dele na Elise, mas como ele vai conciliar os hábitos dele com ela? Só o Oráculo para saber.
Vi a Érika entrar no Salão de braços dados com a Huang Hua. Ela está linda. Com uma pontada no coração eu penso que meu irmão teria gostado de vê-la. Eu sei que ele tinha uma queda por ela, ainda que ela ame o Leiftan. Aliás, como será que eles estão? Não os tenho visto juntos desde que despertaram. Será que ele está mantendo distância inclusive dela? Suspiro baixo pensando no meu ex-companheiro de crime. Tenho pena do Leiftan, ele não teve o tempo que eu tive para lidar com os crimes que cometeu e ainda tem uma desconfortável estátua dele no QG.
Olhei a entrada da sala ao ver o casal do meu interesse entrando. Claude usava uma roupa estranha, preta e branca. Não parecia completamente inapropriada para a batalha, mas não parecia proteger ele. E a Mia, foda-se qualquer batalha! Ela estava gloriosa. Sua roupa combinando com a dele em tons de preto e branco. Seus cabelos estavam soltos, os cachos negros brilhantes caindo como uma cascata rebelde e hipnotizante até o meio das costas, algumas mechas teimosas voando pelo seu rosto. Os grandes olhos cinzentos curiosos para o ambiente, uma tiara quase negra prendendo seu cabelo apenas o suficiente para que não caia em seu rosto. E ela estava com uma maquiagem leve, percebi pela ausência de suas pintinha fofas e a pele impecável, como se fosse nova. E céus, os lábios mais bonitos pintados com um rosa delicado, formando um sorriso que acelerava as batidas do meu coração sem nem mesmo notar.
Meu olhar foi capturado pelo gigantesco decote na frente do vestido, aberto do pescoço até o umbigo, revelando a curva acentuada dos seios fartos. Sua pele quase dourada nos braços contrastando com a pele cremosa e levemente rosada exposta pelo decote descomunal. A longa saia branca com detalhes pretos na barra, de uma forma misteriosa para mim, ia ficando transparente conforme se aproximava dos pés, revelando suas pernas graciosas. E ela usava sandálias de salto alto trançadas até os joelhos. Os pés pequenos e delicados equilibrados de forma perigosa e sexy na ponta dos dedos. Dizer que ela estava linda era pouco, muito pouco para ela. As deusas deveriam estar planejando vinganças cruéis, cheias de inveja.
Quando nossos olhares se cruzaram e a vi ficar vermelha, uma vermelhidão intensa que coloriu o vão revelador da curva generosa em seu vestido. Travei a mandíbula diante dos meus pensamentos. Ela é comprometida. Acompanhei a morena com o olhar, quase obcecado por sua roupa e pelo que ela revelava e escondia. Notei o detalhe das unhas pintadas de preto. Eu já havia notado que ela gostava de pintar as unhas e achava lindo e curioso. Poucas pessoas em Eldarya pintavam as unhas, mas ela me disse que era comum na Terra.
Ouvi sem prestar realmente atenção ao discurso de Huang Hua. Me mordi de ciúmes vendo Claude e ela deslizarem na pista de dança como velhos amantes quando a música começou. Eles dançam muito bem e de forma muito íntima. Se a forma como duas pessoas dançam realmente revela como se amam, os dois são alegres e intensos na cama, e absolutamente sncronizados. Após três músicas vi os dois virem em nossa direção.
- Vocês não vão dançar? – Claude perguntou despreocupado, o olhar em Solomon.
- Talvez. – respondi rápido. - A ideia de tê-la em meus braços em uma dança sedutora demais para me negar.
- Jamón, você quer dançar? – Vi o Claude perguntar, e fiquei surpreso. Mia parecia querer dançar com ele também.
- Essa noite não. Jamón estar de guarda. - Os dois ficaram visivelmente tristes.
- Vocês dois também estão de guarda?
- Não... – Respondi rápido. E quando ia complementar o Claude se apressou na minha frente.
- Ótimo! Eu danço com o Solomon e você pode dançar com a Mia, Lance. – Ele sorriu para mim, confiante no pedido. Inocente. Eu não era digno da confiança dele, nem ela se me lembrava bem. Mas me senti incapaz de negar. A vermelhidão se espalhava teimosamente pelo rosto e busto de Mia e eu sabia que não era apenas devido ao esforço físico da dança.
Vi que Claude e Solomon não esperaram a minha resposta e saíram para dançar.
- Você gostaria de dançar comigo? – Ela me perguntou com a voz um pouco baixa.
Eu não esperava isso, não depois da festa, e especialmente não depois dessa madrugada. E ainda assim, eu nunca recusaria um pedido dessa mulher. Mesmo se ela me pedisse para beber lava, eu faria isso abanando meu rabo, feliz.
- Claro, claro. Eu não tenho nenhuma razão para recusar.
Dessa vez estendi o braço para ela e a conduzi para a pista de dança. Não quero correr o risco de dançar como na festa. Será que aquele é algum tipo de dança da Terra? E isso é normal para ela? Não importa, não é para mim e já estou desconfortável o suficiente para não deixar que aquilo aconteça novamente.
- Você sabe dançar? – Idiota! É claro que ela sabe dançar, você estava babando nela dançando. – Quero dizer, este tipo de valsa?
- Sim... Mas nela é o homem quem guia, ao menos na Terra.
Sorri divertido. Aqui não era mais assim. Mas eu não seria contra guiar ela e manter nossa dança nos limites do razoável.
- Antigamente sim... Mas esse tipo de dança meio que saiu fora de moda. Mas não se preocupe, eu vou te guiar.
Vi o rosto dela surpreso com minha resposta.
- Como as pessoas dançam valsa hoje em dia aqui?
- Eu te ensino outro dia.
- Promete? – Seu tom de voz esperançoso me aqueceu meu coração.
- Prometo. - E nem os deuses me impediriam de cumprir essa promessa.
Deslizei minha mão pela sua cintura e segurei sua outra mão. Começamos a dançar e, como eu esperava, ela é uma dançarina excelente, deslizando comigo pelo salão conforme a guio. Ela demonstra confiança plena em mim, os olhos fixos nos meus desde que começamos a dançar, me permitindo conduzi-la com tranquilidade. Comecei nervoso, com medo de errar algum passo, mas a confiança dela me deixa tranquilo. Seus olhos cinzas, doces e inocentes me fazem querer me perder nela, ler sua mente, agradá-la. Eu sei que queria manter distância, mas a cada passo me aproximo mais e mais, grudando nossos corpos tudo que uma valsa permite. Tudo parece estar certo no devido lugar quando ela está nos meus braços, comigo. Me sinto bem, bem melhor do que nunca me senti. Música após música ela dançou nos meus braços, nenhum dos dois desejando se afastar. Claude não veio buscá-la, eu não fiz questão de levá-la, ela não se afastou de mim. A equação perfeita. Nós não conversamos, nossos corpos conversaram, silenciosos, a noite toda. E nós éramos perfeitos um para o outro, eu tinha certeza.
PDV Elise.
Jhalil era um dançarino excelente. Eu não era muito, mas ele era e eu estava me divertindo horrores. Mesmo quando eu errava alguns passos, ele me consolava e voltávamos a dançar. Assim eu não me sentia tão desastrada. Especialmente vendo Mia e Claude dançarem tão bem no salão. Será que eles eram dançarinos profissionais na Terra? Era a única justificativa para tamanho talento.
Voltei minha atenção ao Jhalil, que já vinha deslizando a mão pelo meu corpo de forma ousada e sorri para ele, sentindo que minha noite acabaria muito bem. Olhei seus olhos e me distraí pensando em como ele seria na cama. Acabei tropeçando nos braços dele, o que fez com que ele me deitasse em uma pose sensual, arrancando um suspiro dos meus lábios. Sedutor, definitivamente muito sedutor.
- Estou desconfiado que você gosta de estar em meus braços, senhorita.
- Eu sou desastrada, Jhalil.
- Eu gosto de tê-la em meus braços...
- Eu estou com sede, Jhalil. - Apoiei a mão no peito dele.
Enquanto Jhalil foi buscar uma bebida para nós, vi, com alguma surpresa, a Mia começar a dançar com o Lance e nossa, aqueles dois tem uma tensão sexual que incendeia esse salão inteiro, só não nota quem é burro. Uma tensão que, por sinal, ela não tem com Claude. Porque ela namora um homem com quem ela não tem uma tensão nem na metade do nível que ela tem com o Lance? Puta merda. Olha aquilo. Eles nem tiram os olhos um do outro. Tirei um tempo para observar Claude com Solomon e, é impressão minha ou aqueles dois também tem uma super tensão? Dei um sorrisinho travesso. Esse casalzinho não vai durar muito. Tem muita tentação ao redor deles.
- Cansada? – Ouvi uma voz no ouvido e pulei, assustada.
- Nevra! Você quer me matar de susto? - Coloquei a mão no peito, tomada pelo susto de ver esse vampiro surgir do nada. Vi ele sorrir de uma forma... predatória para mim. - Eu não te vi dançar até agora. Você não gosta de se divertir? - Provoquei.
- Não sozinho. Estava te esperando.
- Essa cantada é velha, Sr. Sedutor.
- Eu não uso essa com ninguém... Quer dançar?
- Sabe, eu não gosto de dançar sozinha, estava esperando você pedir. – Alisei o quimono dele enquanto dizia isso com um sorriso nos lábios.
Ele me puxou rápido para a pista de dança, a mão na minha cintura.
- Siga meus passos, vou te guiar.
- Sim, Senhor.
- Boa garota.
- Sempre.
Ele deslizou a mão pela minha cintura com firmeza, guiando meu corpo. Estranhamente, com ele eu não tropeçava. Ele parecia saber exatamente o que estava fazendo, me transmitindo confiança e, em alguns minutos já me sentia completamente à vontade, entregue nas mãos dele. Ele deve ter sentido pois os seus gestos começaram a ficar menos óbvios, exigindo mais e mais confiança da minha parte. Eu poderia fechar os olhos, de alguma maneira, eu sei que ele me manteria a salvo, mas eu jamais ousaria tirar meus olhos dele. Ele dava passos cada vez mais audaciosos, me levando com ele. Me fez rodopiar e me pegou em seus braços, metódico. Ele deixava para mim a liberdade de definir a distância entre nós.
Ele quase não sorri, concentrado na dança e em mim. Quase não sorrio, concentrada nas sensações que suas mãos, seu olhar e sua condução hábil me transmitem, na imensidão de sensações que estou sentindo nesse momento. Só tenho olhos para esse homem, esse vampiro. Me aproximei um pouco mais, fazendo com que nossos corpos encostem completamente um no outro, meu desejo aumentando a cada passo, cada gesto. É como se ele guiasse nossos passos, mas eu guiasse nossa dança.
- O que você faria se quisesse me fazer corar?
Os olhos dele brilharam e ele me fez rodopiar até ficar de costas para ele, e me conduziu nessa posição, contra o corpo dele, nos movendo no mesmo ritmo. Senti minha respiração acelerar ainda mais e meu desejo arder por ele. Levantei meu braço e minha mão deslizou em seus cabelos negros. Apreciei a pressão da sua mão na minha cintura e senti sua outra mão acariciar meu queixo. Instintivamente, inclinei minha cabeça para trás e expus meu pescoço para que ele me beijasse... ou mordesse, o que ele quisesse, eu não ligava. Senti ondas de arrepios percorrerem meu corpo quando sua respiração atingiu meu pescoço e um suspiro profundo escapou dos meus lábios. Eu me sentia viva, como nunca me senti antes.
.。.:*☽*50 - Treinamento Coletivo *☾*:.。.
Alerta de SPOILER NE Ep. 07
PDV Mia.
Acordei tarde, no meio da manhã e me senti eufórica. Eu havia dançado a noite toda com o Lance. De madrugada ele tinha me acompanhado até a porta do meu quarto e desmaiei de cansaço na cama. Abracei meu travesseiro feliz, lembrando de como tínhamos dançado um com o outro a noite toda. Ele não dançou com ninguém mais, apenas comigo. Eu não precisava de palavras, sabia que estava absolutamente feliz. Senti que precisava conversar com o Claude e encerrar aquela mentira para ontem.
As mãos dele na minha cintura, ainda podia sentir elas, firmes, me segurando e guiando. Ele era um cavalheiro. Dei um gritinho contra o meu travesseiro. Me lembrei do cheiro dele. Antes eu acreditava ser um perfume ou loção, mas estava começando a desconfiar que era o cheiro dele mesmo, pois ontem, quando começamos a suar, devido à dança, o cheiro ficou mais forte, como um perfume especial que ao invés de desaparecer apenas se fortace. Será que era por que ele era um dragão de gelo?
Saí da cama e corri para o banheiro, me lembrando na hora de quando estive ali de madrugada e o encontrei nu. Senti meu rosto ficar vermelho, como sempre fica quando lembro disso. Lance tinha o corpo mais perfeito que já vi na vida. Nem mesmo celebridades tinham aquele tipo de corpo. Não vi ninguém no banheiro, então fui tomar café da manhã ou almoçar. Quando cheguei no Karuto ele me olhou surpreso.
- Mocinha, você está atrasada para o treinamento!
- Que treinamento?
- O treinamento da Guarda! Todos os Guardiões devem ir lá fora e treinar.
- Sério? - Questionei incrédula.
- Sim! Pegue um sanduíche e vá logo.
- Obrigada, Karuto!
Fui correndo até o local do treinamento e encontrei um monte de grupos já formados. Meu sanduíche já pela metade. Pelas expressões, não era só eu que tinha sido pega de surpresa. Muita gente estava treinando mal-humorado ou fazendo corpo mole. Eu não sabia o que era para fazer, então olhei em volta procurando o Chrome, afinal meu Chefe de Guarda deve saber o que eu devo fazer.
- Bom dia, Chrome!
- Você está atrasada. - Ele falou em um tom meio divertido e meio sério.
- Eu não sabia do treinamento.
- Foi avisado no café da manhã.
- Eu acordei agora... – dei um sorriso sem graça.
- Tudo bem. Encontre dois companheiros de treinamento, ambos devem ser de guardas diferentes da sua e treine, ok? Nada de usar poderes, apenas habilidades físicas.
- Ok.
Tentei acalmar meu coração acelerado pela visão daquele homem platinado incrível e me virei para buscar opções de companheiros de treino. Vi a Elise em um canto e corri até ela.
- Oi Elise, você já tem companhia de treino?
- Ainda não...
- Você é de que guarda?
- Absinto.
- Ótimo, eu sou da Sombra. Só falta alguém da Obsidiana. Você conhece alguém?
Ela negou com a cabeça. Ela parece bem mal. Olhei em volta procurando o Claude ou o Solomon, os dois únicos além do Lance que eu conheço da Obsidiana.
- Noite ruim?
- Só não estou acostumada a dormir tão pouco e ainda ter que me exercitar.
- Dormir pouco às vezes eu durmo, adoro uma festa, mas nunca tive que me exercitar depois, só trabalhar.
- Esse povo é doido.
- Concordo.
Finalmente vi o Claude se aproximar e o chamei com os braços. Ele veio em minha direção.
- Bom dia! – Dei um abraço nele e ele me apertou.
- Bom dia, Elise.
- Bom dia.
- Ela não está animada com o treino.
- E você está?
- Não, mas quanto antes começarmos, antes terminamos. Temos que arrancar como um Band Aid.
- É uma boa estratégia.
- Então, você sabe quanto tempo temos que treinar?
- Até a hora do almoço.
Ok, até eu e minha energia sabíamos que era tempo demais. Duas horas? Sério? Após uma festa? Olhei em volta e vi o Lance. Ele estava longe, de costas para mim, parecia estar observando alguns guardiões treinando. Percebi que todos os Chefes de Guarda estavam aqui, inclusive o Nevra. Minha mente está a mil, o que será que ele achou da noite passada? Eu preciso conversar com ele e esclarecer as coisas, mas antes, preciso falar com o Claude.
- Então, como vocês querem fazer?
Eu e a Elise nos olhamos.
- Eu não tenho nenhuma experiência de combate ou treino... – A Elise falou com um ar bem cansado...
- Nem eu... Que tal você organizar Claude?
- Certo, eu vou lutar com cada uma de vocês e, depois, vocês lutam entre si, o que acham?
Nós concordamos.
- Quem vai primeiro?
- Eu. – A Elise se voluntariou.
Mas ela mal estava dando uns passinhos, e ainda parava para bocejar, o que fazia com que eu e o Claude bocejássemos também. Malditos neurônios espelhos! Começamos a rir, sem saber muito o motivo, provavelmente sono.
- Estava pensando se vocês não gostariam que eu trouxesse alguns refrescos, algo para comer... – Me virei em um susto na direção de uma voz grave e dei de cara com o Nevra. Aquele cara fazia de propósito? Ele podia ser bonito, mas era um pé no saco.
- Gentileza sua, mas não estou com fome, e vocês? – A Elise respondeu, irônica.
Eu não me controlei e ri.
- Vocês chegaram atrasados, e não estão treinando nada. E ainda por cima nem estão fingindo.
- Foi uma noite agitada, Nevra. - Tentei dar uma desculpinha boba.
- É um treino geral, todo mundo precisa participar, sem exceção. – Ele parecia irritado. – Vamos, se preparem. Me mostre do que vocês são capazes.
Ele desembainhou o sabre e se posicionou na frente da Elise. Eita, sério? Ele quer que a gente, que chegou aqui há cerca de um mês, enfrente ele, o segundo no comando? Um vampiro? Qual o sentido? Vi a Elise tentar atacar ele de uma forma meio ridícula, ele só deu um passo para trás, e encarou ela com um olhar incrédulo. Ela soltou a adaga e se rendeu.
- Pode me prender, eu me rendo.
Vi então o Claude atacar ele com uma espada, e bom, ele foi bem melhor, o combate durou alguns minutos. As espadas se chocavam e o Claude demonstrou que atacava não apenas com a espada, mas também com chutes e socos que quase, quase atingiam o Nevra. Mas ele acabou desarmando o Claude também. Então ele se virou para mim e com um tom irritante, me desafiou.
- Agora só falta você. Ao ataque!
Era visível a irritação nos olhos dele, e eu respirei fundo me preparando. Era só mais um treino, qual a obsessão desse pessoal? Ele, em especial, tinha um tipo de atitude que sempre me irritou e arrancava o pior de mim. O tipo de pessoa que provocava os outros. Me coloquei em posição de defesa, segurando a espada leve que eu tinha pego para treinar quando cheguei. O vampiro partiu para cima de mim, e ele parecia furioso. Me defendi no automático de cada um dos ataques dele, sem ter tempo de pensar no que estava fazendo. Eu me desviava rápido, mas era a irritação nos olhos dele que me irritava, e foi essa irritação que ativou o gatilho.
Durante os treinos com o Lance, eu gostava demais de ficar com ele, por isso treinava atentamente. Mas eu não gosto da ideia de realmente treinar e me tornar um soldado, eu não gosto de violência. Só treino o mínimo necessário. Na realidade, só treino com o Lance. Eu só aprendi autodefesa para o que ela se propõe mesmo. Mas o jeito irritado do Nevra, é a mesma irritação sem sentido do meu padrasto. Sempre furioso, violento. Rapidamente a lembrança dos olhos do meu padrasto se sobrepõe aos do Nevra. Cenas do meu passado, quando eu tentava me defender daquele monstro. Então quando ele me atacou, eu não apenas desviei, mas o ataquei e acertei uma cotovelada nas costelas. Flashes do treinamento do Valkyon se misturaram à minha memória.
Nevra e meu padrasto se fundiram diante de mim, me defendi e busquei formas de atacar, até que não era mais eu me defendendo, mas eles. Não vi que durante meu ataque as duas asas se revelaram, me dando mais agilidade e velocidade, me equiparando à velocidade deles, obrigando as pessoas ao nosso redor a se afastarem. Eu os vi se soltarem e começarem a me atacar com mais força, quando eles acertaram um soco que me jogou a uma certa distância, tirando meu fôlego, eu sabia que eles acreditavam terem me tirado de cena. Mas levantei a cabeça e voltei com tudo na direção deles, arrancando um olhar surpreso daquele rosto odioso. Tinha doído, mas eu tinha escamas de dragão, babacas, não era um soco que me derrubava. Era a proteção do Valkyon em mim.
Aquela batalha estava provavelmente se tornando perigosa, mas eu estava irritada demais para me controlar. Eu queria arrastar a cara deles pelo chão. E planejava uma forma de concretizar isso quando, de relance, vi a expressão surpresa e preocupada do Lance, idêntica à forma como Valkyon me encarava. Foi como um banho de água fria. Olhei o Nevra e entendi a confusão que eu tinha feito, de novo. Joguei minha espada no chão me rendendo. Era óbvio que eu não estava rendida, mas eu não precisava provar nada para ninguém. Ele não era meu padrasto, e salvo uma ou outra ocasião, eu nem precisava ter o desprazer de falar com ele.
- Você lutou surpreendentemente bem. – O Vampiro me disse com um sorriso satisfeito e um olhar questionador no rosto dele.
Virei de costas e, levantando o dedo do meio para ele, mandei ele se foder mentalmente, e saí rápido em direção ao QG. Mentalmente considerei meu treino satisfatório, me dei um tapinha nos ombros pela ótima batalha e outro na cara por ceder à provocação barata dele, e me liberei. Eu ia desmoronar a qualquer momento e eu não faria isso em frente do QG inteiro, e nunca na frente daquele babaca. Claude veio atrás de mim em silêncio e me acompanhou até o quarto, mas eu só o vi quando quase fechei a porta do quarto na cara dele. Ele entrou e me abraçou, fechando a porta e me deixando chorar no peito dele. Ele nunca tinha me visto lutar daquele jeito, mas não me perguntou, pois ele sabia o quanto eu odiava violência, e que só uma coisa me tirava do sério, meu padrasto, e o que quer me lembrasse dele.
.。.:*☽*51 - Frio como um vampiro *☾*:.。.
Alerta de SPOILER NE Ep. 08
PDV Elise.
Abri os olhos e olhei em volta no meu quarto, ainda morta de sono. O sol já nasceu há um bom tempo. Fechei os olhos e me lembrei do baile de ontem a noite, que seguiu até altas horas da madrugada e senti uma sensação desagradável na boca do estômago. Depois que eu e o Nevra começamos a dançar, não paramos mais, até esqueci o pobre do Jhalil. Eu me entreguei completamente a ele e seu charme. Agora entendo melhor as mulheres com quem ele sai, esse vampiro é perigoso. Quando estava nos braços dele, eu me senti única, especial, envolvida por sua aura, seus olhos, seu corpo. Tudo nele invocava meu ser.
Ele mexeu muito mais comigo do que eu esperava. Ao mesmo tempo, não parece que seja algo de via única. Ele também estava completamente envolvido comigo, ou não teria dedicado a noite toda exclusivamente a mim. Sorri para mim mesma, creio que eu e ele podemos ter algo interessante, será bom encontrá-lo. Ele é um homem adulto e eu sei que ele tem amantes no QG, podemos nos tornar amantes, desde que ele não mantenha aquela postura hipócrita anterior.
Sai da cama lânguida, pensando no vampiro gostoso que eu tentaria encontrar hoje, e me arrumei devagar. Quando cheguei na sala das portas encontrei a Ewelein que me informou que eu estava atrasada para um treino coletivo que haveria pela manhã. Peguei um sanduíche com o Karuto e sai resmungando comigo mesma.
- Quem marca um treino coletivo logo depois de uma festa dessas?
Cheguei no local do treino e logo vi o Nevra. Com um sorriso, me aproximei dele para saber o que tinha que fazer e aproveitar para dar um bom dia. Mas fui recebida por uma pedra de gelo.
- Você está atrasada, Elise.
- Eu não sabia que teria um treinamento hoje.
- Foi avisado durante o café da manhã. Encontre um membro de cada guarda e realize o treinamento até o horário de almoço.
Após dizer isso ele virou as costas e saiu, me deixando sozinha. O que foi isso? Quem é esse? Olhei confusa em volta e, ao fazer isso, dei de cara com a irmã dele, e se olhar matasse, eu já estaria morta. Ela estava perto da Koori e da Erika, mas evitei a direção dela. Melhor não treinar com quem faz uma expressão dessas para você. Fui para um canto sem saber bem o que fazer, já que não conhecia basicamente ninguém além da Huang Chu, Koori, Erika, Nevra e bem, uma meia dúzia de pessoas. Estava procurando o Jhalil quando ouvi a voz alegre da Mia me chamar.
- Oi Elise, você já tem companhia de treino?
- Ainda não...
- Você é de que guarda?
- Absinto.
- Ótimo, eu sou da Sombra. Só falta alguém da Obsidiana. Você conhece alguém?
Neguei com a cabeça pois não queria realmente ter que encarar o Jhalil, já que eu o havia abandonado no baile ontem, e agora eu tinha recebido um balde de água fria na cabeça.
- Noite ruim?
- Só não estou acostumada a dormir tão pouco e ainda ter que me exercitar.
- Dormir pouco às vezes eu durmo, adoro uma festa, mas nunca tive que me exercitar depois, só trabalhar.
- Esse povo é doido.
- Concordo.
Vi a Elise levantar os braços e sacudir eles amplamente. Olhei a direção que ela fazia isso e vi o namorado dela, Claude e suspirei aliviada. Olhei ao redor e vi o Jhalil, à distância, num pequeno trio, treinando.
- Bom dia! – Elise abraçou carinhosa o Claude. Eles nunca se beijam?
- Bom dia, Elise.
- Bom dia. – A alegria dessa mulher me irrita um pouco num dia desses.
- Ela não está animada com o treino. – Vi ela me indicar com a cabeça e tive vontade de responder que ela é quem tinha energia demais.
- E você está?
- Não, mas quanto antes começarmos, antes terminamos.
- É uma boa estratégia.
- Então, você sabe quanto tempo temos que treinar?
- Até a hora do almoço. – respondi.
- Então, como vocês querem fazer?
Eu olhei para a Mia sem saber como responder a pergunta do Claude.
- Eu não tenho nenhuma experiência de combate ou treino... – falei, sem muita energia.
- Nem eu... Que tal você organizar Claude?
- Certo, eu vou lutar com cada uma de vocês e, depois, vocês lutam entre si, o que acham?
Nós concordamos.
- Quem vai primeiro?
- Eu. – Querendo terminar logo com aquilo.
O problema é que eu estava com pouquíssima energia e logo comecei a bocejar incontrolavelmente, sendo seguida por meus companheiros de treino. Sem perceber, em pouco tempo, todos estávamos bocejando e rindo como crianças que teimam contra o sono.
- Estava pensando se vocês não gostariam que eu trouxesse alguns refrescos, algo para comer... – gelei ao ouvir a pedra de gelo que atendia com o pseudônimo de Nevra.
- Gentileza sua, mas não estou com fome, e vocês? – Respondi ele irônica.
Vi Mia rir sem conseguir disfarçar.
- Vocês chegaram atrasados, não estão treinando nada. E ainda por cima nem estão fingindo.
- Foi uma noite agitada, Nevra.
- É um treino geral, todo mundo precisa participar, sem exceção. – Agora ele estava irritado. – Vamos, se preparem. Me mostre do que vocês são capazes.
Ele desembainhou o sabre e se posicionou na minha frente. Desgraçado. Se ele acha que eu vou cair no velho truque de morde e assopra, ele está brincando com a mulher errada. Eu não sou uma adolescente ou mulher insegura. Eu sei muito bem qual é o meu valor, seu ser descerebrado e estúpido. Então fingi atacar ele dando um passinho ridículo para frente, ele só deu um passo para trás, e me encarou com um olhar incrédulo. Soltei minha adaga e me rendi.
- Pode me prender, eu me rendo.
Me sentei no chão, me recusando a oferecer qualquer migalha de atenção a esse vampiro desagradável, e vi Claude lutar alguns minutos com ele. Nevra era bom galanteador, e tinha um corpo delicioso, mas era um babaca de marca maior. Analisei Claude e, se ele não fosse comprometido, seria um candidato sério. Que homem atraente!
- Agora só falta você. Ao ataque! – Ele se virou ainda mais irritado para a coitada da Mia.
Mas ao contrário do que eu esperava, ela foi a melhor de nós três. Não apenas aguentou diversos ataques do Nevra, se defendendo e desviando dele, como começou a atacá-lo. Mas eu pude ver nos olhos dela o sofrimento. Ela estava com medo do Nevra e... com raiva? Os dois aceleraram o combate rapidamente, lindas asas surgiram nas costas dela, fazendo com que ela não apenas ficasse mais rápida, mas em muitos momentos flutuasse ao atacá-lo. Me levantei do chão hipnotizada, sentindo um comichão ao ver a batalha, acompanhando o movimento dos dois. As asas dela... Não me eram estranhas. Lembravam as minhas. Vi o Nevra acertar um soco na barriga dela jogando-a a metros de distância, um soco que fez um barulho alto, como se ele tivesse socado uma parede de pedras. para minha surpresa, ela se levantou como se não fosse nada, voltando a atacar ele. E vi a surpresa misturada a choque no rosto dele. Era impressionante.
O barulho das espadas e a velocidade de ambos era algo surreal como nunca tinha visto, eu nem sabia como conseguia acompanhar aquilo. Então notei o olhar dela para uma pessoa próxima a mim, olhei de lado e vi Lance. Ele estava preocupado. Em seguida, ela pareceu sair do transe de batalha e jogou a espada no chão. Na hora o Nevra também parou. Aquilo não tinha sido um treino, tinha sido uma briga. Olhei o rosto dela... Ela não estava bem.
- Você lutou surpreendentemente bem. – Nevra disse com um sorriso satisfeito, mas seu olhar era questionador.
Vi ela ignorá-lo e sair em direção ao QG, e Claude sair atrás dela. Olhei o Nevra surpresa pela insensibilidade dele. Não sei por que, mas eu esperava mais dele. Sai do treino em direção ao QG. Não era ali que eu ia melhorar minhas capacidades. Fui direto para o meu quarto na expectativa de conseguir dormir mais um pouco.
.。.:*☽*52 - Mais uma confissão *☾*:.。.
Alerta de SPOILER NE Ep. 08
PDV Mia.
Não saí do quarto aquele dia mais. Claude pegou meu almoço e meu jantar. Eu não tinha nenhum humor para falar com absolutamente ninguém. Nem com Claude. Permaneci deitada na cama, honestamente sem pensar em nada. Eu apenas me deitei e me deixei ficar mofando, criando raízes na cama, olhando nada e pensando em nada. Volta e meia uma lágrima ou outra escapava, mas me recusava a chorar novamente.
A noite veio e dormi, um sono sem sonhos, do qual acordei como se não tivesse dormido, sem realmente me sentir descansada. Abri os olhos com a sensação de ter acabado de fechá-los, mas quando os fechei estava escuro, e agora estava claro. Ouvi batidas na porta em momentos aleatórios e não respondi. Em algum momento da manhã eu decidi que bastava, me levantei e fui para a área da sombra estudar. Me distrair seria bom.
Eu realmente tinha enfrentado o Nevra praticamente de igual para igual. Eu me lembrava dos treinamentos com o Valkyon. Eu havia aguentado um soco do Nevra, e eu sabia que ele não tinha pegado leve comigo. O sonho no meu coma, ele era real, eu tinha certeza agora. Valkyon era real, assim como Fáfnir, a mulher albina e a criança dos cabelos coloridos. Todos eram reais. Eu realmente vinha de uma dimensão amaldiçoada pelos próprios habitantes, tinha participado de tudo aquilo. Eu era uma estrangeira naquele lugar. Valkyon tinha realmente salvado minha vida, junto com os outros, mas era ele quem tinha me dado as escamas que agora me protegiam, ele tinha me treinado. Senti meu coração se aquecer com a lembrança dele, do quanto eu me sentia protegida e querida com ele.
Na hora do almoço, como sempre, encontrei Claude. Mas ele parecia preocupado, não quis me falar o que tinha acontecido no salão. Me pediu para irmos para o quarto conversar.
- O que aconteceu? - perguntei preocupada. Finalmente saindo do meu estado de torpor.
- Aconteceu uma coisa no baile...
- O que? – perguntei tensa.
- Eu e Solomon, nós...
- Ah merda... Você e o lagarto fizeram o quê?
- Nós nos beijamos...
- Vocês o que? – eu dei um gritinho, feliz por ter boas notícias e poder esquecer minhas memórias.
- Mia... nós...
- Céus... – não tinha sido só eu que tinha perdido o bom senso na festa pelo visto. - Foi bom ao menos? - perguntei com um sorriso.
- Foi excelente, mas... isso compromete completamente nossa situação.
- Você não acha que está passando da hora?
- Na realidade eu vinha pensando que sim. Pelo que vi realmente as coisas aqui não são ruins para nenhum de nós dois.
- Exato, e seria bem melhor se você pudesse ficar mais livre, não?
- Bom... todos acham que nós somos namorados.
- Mas nós não somos, e eu nunca me importei com a opinião alheia. Me importo mais com meu amigo. E aí? Foi bom?
- Foi maravilhoso! – ele me abraçou feliz.
- Céus! Você e um lagarto! - Fiz uma careta para ele.
- Ele é maravilhoso, perfeito, um cavalheiro.
- E você está apaixonado.
- Acho que sim... – ele falou sorrindo tolamente.
- Não foi rápido demais?
- Você sempre acha rápido demais.
- Talvez porque seja rápido demais? Não tem nem um mês.
- Ou talvez porque você seja uma medrosa, que não deixa ninguém entrar nesse castelo que construiu em volta do coração.
- Não estamos falando de mim.
- Mas deveríamos, você nunca deixa ninguém entrar, uma hora você vai precisar ceder, porque um bom homem ou uma boa mulher não vão arrombar a porta desse castelo, é preciso abrir a porta gentilmente.
- Não é que eu não queira, Claude.
- Nem todo homem é seu padrasto, Mia.
- Mas nem todos são como você.
- O que é uma sorte sua, já que não gosta de mulheres.
- Idiota. Você entendeu bem. Agora, muito obrigada pela sabedoria de boteco. Como Solomon reagiu estar com um homem comprometido?
- Ele se sentiu muito mal e me pediu perdão, inclusive informou que outra pessoa vai me treinar pois ele não consegue ficar perto de mim.
- Ui, Claude, o arrasador de corações. Melhor acalmar o coração do lagarto antes que ele jogue sal em si mesmo.
- Louca. Mas só lembrando que ele não é um sapo.
- Obrigada. Mas sapo e lagarto são répteis do mesmo jeito. Acho que não podemos enrolar. Você gosta dele mesmo?
- Muito.
- Certo, hora de falar a verdade.
- Sim, até porque, não pense que eu não notei seus olhares para um certo dragão na festa e o mesmo com que você dançou a noite inteira no baile.
Senti que minha alma estava ficando aquecida e vermelha também. E Claude começou a gargalhar.
- Eu sabia! Você passou horas sem conseguir tirar os olhos do Lance, dançando como uma enamorada! Eu não sabia que esse era seu tipo: alto, forte, com asas e cuspidor de fogo. Tá explicado a solteirice na Terra. É um tipo difícil de achar por lá, uma lagartixa com asas e azia.
- Idiota.
- Eu nunca vi nada nem ninguém te distrair na pista de dança. Nem ninguém te deixar tão eufórica para se exercitar.
- Hey! Eu gosto de me exercitar.
Ele me olhou incrédulo.
- Quantas vezes eu te vi pagar anuidades de academia e nunca ir, deixe-me contabilizar...
Xeque Mate. Eu realmente não gosto. Não tenho ideia de onde vem minha excelente habilidade física.
- Mas eu estava aprendendo parkour...
- Duas semanas... Você foi duas semanas sua louca!
- Tá bom! Eu gosto de treinar com ele! É o que você queria ouvir?
- Agora sim. Diga a verdade para si mesma e tudo será mais fácil.
- Eu não sei se estou pronta, Claude.
- Ninguém nunca sabe, até tentar, querida. Você não acha que está na hora de vencer o fantasma do seu passado?
Olhei sem entender o que ele disse. Mas aos poucos aquilo começou a fazer sentido dentro de mim, no meu corpo, em cada célula. Ele tinha razão. Meu padrasto ainda me assombrava, ainda ditava meu presente. Suas ações ainda me impediam de viver minha vida. Eu podia ignorar o que sentia pelo Lance, como tinha ignorado por outros antes. Mas eu não queria dessa vez. Eu conhecia ele há pouco tempo, não sabia no que isso ia dar, e que não desse em nada. Só de sentir isso, pela primeira vez estava sendo tão gostoso. Não ter medo, não ter receio.
- Eu o abracei, Claude. E eu não tive medo. Eu não tenho medo quando ele me toca. Na realidade eu sempre quero mais. É assim mesmo?
- É sim, menina. É sim. Apenas deixa rolar. – Ele fez um carinho na minha cabeça.
Abracei o Claude, nos enchemos de coragem e fomos em direção ao local onde a Huang Hua costuma ficar. Encontramos ela no salão de sempre sozinha e pedimos para falar com ela. Ela nos ouviu e pareceu compreensiva, e pediu que contássemos tudo para toda a reluzente, que já ia se reunir. Minha cara foi ao chão, mas não havia mais volta. Todos chegaram e se sentaram, curiosos com a minha presença e de Claude. Huang Hua pigarreia e começa a reunião.
- Boa tarde a todos, como vocês podem ver Mia e Claude estão conosco agora no início da reunião pois eles precisam nos informar algo. – ela faz um gesto nos passando a palavra.
Eu me sinto nervosa e espero que Claude fale algo, mas o filha da puta fica mudo. Por alguns instantes esqueci que ele não fala nada em público. Ele é um soldado, não um orador. Olho para ele que me faz um gesto pedindo que eu fale. Respiro fundo e encaro meu dever. Evito olhar o Lance pois não sei como ele vai reagir, mas sei muito bem como vai parecer.
- Boa tarde, espero que estejam todos bem. – excelente início de quem está nervoso. – bom, eu e Claude, nós, quando chegamos aqui não conhecíamos vocês e não sabíamos quão seguro era para mim e para ele. Na realidade ele viu um dragão, arco e flecha, espadas, adagas e armaduras, coisas que na Terra eram vistas na idade média, e essa não era uma época muito segura para mulheres, especialmente solteiras. Não que na Terra seja um paraíso, não é, mas a gente é bem livre por lá, meio que como aqui, mas não sabíamos na época. Então ele imaginou que se vocês achassem que eu era comprometida com ele seria mais seguro para mim, mas nós não somos, e não queremos continuar com a mentira mais.
- Então vocês não são namorados? – o Chrome perguntou.
- Não. Nós somos realmente melhores amigos. – eu respondi.
- Eu acho isso bem compreensível – disse a Huang Chu. – em um lugar estranho, vocês buscaram uma estratégia de proteção.
- E o que fez vocês nos contarem justo agora? – o Nevra perguntou.
- Culpa minha. – quase dei um chute no Claude. Ele ia dizer que tinha pegado o Solomon?
- Culpa sua?
- Sim. Eu... – acho que ele se tocou, mas é tarde demais para mudar. – eu...
- Você? – o Nevra olhava para ele como um gato com a presa nas garras, e o Claude sempre foi um mentiroso horrível.
- Claude fez isso apenas para me ajudar, e ele não se sentia confortável com a situação. Eu também não, mas eu queria continuar mais um pouco, pois queria ter mais tempo para ter certeza de que vocês não são facínoras, porém ele realmente não quer continuar, então decidimos parar por aqui.
- Eu estava falando com ele, mocinha. - Encarei o Nevra bem no olho bom dele e ergui meu queixo.
- Mia, meu nome é Mia. E meu amigo não está sob interrogatório até onde eu saiba, portanto eu posso ajudá-lo a responder. Ou isso virou um interrogatório e eu não estou sabendo? – olhei em volta questionadora e com o queixo erguido. Aquele Nevra não ia intimidar meu melhor amigo.
- Não é um interrogatório, Mia. – respondeu Huang Hua.
- Ótimo, então eu posso ajudar ele. Nós somos melhores amigos e é comum ele completar minhas frases e eu as deles. Moramos juntos há cinco anos. Além disso, eu era professora universitária na Terra, estou acostumada a falar em público. Claude não. A gente passou muita coisa junto, nada nem ninguém nunca irá me impedir de ajudar ele, fui clara?
- Claro. – O Nevra não estava satisfeito. Ele não estava acostumado a ser enfrentado, era óbvio.
E quando olhei em volta, encontrei sorrisos mal disfarçados e divertidos com a situação. Esse povo achava divertido me ver irritada? Inclusive o Lance, que tinha um sorriso de orelha a orelha para mim. Babaca. Um babaca lindo. O que será que ele achava disso tudo?
- Essa é a única coisa que vocês precisam revelar?
- Sim.
Huang Hua me encarou, como se pensasse em algo.
- Obrigada Mia e Claude, por serem honestos, vocês podem sair.
PDV Lance.
Ela não é comprometida. Meu coração está a mil com essa informação. Mia é uma mulher passional e isso é claro nos treinos dela, a forma como ela é intensa nas reações, como suas emoções afloram fácil. O dia em que ela chorou nos meus braços ainda me dá ânsias de partir ao meio quem quer que a tenha ferido a ponto de deixá-la com marcas emocionais profundas daquele jeito. E eu sei que ela ainda não conversou com a Ewelein, pois eu já a avisei do evento e ela me falou que a Mia não conversou com ela.
Eu estava conformado com meu destino de treiná-la e absorver o pouco que pudesse. Sei que joguei sujo no treinamento, tocando ela um pouco mais do que o necessário, mas me desculpava dizendo que não estava ultrapassando nenhum limite. Mas na festa, quando ela grudou nossos corpos e dançou daquela forma, deslizando e ondulando seu corpo macio e sensual contra o meu, com suas mãos em minha nuca, aquilo tinha sido uma tentação grande demais. Naquele momento eu quis que o namorado dela não existisse e eu pudesse tê-la para mim.
Exigiu todo meu treinamento e autocontrole sair de perto dela, sem agarrá-la e beijá-la na frente de todos. Se eu começasse a tocá-la, eu não pararia nem se o inferno se abrisse e me levasse. Eu não sabia como os casais funcionavam na Terra, mas em Eldarya se uma mulher comprometida dançasse como Mia havia dançado comigo, haveria briga. E o baile, dias depois, havia sido muito especial a forma como dançamos, a noite toda, conectados. Eu havia esquecido completamente que ela era comprometida naquela noite, de tão envolvido que fiquei.
Mas agora eu sabia que ela não era comprometida. E que Claude havia passado a noite com Solomon, meu segundo no comando, que havia me contado essa "novidade" antes da reunião pedindo para ser dispensado do treinamento de Claude. Deixarei para Claude contar a novidade para Solomon. Tenho certeza de que esse era o real motivo dos dois terem revelado a verdade mais cedo, o que Mia havia evitado que Claude revelasse para o Nevra.
Olhei minha pequena fúria com orgulho, a ficha caindo de que eu poderia tentar conquistá-la. E a não ser que eu tivesse desaprendido completamente as regras do jogo, ela estava muito interessada em mim. Minha pequena morena era livre, solteira como eu. Eu teria concorrência, já tinha visto muitos olhares sedentos para ela, mas todos tinham se contentado em apreciar à distância. Eu sei que eu não mereço essa dádiva do Oráculo, sei bem que não mereço. Mas eu sou egoísta demais para me negar a tentar. Eu não sou forte o suficiente para me negar isso.
Vi ela sair e entre os assuntos que discutimos, ela voltou à pauta. Ela e o treino com o Nevra.
- Ela demonstrou essas habilidades nos treinos antes, Lance?
- Nunca. – Contive a vontade de jogar algo na cara do Nevra. O que ele estava insinuando?
- É preciso muita habilidade para treinar e não demonstrar aquele nível de capacidade de luta. Ela me deu trabalho.
- Você foi pego de surpresa.
- Sim, fui. Mas no final, ela desistiu da luta, você não viu? Ela estava ficando mais forte a cada minuto, como se estivesse descobrindo a própria força ou sendo incapaz de conter o próprio humor. Essa garota é passional.
Olha quem fala. Mas ele estava falando a realidade. Nos treinos ela nunca demonstrou nada nem parecido com aquelas habilidades, e era visível que ela tinha evoluído durante a luta com o Nevra. Se calculado ou se espontâneo, eu não saberia dizer, mas pareceu espontâneo.
- Eu não acho que ela estava lutando contra você, Nevra. – Huang Chu comentou. - Eu a observei, os sentimentos dela estavam absolutamente confusos, uma mistura de medo e raiva, muita raiva.
- Ela estava com medo de mim? – O Nevra perguntou com a voz baixa e parecia realmente confuso.
- Sim. Eram os sentimentos dela, medo e raiva. Ela não estava com a cabeça no treino, mas em outro lugar. Você só estava ali, na hora. Acredito que alguma coisa a trouxe para o presente, então ela entendeu que você não era o inimigo que ela estava combatendo, por isso ela se rendeu.
Eu não gostei da ideia do Nevra ter assustado a Mia a ponto dela ter atacado ele. Me lembrei de quando peguei na garganta dela durante um treino e ela também me atacou, e olhei para a Ewelein, que entendeu meu questionamento silencioso.
- Nevra, durante o ataque, você tocou a garganta da Mia? – a Ewelein perguntou.
- Não. Por quê?
- Ela tem um passado possivelmente traumático. Há uma fase da vida dela da qual eu não obtive nenhuma única informação, da qual ela simplesmente não fala. Ela ainda não me contou, mas já teve reações estranhas no treinamento com o Lance.
Todos ficamos silenciosos. Não era novidade um guardião traumatizado chegar até nós, nós mesmos tínhamos nossas histórias, mas não tornava nunca mais fácil saber que alguém tinha passado maus bocados e sofrido maus tratos em alguma fase da vida.
- Eu apenas a ataquei para forçá-la a se defender, de novo e de novo. Ela respondeu melhor que os outros guardiões aos meus ataques. Mas eu nem a toquei.
- Eu vou deixar anotado. Em algum momento terei a oportunidade de conversar com ela.
- Seria bom, ontem depois do treino ela se trancou no quarto e só saiu hoje de manhã. – Chrome informou.
Por isso eu não tinha encontrado minha pequena morena em nenhum lugar. O que tinha acontecido no passado dela?
- Ewelein, chame ela para um exame, as asas dela apareceram novamente. Use como desculpa para tentar conversar com ela, veja como ela está. – Ouvi a Huang Hua dizer preocupada.
- Pode deixar.
Vi o Nevra disfarçar o incômodo, ninguém gostava de tocar nos pontos frágeis dos recrutas, especialmente os novatos, ainda frágeis e sensíveis. Ao mesmo tempo, se ela não falasse, nenhum de nós poderia saber quais eram esses pontos nela. Após terminarmos a reunião, enquanto almoçava, outro incômodo ainda rondava a minha mente. Ontem, enquanto via a Mia lutar, percebi que seu estilo era estranhamente familiar, e me lembrou muito o estilo do Valkyon. E eu sabia disso pois eu mesmo tinha treinado meu irmão. O que me lembrava da atitude dela diante do túmulo dele. Ela tinha alguma relação com meu irmão?
.。.:*☽*53 - Uma conversa franca *☾*:.。.
PDV Mia.
Saímos da sala da reluzente quietos. Claude não largou minha mão nem eu a dele. Quando estávamos debaixo daquela Cerejeira Centenária foi que nos arriscamos a falar.
- Eles aceitaram bem.
- Sim, melhor do que eu esperava.
- Agora você deveria ir falar com o Solomon.
- Fato. Mas não pense que me passou despercebido o sorriso bobo do Dragão.
- Ele estava sorrindo, né?
- E como.
- Ele é um dragão mesmo?
- Que? Eu não te falei? Ele realmente vira um dragão, como nas histórias. Um gigantesco dragão azul, todo de gelo.
- Uau. Eu queria ter visto. Eu acho que vi de relance, mas estava apagando.
- Você vai gostar de ver... e montar. – Ele disse com um sorriso sacana.
- Claude! – dei um grito levemente horrorizada e... excitada.
- Sim. Você precisa aprender Como Treinar o Seu Dragão.
- Claude!
- Pronto. Agora você não conseguirá pensar em mais nada sempre que olhar ele. Meu papel foi feito com louvor.
Vi Claude se levantar rindo e arrumar uma gravata imaginária, para em seguida sair em busca do Solomon, me deixando com pensamentos febris. Que merda! Eu realmente agora pensava em montar ele... E que história é essa de treinar? Idiota. Balancei a cabeça agitada. O que eu ia fazer agora? Resolvi que o melhor era tentar meditar um pouco, será que o Leiftan estava no lugar de sempre? Busquei ele no nosso ponto de encontro, mas ele não estava lá. Independente, resolvi me concentrar para meditar, eu estava precisando. Só que sempre que eu fechava os olhos eu imediatamente lembrava do dragão azul que eu tinha visto no corredor de relance, e me imaginava montada nele, e essa imagem me levava a outra, eu sentada no colo do Lance. Nós dois nos beijando, abraçando, as mãos dele no meu corpo...
- Ah, merda! – dei um grito, frustrada e levantei de supetão.
Comecei a andar de um lado para o outro me sentindo ansiosa. Quando vi o Leiftan chegar, não consegui me conter e abracei ele, feliz. Ele não estava com cara de muitos amigos, mas não me expulsou. Então dei um beijo estalado na bochecha dele, como fazia com Valkyon.
- Obrigada! Sua orientação foi de ouro.
- Fico feliz em ajudar, Mia. - Ele deu um suspiro profundo.
- Está tudo bem?
- Não. Mas não quero falar disso.
- Quer outro abraço? Abraços ajudam muito. Na Terra tem estudos que indicam que abraços de pelo menos um minuto contribuem no aumento de endorfina, além de acalmar a mente e melhorar diversos hormônios em nossos corpos. Abraçar faz muito bem.
- E você gosta de abraçar?
- Não. - Respondi sincera. - Mas você não me incomoda. Na realidade, eu gosto de você naturalmente. Como se eu te conhecesse há muito tempo.
- Talvez conheça.
- É. - Voltei a abraçá-lo e me deixei ficar ali por cerca muito mais de um minuto.
- Leiftan, a Huang Hua precisa vê-lo. - Levantei o rosto e dei de cara com o Lance. Dei outro beijo na bochecha do Leiftan e sorri para ele.
- Vai dar tudo certo.
- Obrigada, Mia. - Leiftan saiu calmo e elegante, como sempre, depois de acariciar levemente minha bochecha. Mas ele me preocupava, e muito. Sentia uma aflição no olhar dele, quando ele falava do passado dele. Mas não conseguia ler os sentimentos dele, nem me esforçando para poder ajudá-lo. Deve ser por ele ser um aengel. Pelo que li, essa raça tem a mais potente capacidade mágica entre os faeries. enquanto dragões são como verdadeiros tanques de guerra.
- Quer meditar, Lance? - Perguntei para o homem na minha frente, que estava com uma expressão fechada.
- Meditar?
- É, eu costumo meditar a essa hora com o Leif, mas ele não estará aqui. - Sorri para ele, tentando ser convidativa. Imagens nada comportadas invadiram meu cérebro sem aviso, e me sentei na posição de lótus. - Se você estiver livre, poderia me fazer companhia.
- Leif?
Eu estava pronunciando errado? Leiftan nunca corrigiu.
- Sim, o Leiftan. Mas você acabou de avisar que...
- Eu sei o que eu acabei de fazer. - Ele me cortou. E então se sentou do meu lado, cruzando as pernas em posição de lótus. - Eu não sabia que você era íntima do Leiftan.
- Hum. Eu senti afinidade com ele desde o barco, onde pude conhecê-lo. E desde que cheguei no QG, sempre medito e converso com ele.
- Esse é apenas um lado dele.
- Eu imagino. Mas não são todos complexos? Ninguém é 100% bonzinho e blá blá blá. - Sorri para ele divertida e toquei seu braço. Talvez ele estivesse preocupado que eu ficasse brava com o passado do Leiftan? - Eu já passei da época do maniqueísmo e sei o passado dele.
Mas o rosto do Lance ficou frio e ele fechou os olhos.
- Vamos meditar?
Me sentei na mesma posição de lótus e comecei a meditar, mas a energia pesada do Lance me impedia de entrar profundamente no estado meditativo. E meus pensamentos cheios de luxúria ficavam piores com ele ao meu lado, a lembrança dele nu, no banheiro, insistindo em ser a única imagem fixa na minha cabeça. Acabei abrindo os olhos e o encarando. Seu rosto estava sério, não relaxado. E a mandíbula estava travada. Não que eu fosse reclamar, ele estava lindo. Mas era assim que ele meditava?
- Você está irritado? - Perguntei baixinho.
- Estou analisando.
- Aconteceu alguma coisa?
Ele ficou em silêncio. Seria mau humor por falta de sono? Ele podia ter tido insônia novamente. Imediatamente cobri o rosto morta de vergonha com a lembrança de quando o encontrei de madrugada. Céus! Me deparei com ele como veio ao mundo! E não tive a decência de desviar o olhar! Meu cérebro travou! Só conseguia apreciar a perfeição que tinha diante de mim. Cada músculo, cada pedacinho de pele, até as cicatrizes eram perfeitas! Eu quase, quase fui até ele para tocá-lo e ter certeza se não estava sonhando, mas ele saiu antes que meu cérebro descongelasse. Foi a primeira vez que tomei um banho frio em Eldarya.
- O que foi, Mia?
Me dei conta que ainda estava com as mãos cobrindo meu rosto. O que fazer? Eu não conseguiria mentir. Optei por fugir de responder.
- Decidiu se está bravo ou não?
- Não estou.
- O que aconteceu?
- Por alguns minutos, me esqueci que é com cerejas achocolatadas que se atrai um Jeanylotte.
- Jeanylotte?
- Um mascote muito fofinho, ótimo para trazer itens de valor, fiel ao companheiro, mas totalmente impulsivo e impaciente. - Ele sorriu.
- Então use essas tais cerejas achocolatadas. E me mostre esse Jeanylotte quando o capturar.
- Não se preocupe, eu te mostro. Aliás, terá uma exposição de mascotes. O que você acha de encontrar um?
- Uma feira? - Olhei ansiosa. - É de adoção?
- Não. Você precisa comprar os ovos. Mas é a oportunidade de conhecer os mascotinhos. Quem sabe algum te cativa?
Eu vinha observando aqueles mascotinhos bonitinhos que ficavam no QG, e até me voluntariei para ajudar a dar banho nos filhotes, pois eles eram muito fofinhos.
- Adorei a ideia! Fica combinado!
Percebi que ele mudou de idioma, para outro que eu conhecia.
- Mia, você quer conversar sobre o que aconteceu ontem?
Abracei minhas pernas e apoiei meu queixo, encarando o horizonte e suspirei. Eu achei que teria um pouquinho mais de tempo.
- Eu perdi o controle, Lance.
- Certo.
- Essa história de treino... - Baixei a cabeça e respirei, pensando em como explicar. Não sei quanto tempo levei tentando organizar minha cabeça e emoções. - É confuso...
- Você quer conversar?
Apertei os lábios. Antes, eu apenas empurrei meus problemas. E eu sabia que tinha problemas. As terapias não tinham dado certo pois saber como os psicólogos se sentiam me deixava desconfortável, e eu acabava sempre na minha reação automática de modular meu comportamento conforme as emoções dos meus interlocutores. Aqui, pela primeira vez, eu estava livre dessa influência. Chegava a ser estranho. Tanto que, a contragosto, eu tinha que confessar que sentia falta e, mais vezes do que poderia admitir, sondava as emoções alheias apenas para me sentir confortável. Por outro lado, aqui eu finalmente conseguia ser completamente honesta sobre o que sentia, coisa que eu costumava ser apenas com Claude.
Me lembrei da conversa com a mulher albina e com Valk. Antes eu nunca representei risco para ninguém. Me lembrei das feridas que causei ao Lance, as mordidas no pescoço dele e na mão. Ele me acalmou dizendo que por ser dragão tinha sido superficial, mas precisou de curativos. E eu nem percebi o que estava fazendo. E durante o treino com Nevra, eu o ataquei com vontade. Ele é um membro antigo, segundo no comando, dizem que ele é o segundo melhor guerreiro do QG, talvez de Eel. Que ele derrota o Lance, ás vezes, nos treinos. Mas e se eu atacar uma criança? Uma mulher grávida? Um idoso? Uma pessoa ferida? Um doente? Ou alguém que não consiga se defender?
- Eu quero. Mas eu tenho medo. - Respondi com a voz baixa.
Ele suspirou de forma profunda.
- A Ewellein é a Chefe da Enfermaria e a pessoa mais indicada para conversar sobre questões emocionais. Nada impede que você converse com quem confiar, mas o ideal é que você receba ajuda profissional.
Enquanto falava, ele tocou no meu ombro, e me olhou abrindo os braços. Usualmente é o Claude quem me conhece o suficiente para saber quando eu preciso de um abraço. Devagarzinho, me arrastei para dentro do abraço que ele oferecia e fiquei ali, me sentindo aconchegada. Depois de um tempo tomando sol, me sentindo mais disposta, senti meu corpo mais relaxado e tranquilo. Me dei conta que ele estava com o queixo apoiado na minha cabeça e já ia reclamar quando ele moveu o corpo, esticando uma perna, usando um braço para apoiar o corpo e deixando o rosto contra o sol, de olhos fechados.
- Mia, outra coisa.
- O quê?
- Onde você aprendeu o idioma original? - Do que ele estava falando?
- Que idioma original?
- Esse em que estamos falando.
- Eu aprendi vários idiomas ao longo da vida.
Sempre achei que esse idioma era só mais um dos muitos que existem na Terra, nunca imaginei que fosse algo tão específico. Quando acordei eu o conhecia, me lembro de aprender com Fáfnir, mas nunca tive curiosidade de pesquisar sobre ele. Por quê? Não importa agora, pois não acho que é hora de falar isso para o Lance.
- Esse também? - Ele virou levemente o rosto e me olhou diretamente nos olhos.
Eu não tinha como fugir de uma pergunta tão direta. Não queria nem conseguiria mentir. Tampouco desejava falar a verdade.
- Eu posso não responder? - Perguntei.
Ele voltou para a posição original, os braços ao redor do meu corpo, esticou a outra perna também, criando uma barreira ao meu redor. Senti sua mão pegar um cacho e começar a enrolar a mecha.
- Por que você não quer responder?
Suspirei e tomei um tempo organizando meus pensamentos.
- Eu não entendi direito como eu aprendi muitas coisas que sei fazer. E eu não me sinto confortável para falar sobre elas agora. Não é nada perigoso, nem que ameaça Eldarya, nem os habitantes de Eldarya, ou ao menos não me parece, mas eu nunca entendi como e sempre foi uma fonte de angústia para mim.
- Você não acha que se contar conosco tem mais chance de entender? Nós crescemos em Eldarya, como faerys. Coisas que para você parecem extraordinárias, são normais para nós.
Refleti nas palavras dele. Faziam sentido, mas ainda não me senti confiante. Como ele veria minha experiência anterior? Ele pedia que eu colocasse na mesa tudo que passei a vida toda ocultando. Era desconfortável.
- Faz sentido, Lance. Mas eu cresci na Terra, sem compartilhar as coisas estranhas ou extraordinárias que me ocorriam. Aprendi a guardar para mim. Velhos hábitos não somem da noite para o dia.
- Você confiou no Leiftan.
- Eu confiei, e foi bom. E em você também, e também foi bom. Me dá um tempo, eu vou conseguir aos poucos, eu juro.
Ele soltou meu cacho e acariciou meu rosto. Estava virando uma mania dele e eu estava gostando dela. Virei meu rosto contra sua mão para aproveitar a carícia e fechei os olhos. Ficamos assim alguns minutos até que ele, sem parar a carícia, me fez outra pergunta.
- Certo. Tome seu tempo. Só saiba que você tem pessoas com quem pode contar aqui, tudo bem? - Mexi levemente a cabeça concordando. - E você poderia ajudar a Elise?
- Elise? - Perguntei sem abrir os olhos. As mãos dele tinham uma estranha combinação. Eram quentes, mas uma espécie de aura fria saia delas. Uma combinação gostosa.
- É. Nós achamos que ela é da mesma raça que você.
Abri os olhos surpresa e o encarei. Depois ergui meu rosto, absorvendo a informação.
- Como assim? - Vi ele recolher a mão e uma partezinha minha sentiu falta do seu toque em meu rosto.
- Nós analisamos os dados de vocês duas e, mesmo não sabendo a raça de vocês, as duas são extremamente parecidas em fisiologia e habilidade. Você tem certas habilidades que a Elise não tem, e ela tem uma que você não tem.
- O quê?
- Você tem aura de dragão e não consegue mentir para mim, nem eu para você. - Sorri para ele. Aquilo já não me causava desconforto, era até bom saber que existia uma pessoa no mundo que nunca mentiria para mim. - E você vê as sombras. Já Elise sente o que outras pessoas sentem e tem telecinese, você não.
Virei o rosto, sem graça.
- Mia?
- Sim?
- É uma pena que na sombra você aprenderá a disfarçar melhor o que sente.
Mordi os lábios, ainda mais sem graça.
- Se você for como a Elise, há sete anos sua habilidade se potencializou e há alguns meses novamente se fortaleceu, certo? - Suspirei profundamente. Não adiantaria fugir, adiantaria?
- Quase. Eu não sei dizer se foi exatamente há sete anos, pois entrei em coma e fiquei assim por um ano e meio...
Ficamos em silêncio alguns minutos até que senti que os dedos dele tocaram meu queixo me forçando a encará-lo.
- Olha para mim, Pequena.
Ergui meus olhos e o encarei, tímida.
- Não precisa responder. Foi durante seu coma que coisas estranhas aconteceram. Foi nele que você aprendeu o idioma original. E foi durante o coma que aprendeu muitas outras coisas, como lutar.
Não consegui evitar reagir com surpresa a cada frase que ele disse. Como ele tinha adivinhado? Ele sabia? Como? Senti seu dedo deslizar em meu lábio inferior de uma forma que paralisou meu cérebro. Então ele sorriu e beijou minha testa, liberando meu queixo.
- Quando você estiver pronta, eu estarei aqui, igualmente pronto para te ouvir. E juntos nós vamos tentar entender o que foi que aconteceu contigo, tudo bem?
Notei minha respiração ofegante e fiquei sem graça. Abaixei minha cabeça e recuperei no tranco as informações que ele me forneceu. A Elise era igual a mim?
.。.:*☽*54 - Mesma Raça *☾*:.。.
PDV Elise.
Encarei Mia e percebi que ela também está me analisando. Então eles acham que pertencemos à mesma raça? Fisicamente nós não somos nada parecidas. Nada. Tudo que ela é eu não sou. Nossa única semelhança é sermos mulheres. Mas a descrição da Ewelein e da Huang Chu foi clara. Mia sente as pessoas como eu e tem telecinese! E assim como eu, sentiu as habilidades se ampliarem sete anos atrás e pouco tempo atrás, antes de virmos parar em Eldarya. Além de termos chegado em Eldarya em situações muito parecidas e, pelo que nos disseram, até os horários coincidiam. Me concentro nos olhos cinzas dela, uma cor incomum, e vejo o quanto ela está animada. Aperto os lábios com a tensão.
- Então... - Ouço ela dizer. Ela sempre me pareceu ansiosa e elétrica. E impulsiva. Tento ler as emoções dela, e não consigo. Curioso. Assim como Lance e Nevra, ela é um ponto cego.
- Bom...
Nós duas nos encaramos e, parece que ela também está com a cabeça cheia.
- Estranho, né? - Elá dá um sorrisinho meio sem graça e eu rio de volta, também sem saber muito o que fazer. Qual o certo nessa situação?
- Muito. - Passo a mão no cabelo.
Ela encara a enfermaria onde estamos. Sinto que esse não é um lugar muito convidativo para conversar. Quando vou abrir a boca para convidá-la para sairmos e bater um papo fora dali, ela se antecipa ao meu movimento.
- O que você acha de conversarmos em outro lugar? - Ela indica com o ombro e a cabeça a Ewelein trabalhando um pouco distante. - Um lugar onde possamos ficar confortáveis e tranquilas?
- Que tal o Jardim de Música? Ele costuma ser tranquilo a essa hora. - Eu gostei do Jardim de Música quando visitei ele com Huang Hua, mas não tive chance de ficar lá muito, com tudo que aconteceu. Mas sempre o observo da janela do meu quarto.
- Ótimo! Pegamos umas bebidas no caminho? - Ela sugeriu já se levantando.
- Claro.
Saímos juntas da enfermaria depois de nos despedirmos da Ewelein e da Huang Chu com alguns acenos. Espero que elas não se incomodem por buscarmos mais privacidade. Passamos na cozinha e pegamos alguns itens para um pequeno piquenique. Karuto parecia nos esperar, ou já tem um kit pronto, pois rapidamente nos entregou uma cesta com sucos e lanchinhos. Fomos para o Jardim de Música em silêncio, cada uma imersa na sua própria cabeça. Chegando lá, conduzi a Mia para um lugar que eu havia notado anteriormente. Abaixo de uma das muitas árvores do lugar, mas a única cuja sombra permitia que nós nos sentássemos com os pés dentro da fonte.
- Excelente escolha de lugar. - Mia me elogiou, e pude ver que era sincero.
Ela já estava sentada na beira da fonte e tirava a bota que insistia em usar. Mia vivia usando roupas escuras, predominantemente pretas. E se no início eu pensei que era pela viagem. Agora, depois de algumas aquisições em Eldarya, era possível notar que era realmente o estilo dela. Cores eram apenas detalhes na sua vestimenta diária. Como ela conseguia usar preto com o calor que fazia?
- Eu notei esse cantinho quando viemos aqui com a Huang Hua. Ele é estratégico não?
- Demais! Única sombra que permite ficar na fonte. Você tem um olho excelente.
Apenas sorri. Anos como designer de joias e você aprende que o valor de algo está nos detalhes. Não é a quantidade de ouro ou diamantes que uma joia carrega que a torna valiosa. É sua história, os detalhes que a compõem, o trabalho do designer que a desenhou, as mãos que trabalharam o ouro com maestria, a pedra preciosa bem lapidada. Quanto mais refinado os detalhes, quanto mais a joia parece ter surgido perfeita e menos sinais e marcas de confecção, mais valiosa é a joia. E o mesmo vale para a vida. É nos detalhes que mora o valor das coisas.
Com esses pensamentos, tirei minha sapatilha e me juntei à Mia, com os pés dentro da fonte. Estamos no final do verão Eldaryano e eu já considero o calor daqui quase insuportável. Ficar na fonte era muito mais agradável. Assim como a fonte suave do meu quarto ajudava, e muito, a refrescar o ambiente nesse calor infernal. Peguei um pouco de água e joguei no rosto para me refrescar mais um pouco.
- Você também acha o calor aqui horrível?
- Sim. E eles nem tem ar condicionado...
- Céus! Eu mataria por um ar condicionado. Tive que pedir uma fórmula para irritação na pele para a Huang Chu. Depois de treinar com o Lance, por causa do calor, estava sofrendo com irritação em todo o corpo.
- Eu me recuso a me exercitar nesse clima. Terei um piripaque se continuar assim.
- E olha que o Lance disse que o clima já está fresco, pois é pior no tal Litha, mas já havia passado quando chegamos. Acho que é o Solstício de Verão deles...
- Litha? - Resmunguei levemente. - Que termo diferente. Espero não estar aqui quando esse período chegar.
- Duas. - Ela riu um riso nervoso. Provavelmente por saber que possivelmente estaremos aqui sim, e sofreremos uma eternidade no calor úmido que grudaria as roupas em nossas peles, irritaria nossas peles e nos obrigaria a fazer tudo a noite para evitar exaustão causada pelo calor. Isso se ela realmente compartilhasse o mesmo nível de aversão que o meu ao calor. Encarei a Mia com curiosidade.
- Então você também tem irritação na pele com o calor?
- E no sol. Fotossenssibilidade.
- Eu também. Foda, né?
- Demais. Sempre quis ir à praia. Aquele solzão bonito, o mar calminho, cheio de gente. Não que eu nunca tenha ido à praia, mas só vou em épocas mais frescas. E nem sempre o mar fica calmo e limpo. E chove.
- Sei como é. Tempo nublado na praia. Se a gente quiser praia na vida
- Falou e disse.
Ri com a forma como ela respondeu.
- O que foi?
- Seu jeito de falar. É engraçado, às vezes. - Respondi.
- Meus alunos falam assim. Às vezes me pego falando algumas coisas que eles falam. Não me esforço, mas ouço tanto que acabo repetindo.
- Como você consegue dar aulas, sentindo como sentimos? - Aquilo realmente era intrigante. Mas ela deu de ombros.
- Acho que do mesmo jeito que você tem um negócio. A gente dá um jeito. Eu aprendi a usar isso a meu favor. De certa forma. Até a juventude, eu só via o lado ruim dessas habilidades. Só via como elas me colocavam a parte do mundo e me isolava das pessoas. Mas há sete anos, depois do coma... Eu aprendi que não eram minhas habilidades que faziam isso, era eu mesma.
- Como assim?
- As habilidades são só... habilidades. Eu só via o lado ruim delas. E nunca me esforcei para ver o lado bom. Como saber como uma pessoa está só por ela estar ao meu lado. E poder oferecer ajuda sem que a pessoa precise pedir. Poder mudar o rumo da apresentação de um trabalho pois sinto que meu professor está desaprovando. E o mesmo nas minhas aulas. Eu consigo saber se minhas aulas são chatas ou interessantes.
Concordei com um gesto.
- Fato. Eu também aprendi a usar isso para vender minhas joias. E para desenhar também. Aprendi o que agrada ou não as pessoas. Mas antes foi muito difícil. O medo de ser descoberta...
- É horrível. Eu vivia assombrada com imagens de filmes de terror e ficção científica.
Subitamente a imagem da Mia sendo estudada por cientistas malucos ou queimada na fogueira apareceu na minha frente. É. Eu compartilhava aqueles mesmos medos. Então acenei com a cabeça.
- Eu tinha pesadelos com isso também. Ainda me incomoda na realidade.
Foi a vez dela acenar com a cabeça. Nós duas éramos mais parecidas do que podíamos imaginar.
- Para os Eldaryanos, falar sobre a própria raça é normal... - Mia falou encarando a estátua no centro da fonte. - Mas para nós, que crescemos no mundo humano...
- É aterrorizante. - Completei sem precisar pensar. - Ser diferente não é bem vindo na Terra. Tudo que é diferente é rejeitado. É preciso lutar muito para ser aceito.
Suspiramos juntas e ficamos encarando a fonte.
- Será que existem outras como nós por aí? - Mia me perguntou, e eu não soube o que responder.
.。.:*☽*55 - Vamos treinar juntas *☾*:.。.
PDV Mia.
Eu e Elise conversamos muito durante o dia inteiro, que passou num piscar de olhos. Nem notei as horas passarem. Se em termos de personalidade éramos diferentes, realmente compartilhamos habilidades e aspectos físicos. Faz todo sentido eles pensarem que somos da mesma raça. Elise é mais velha que eu dois anos, com 29 anos enquanto tenho 27, e algo que chamou a atenção de nós duas foi a estranha coincidência de ambas termos perdido nossos pais em acidentes de carro com motoristas bêbados. Os pais de Elise morreram há nove anos e minha mãe faleceu há quatro anos.
- Você acha que pode ser coincidência?
Ela negou com a cabeça.
- Nossa vida tem coincidências demais, você não acha?
Concordei. Um novo peso estava sobre meu coração, e provavelmente no de Elise. Algo ou alguém poderia ter provocado o acidente que matou nossos pais. O que significava... Que eles tinham sido assassinados. Permanecemos juntas, em silêncio por um longo tempo, até que Elise se manifestou.
- Hung Chu disse que nós devemos treinar juntas. Pois podemos evoluir melhor assim em nossas habilidades.
Olhei o céu e as primeiras estrelas que já apareciam no tecido celestial, tingido em tons que iam do rosa ao laranja e toques de vermelho. Descobrir Elise mudava a dinâmica das coisas. Ela era observadora e perceberia facilmente que eu já era treinada e sabia controlar minhas habilidades. Decidi que, se ela perguntasse, eu seria honesta.
- Sim. É o ideal. Como eu te disse eu já treinava antes minhas habilidades, então, acho que conseguiremos evoluir bem.
- Certo. Mas eu não entendo...
- O quê?
- Eu não vejo a sombra e você sim.
Apertei os lábios.
- Eu não sei o motivo. Só sei que acordei assim depois do coma. - Aquela era a mais pura verdade. Não fazia ideia do motivo pelo qual conseguia ver as sombras. Não me lembro de terem me explicado. Poderia ser consequência da forma como fui salva? Será que todas as diferenças observadas entre mim e Elise eram frutos do que Valkyon fez comigo?
- Do coma?
- Uhum.
- Certo.
- Eu vou conversar com o Chrome sobre as coincidências de nossos pais. Eu já estou pesquisando sobre a sombra, mas eles não tem registro sobre nenhum ser como o que vejo. Embora eu não veja a sombra como você viu na Lua Vermelha.
Ao mencionar o satélite natural da Terra, nós duas encaramos o céu em busca de sinais dela e lá estava o satélite, dando sinais do seu despertar. Anos e anos da minha vida acreditando que a Lua era apenas um corpo celeste, mas agora... Eu ainda não entendia bem o que significava aquilo e como a Lua podia ser mágica.
- Eu também não entendo por que a sombra me ataca... - Ouvi Elise comentar e me senti levemente culpada. Eu tinha uma teoria. Uma que envolvia revelar tudo que aconteceu sete anos atrás. Mas não me sentia pronta a compartilhar com todos uma história tão pessoal, e sempre guardada a sete chaves.
- E por que ela não me ataca, não é? - Questionei e ela acenou positivamente. - Eu tenho uma teoria Elise. Me dá um tempinho para desenvolver ela na minha cabeça. - Vi a curiosidade nos olhos dela. - De qualquer forma, não acho que é culpa sua. Mas há algumas coisas que estão faltando... Coisas que não fazem sentido ainda.
- Leve seu tempo. São coisas demais acontecendo. Falando por mim? - Elise piscou de forma confidente para mim. - Acho que nós duas passamos uma vida inteira sob pressão. Não custa nada deixar as coisas um pouco mais leves para nós, o que acha?
- Seria bom. Mas eles parecem ansiosos. - Comentei enquanto olhava a imensa torre da Guarda de Eel, que se erguia como uma espada em direção ao céu do entardecer.
- Também notei. Tem algo acontecendo. Mas não acredito que esteja relacionado a nós duas diretamente.
- Você acha? - Perguntei para Elise. Pessoalmente sentia que nós duas éramos parte integrante das preocupações deles.
- Tem algo maior acontecendo. - Ela começou a se espreguiçar, dando sinais de que ia se levantar. - Aquele treinamento, todos pareciam surpresos. Não é algo comum. As conversas nas refeições, as pessoas falam que tem alguma coisa estranha. Algo relacionado a portais.
- Entendo. - Eu também havia notado a surpresa. - Amanhã, depois do treino da Huang Chu, eu pensei em desenhar a sombra que você viu, e comparar com a que eu vejo. O que você acha?
- Você desenha?
- Uhum.
- É um talento maravilhoso. É uma ótima ideia ter uma referência do que vemos. E podemos chamar o Lance e o Nevra. Eles também vêem. Rapidamente, mas vêem.
- É mesmo? - Eu não sabia que eles viam.
- Sim. E seria bom comparar os pontos de vista, não?
- Certamente.
Juntamos nossas coisas e começamos a caminhar de volta para o QG. Uma caminhada lenta e tranquila. O dia havia sido produtivo, e ao mesmo tempo saudosista, cheio de revelações. Trouxe novas preocupações e perguntas, depois de sanar outras poucas, de forma completamente desproporcional. No Salão, entregamos ao Karuto a cesta e pegamos nosso jantar, e nos sentamos em uma mesa mais isolada..
- Parece que em breve eles terão uma comemoração. - Comentei entre uma garfada e outra.
- Que tipo?
- Dessas datas especiais. Lammas, se não me engano. E tem outro nome impossível de pronunciar.
- E o que ele terá de especial?
- De acordo com o Chrome, tem muita comida. Pois é quando se celebra a colheita. O que para Eldarya é mais especial ainda, pois eles passaram fome por séculos. Tem apenas sete anos que eles conseguem plantar e colher por aqui.
- Depois do tal Sacrifício Branco?
- Sim. Somente depois desse momento que Eldarya se tornou fértil.
- E quando será?
- Não sei a data. Pela descrição do Chrome me pareceu nossas festas juninas. Tem barraquinhas com comidinhas, danças e uma grande fogueira central, onde será feita uma oração de agradecimento pela colheita.
- Hum, definitivamente uma Festa Junina. Seria bom comer uns quitutes juninos. E isso significa que o clima está esfriando. - Ela comentou sorrindo, esperançosa. Eu tinha a mesma esperança em mim.
- É o que eu espero, já que uma grande fogueira no verão seria algo insuportável.
- Nem me diga... Imagina o forno?
Gememos ao mesmo tempo, e rimos juntas da imagem formada e terminamos nossa refeição. Depois seguimos para nossos quartos cientes de que uma nova etapa começava para nós duas.
.。.:*☽*56 - Treinando Juntas I *☾*:.。.
PDV Elisa.
Há alguns dias que treino magia com Mia. O conforto dela é impressionante. É óbvio que ela é daquelas raras mulheres confortáveis na própria pele. Focada no que faz, no que deseja. Mesmo quando não consegue fazer o que deseja, ela ainda se mantém alegre e tranquila. E agora eu sei que não é forçado. É dela essa leveza na vida. A irritação dela passa com a mesma velocidade com que chega. E em nenhum momento isso a torna arrogante ou desagradável. Na realidade isso atrai as pessoas para perto dela, como se ela fosse uma luz ou uma flor de aroma inebriante e os seres ao redor ansiassem por ela. E ela é franca, não daquele tipo de pessoa que usa a verdade como arma. Não. Ela sabe ser delicadamente franca, impor limites claramente. Não gosta de estar com muitas pessoas ao redor, isso é óbvio, e a torna ainda mais atrativa para todos ao redor.
Ao mesmo tempo ela é fechada, como pouquíssimas pessoas que conheço. Após dias treinando juntas, sinto que há uma amizade se formando, forjada pela similaridade, mas ela nunca fala da família, da infância, do passado. Nunca. Tudo que eu descobri dela é que era professora universitária em uma universidade federal no Brasil. E mesmo assim não tenho ideia de que estado ou cidade ela vem. E seu sotaque não ajuda, pois quase não existe.
Sorrio divertida vendo Lance passar pela terceira vez na porta do Laboratório. Qual desculpa ele dá para si mesmo para fazer esse papel? Em todo lugar que Mia está, ele parece dar um jeito de aparecer do nada, com alguma entrega, alguma encomenda, alguma coisa que justifique sua aparição. E para desespero feminino e masculino, não parece notar ninguém além da pequena Mia. O curioso é que ela não parece se dar conta das desculpas esfarrapadas dele. Não, ela sempre o vê com um sorriso iluminado e definitivamente encantado.
O que me lembra Jhalil, e as duas noites quentes que compartilhamos. Ele é um amante incrível, habilidoso e atencioso. Mas tem esse fetiche por rasgar roupas que me fez declinar nosso terceiro encontro, pois não queria perder o vestido bonito que ele me deu para compensar o primeiro que ele rasgou. Preciso verificar se ele sempre vai querer rasgar todas as minhas roupas. Também notei o olhar desejoso de uma certa harpia, e estou imaginando como será fazer sexo com uma harpia. As garras dela me assustam, mas ela é linda, com seu corpo metade feminino e metade águia. Alasya é o nome dela, se entendi direito. Ela tem um sotaque hiper carregado. Por algum motivo a imagem do Nevra me vem à mente, e quase materializo ele com luar, o que me obrigou a desfazer a imagem rapidamente.
- Tudo bem? - Ouço a voz de Mia com um tom preocupado.
- Sim, sim. Foi só uma distração.
- Beleza. É que pareceu que você ia moldar o luar mas parou de repente.
- Ah! Nada importante.
Vi Mia moldar o luar com aquela habilidade impressionante dela, enquanto eu precisava usar minhas mãos, imaginando que estou moldando com as mãos.
- Você decidiu? Sobre a proposta da Ewellein?
Encarei ela e suspirei. Eu nem sei o motivo, talvez a leveza, o fato dela ser reservada, ou por compartilharmos habilidade e, talvez, sermos a mesma raça. O fato é que revelei para Mia que Ewellein me pediu para começar um tratamento para meu luto e depressão. Parece que há um médico da mente no QG. Eu não pretendia aceitar, mas Mia me contou como ela acha que as Sombras agem, e por que algumas pessoas são afetadas ou não. Ela disse que a Sombra potencializa muito qualquer sentimento negativo e depois, com o acesso, começa a influenciar os pensamentos das pessoas, tornando elas armas vivas. Isso me convenceu a aceitar ajuda. Não gosto da ideia de machucar pessoas por ter problemas emocionais.
- Eu começo hoje. - O sorriso carinhoso dela me aqueceu, me animando para meu tratamento. Talvez não seja tão ruim.
- Vai valer a pena, você vai ver.
- Só espero não ser um alvo fácil para a próxima sombra que aparecer por aqui.
- Você não é um alvo fácil. - Mia segurou minhas mãos entre as dela e buscou meus olhos, cheia de carinho. - Lutar contra um inimigo desconhecido é muito difícil, pois você nem sabe que é um alvo.
Murmurei uma resposta baixa. Aquilo tudo me deixava desconfortável. Eu ainda sinto falta da minha vida, de administrar minha empresa. A ideia dos meus negócios falindo, da herança de meus pais desaparecendo, me causa um aperto no peito.
- É sério. - Ela reafirmou e então encarou nossa agenda. - Nós já treinamos a conjuração de magia, a materialização de luz do luar e telecinese. Agora só falta o escudo mental e asas.
Me encho de convicção e tento fazer como Mia me ensina. Enquanto ela envolve a flor rapidamente em um escudo de suave luz prateada, eu não consigo projetar nada. Nem um raiozinho, nem uma barreira. Bufo insatisfeita. Por que ela consegue fazer coisas que eu não? Me consolo lembrando que a mãe dela nunca a reprimiu, apenas orientou. Por isso ela tem anos de treinamento na minha frente, mas a razão dessa resposta não conforta meu coração oprimido. Os minutos passam e, mesmo que Mia seja a paciência encarnada, nada acontece. Após um tempo, desisto e seguimos para a prática das asas, algo que eu conseguia fazer aparecer com mais facilidade que Mia.
Exceto pela noite da Lua Sangrenta, quando ambas revelamos asas vermelhas, nossas asas eram semitransparentes, a minha é mais dourada, com pontos rosados, enquanto a de Mia é prateada com alguns pontos avermelhados e outros pontos pretos. Huang Chu nos pediu para sempre treinarmos as asas aqui nesse salão do Laboratório, pois parece que o pó que enche o lugar ao nosso redor é riquíssimo em maana, e ela descobriu que ele é capaz de substituir alguns elementos em algumas magias. Curiosamente os mais raros e difíceis de encontrar como orbes e garras de dragão. O pó também potencializa magias e alquimias, dependendo de como é usado. Huang Chu tem feito várias experiências com ele. Concordei com Mia quando ela disse que se sentia a Tinker Bell quando via o pó se soltar das asas dela em abundância.
Mas nenhuma de nós consegue voar. O que torna esse salão seguro, pois o teto é baixo. Quando usamos os músculos das asas, às vezes somos jogadas de lado, no chão ou subimos e perdemos o controle. Voar não é tão fácil e intuitivo como mostram os filmes e desenhos. E embora Mia pareça também enfrentar problemas para controlar o voo, sempre me lembro da destreza dela enfrentando o Nevra. Mas ela disse que na hora ela ficou com raiva e agiu mais por impulso que com algum tipo de controle.
- Quando será que o Nevra retorna? - Escutei Mia perguntar curiosa, enquanto usava um aparelho parecido com um aspirador de pó para recolher o pó de nossas asas.
- Ele não está no QG?
- Acho que não. Eu sempre o via na Biblioteca ou no espaço da Sombra, mas não o vejo desde... - Ela fez uma pequena e quase imperceptível pausa. - o almoço.
- Será que ele foi punido? - Ela me encarou surpresa.
- Por que ele seria punido?
- Por ter agido como um babaca. Nenhum treinador deveria agir daquela forma.
- Ele apenas nos pressionou um pouco. Mas ele não fez nada além.
- Você saiu mal do treino com ele.
- É uma questão particular, Elise. Nada a ver com o Nevra. Na hora eu fiquei super chateada e brava com ele. Mas não fui justa, pois ele não tinha como saber. Não acredito que ele tenha sido punido. Creio que ele deve estar em alguma missão... Lance! - Então o platinado passou mais uma vez pelo laboratório? - Você sabe onde está o Nevra?
- Em missão, por que? - O Platinado encarou ela com um ar desconfiado que me obrigou a conter um riso. Alguém aqui é um ciumento.
- Curiosidade apenas. Eu não o vejo há vários dias, e sempre o via na biblioteca e com o pessoal da Sombra.
- Ele volta em duas semanas, provavelmente. - O olhar dele percorreu o salão. - Vocês estão livres?
- Sim. Estávamos apenas terminando de recolher o pó das nossas asas.
- Querem almoçar comigo? - Ele perguntou enquanto limpava um pouco do pó prateado e furtacor do cabelo de Mia.
- Sim. Eu tô com muita poeira? - Ela questionou tentando limpar o rosto e os cabelos.
- Apenas um pouco... brilhante. Vamos?
Pensei em negar, pois não quero ser vela, mas meu estômago fez um barulho reclamando. Eu sempre fico faminta depois de treinar e aceitei almoçar com os pombinhos.
.。.:*☽*57 - Habilidades *☾*:.。.
PDV Mia.
Já são duas semanas treinando com Elise. Ela está evoluindo muito, eu também. Nosso controle das asas aumentou significativamente, a ponto de conseguirmos nos levantar do chão com controle, e voar pelo QG sem problemas. Mas é cansativo. Quando me lembro que usei asas na luta com o Nevra, eu não consigo entender como. Não está sendo fácil fazer isso conscientemente. Elise evoluiu em todos os treinos e estamos cada vez mais no controle de nossas habilidades.
Claude e Solomon assumiram o relacionamento deles, e agora Claude quase sempre dorme no quarto do Solomon. Aliás, preciso confessar que, fora o fato de Solomon ser terrível na dança e meio sério demais, ele faz um casal perfeito com Claude. Solomon trata Claude com todo o carinho e devoção, e é sério o suficiente para controlar a impulsividade do meu melhor amigo. E os dois vivem trocando olhares um para o outro, sorrindo. Solomon meio que entrou na nossa vida mesmo, pois ele sempre está com Claude quando almoçamos, jantamos. Ontem os dois estavam no meu quarto me ajudando a mexer na decoração. Comprei um cavalete e algumas telas para poder voltar a pintar.
Fico brincando com a magia de arco-íris que já conheço de cor, enquanto espero Elise. Nos últimos dias, com o Claude um pouco mais concentrado em Solomon, acabei fazendo um monte de amigos. Pessoas que se aproximaram e com as quais estou descobrindo afinidades. Mas o melhor é o Lance. Ele tem sido extra atencioso, e sempre que consegue, faz suas refeições comigo. Eu sei que ele tem um bocado de ocupações, mas o fato dele sempre arranjar tempo para me treinar e para estar comigo, me deixa feliz. Especialmente por ele lembrar de coisas sobre mim. Como o doce que eu gosto, sabores que prefiro. Ele agora até pega sobremesa, só para me dar.
Me pego sorrindo como uma tola e fazendo corações multicores no ar quando finalmente Elise chega.
- Mia, você está esperando há muito tempo?
- Não. Na realidade não sei, estava distraída.
Antes de começarmos a definir o que treinaremos hoje, como sempre fazemos, vejo Huang Chu entrar no laboratório junto com o Nevra.
- Olha quem voltou. - Comentei brincando para o Nevra. Mas claro que ele fez apenas uma mesura discreta com a cabeça e já foi direto ao assunto. Que vampiro mais sisudo, parece a personificação daquele gato bravo da internet!
- Bom dia, Mia e Elise.
- Bom dia. - Olho a Elise curiosa. Eu sei que ela é introvertida, mas ela costuma receber as pessoas com um sorriso. Vejo que ela não olha para o Nevra e fico surpresa. Será que ela não vai com a cara dele? Eu já percebi que a Karenn evita ela, e o Chrome por tabela, já que aqueles dois são unha e carne. Será que rolou alguma coisa com Nevra?
- Meninas, o Nevra veio acompanhar o treinamento de vocês. - Vi Elise resmungar baixinho e estranhei mais ainda. Tem alguma coisa aí.
- Beleza. Nós duas ainda não decidimos o que treinar hoje. - Comentei e encarei a Elise.
- Como vocês estão avançando? - Nevra perguntou com a mesma seriedade. Custava colocar um sorriso simpático nesse rosto? Quem sabe ele ficava mais bonito. Tentei puxar da memória alguma vez que vi o Nevra sorrir e não lembrei. O que me causou uma careta. - Algum problema, Mia?
- Não. Apenas lembrei de uma coisa. - Respondi disfarçando. - Nós duas evoluímos bem com a conjuração de magias. Até agora não descobrimos nenhuma que não conseguimos realizar. Mas algumas nos deixam cansadas, como a de cura. - Olhei a Elise esperando que ela falasse algo, mas ela manteve os lábios religiosamente fechados. - Nossa capacidade de sentir o que os outros sentem permanece a mesma. Na telecinese eu consigo levantar coisas mais pesadas que a Elise, mas os limites dela estão aumentando. Nós duas já conseguimos controlar as asas e os voos, mas precisamos seguir treinando para fortalecer os músculos das asas. Deixa eu ver o que mais.
- Você consegue fazer o escudo e eu ainda não descobri como fazer isso. E descobrimos sem querer que conseguimos ler a mente das pessoas se nos concentramos nisso.
Nevra encarou a Elise como se aquela fosse uma informação grave.
- Ler pensamentos? - Ela apenas assentiu.
- Sim, é como sentir as emoções ou sensações, quando estas são muito intensas. Mas no caso, a gente consegue ver e até ouvir o que a pessoa estiver pensando.
- Elas escutaram os meus pensamentos. - Huang Chu explicou. - Eu preparei uma poção para bloquear a capacidade delas de sentir emoções e sensações, que funcionou razoavelmente em mim, mas durante o treinamento, elas conseguiram ler meus pensamentos.
- E nenhuma de vocês fazia isso antes? - Nós duas negamos. - E materialização de luar?
- Seguimos nos aperfeiçoando. Agora estamos treinando projeção, no que a Elise é bem melhor que eu. - Sorri levemente tentando desanuviar o clima entre os dois. E vi que Huang Chu está analisando ambos também.
- Nevra, elas podem testar essa habilidade em você? Seria interessante analisar os resultados. - Huang Chu propôs e já se pôs a ligar alguns instrumentos, os mesmos que sempre são ligados em nossos treinos. Posso jurar que o Nevra demorou demais para responder.
- Eu não acho que vai dar certo, Huang Chu. - A Elise comentou.
- Por quê?
- Eu nunca consegui sentir o Nevra e o Lance. - Como assim ela nunca... Espera aí? Ela já sondou o Lance? Por quê?
- Sim, você comentou isso na viagem de volta. - O Nevra cruzou os braços e me encarou. - Ainda assim é melhor testarmos novamente. Podemos verificar se você consegue, Mia.
- Tá. - Elise foi a primeira a tentar, mas nada. Olhei para a Huang Chu, esperando a liberação dela. Assim que recebi um sinal para começar, me concentrei no Nevra. Imediatamente senti que ele estava desconfortável, e contando números em sequência.
- Você está contando números e mentalizando frutas da meia-noite? - Projetei a imagem que ele estava mentalizando.
- Exatamente. - Ele me encarou.
- E você está... desconfortável. - Percebi que havia algo mais e foquei. Imediatamente me arrependi, pois me senti invadindo a privacidade dele.
- Algo mais? - Ele perguntou, com um desconforto ainda maior. Senti meu rosto esquentar um pouco antes de responder.
- Ãh? Não, não. - Eu nunca diria em voz alta que percebi que ele se sente extremamente atraído pela Elise. Tipo, muito mesmo. E que ele não estava gostando dela estar tão séria. Ele estava com saudades dela, muita. Na realidade o que vi me deixou bem sem graça. E o alívio que senti dele antes de desfazer a conexão, me garantiu que eu tinha feito a escolha certa.
- Sua percepção é excelente, Mia. Vou chamar o Lance para verificarmos se você também consegue ler ele.
Quase gritei um não, mas me contive. Vi o Nevra sair da sala rapidamente. Eu não quero sondar o Lance, isso seria desconfortável. Eu gosto dele, e se ele não gostar de mim? Tipo, eu acho que ele gosta, mas e se não?
- Curioso você ser capaz de ler o Nevra e a Elise não. - A voz de Huang Chu me tirou da minha reflexão.
- Sim, sim. Mais um item para o caderno de diferenças.
- Mas é normal, mesmo sendo da mesma raça, podem haver diferenças. Nós apenas não sabemos ainda o que causa essas diferenças.
- Certo. - Vi o Lance chegar, sério. - Oie. - Acenei de leve com a mão, já completamente sem graça.
- Olá. O Nevra me disse que quer testar a habilidade das duas em telepatia.
- Exatamente, Lance. - Huang Chu respondeu. - Nevra, enquanto isso, tome essa poção, pois quero descobrir se ela é eficiente em você. Pode começar Elise.
Assim como da outra vez, ela não conseguiu ler nada. Mas assim que comecei a focar, percebi que ele estava confortável, ao contrário do Nevra.
- Você está confortável, e um pouco preocupado. E está pensando em... flores? Acho que são rosas. - Comentei surpresa e projetei o pensamento dele, as rosas que ele estava imaginando. E imediatamente senti uma onda de carinho direcionada a mim. Sorri, surpresa e ele simplesmente pensou que eu era mais bonita que as flores. O pensamento dele aqueceu ainda mais meu rosto, mas não soube o que fazer.
- Exatamente, Mia. - Lance comentou.
- Rosampanhes? É uma flor bem específica, Lance. E você projetou com perfeição, Mia. - Huang Chu comentou sorrindo.
- Obrigada. O nome é rosampanhes? - Olhei para o Lance e ele confirmou. - Elas são lindas. - Agradeci mentalmente, desejando que ele me ouvisse. Imediatamente ele me encarou completamente surpreso.
- Uou, Mia. - Lance me encarou com uma expressão surpresa e deu um passo para trás. - Você projetou seu pensamento para mim? - Ele perguntou.
Encarei ele confusa.
- Não sei...
- Eu ouvi sua voz na minha mente. - Ele comentou.
- O que você ouviu? - Perguntei e ele sorriu.
- Elas são lindas. Foi o que você pensou?
- Ahhh! - Fiquei absolutamente sem graça. - É... Eu achei as rosas realmente bonitas. - Imediatamente percebi que a Huang Chu estava se divertindo. Mas o Nevra foi obscuro para mim. - Ei, eu não consigo mais sentir você Nevra. Nem seus pensamentos. - Comentei ansiosa por tirar a atenção de mim e do Lance.
- Excelente. A poção que preparei funciona. - Huang Chu comemorou.
Apresentamos nossas outras habilidades para o Nevra e o Lance, que observavam atentos nossas ações. Faziam perguntas e comentavam uma ou outra coisa. Quando finalmente terminamos o treino, Nevra me surpreendeu com uma proposta.
- Mia, é interessante que você, durante seus treinos, inclua seu escudo e telepatia. Pode ser uma vantagem muito interessante em caso de batalhas. - Imediatamente fiz uma careta.
- Eu não gosto de violência, Nevra. E prefiro ficar longe de batalhas. - Afirmei com firmeza.
- Todos nós preferimos, Mia. - O olhar do Nevra não estava focado em nada naquela sala, mas em alguma memória. - Mas nem sempre conseguimos. E é bom estar preparada para se defender caso a batalha venha até você.
Tive que admitir que ele estava certo. Assim como Lance. Suspirei e por alguns segundos me questionei, por que eu tinha a sensação de que a batalha estava vindo em minha direção? Como uma nuvem escura no horizonte, anunciando uma mudança para pior.
- Excelente sugestão, Nevra. Nós já estamos treinando o escudo, mas não a telepatia. Vou incluir no treinamento da Mia. - Lance comentou me dando um sorriso rápido.
.。.:*☽*58 - Escudo *☾*:.。.
PDV Mia.
Já fazem alguns dias que Lance decidiu treinar meu escudo. O que trouxe à tona minhas memórias com Valkyon, quando ele treinou meu escudo, para que eu fosse capaz de proteger a mim e outros. Os dois eram muito parecidos. A forma como ensinava, o estilo de lutar e me atacar. Algumas ações do Lance foram idênticas às do Valkyon. Mas Valk nunca me deixou sem graça, ou distraída, como Lance faz. O que é estranho, afinal eles são gêmeos.
Travei a respiração ao me dar conta que me distraí lembrando do Valkyon e deixei meu escudo fraco. A espada de treinamento do Lance parando a alguns centímetros do meu rosto. O ar paralisado em meus pulmões enquanto o choque me fazia encarar a lâmina com medo de respirar e mover meu corpo um milímetro que fosse.
- Você se distraiu. - Ele disse com um tom de voz severo enquanto afastava a lâmina do meu rosto.
- Me desculpe. - Falei baixinho, depois de recuperar meu fôlego.
- Numa batalha você estaria morta.
Respondi com uma careta e mostrei a língua para ele, me virando irritada.
- Eu já falei que não gosto da ideia de batalhar. - Resmunguei.
Senti a mão do Lance agarrar meu punho antes que terminasse de me virar.
- Nem sempre podemos escolher não lutar, Mia.
- Mas se eu treino, não significa que eu espero uma luta?
- Seu ponto é válido, mas te leva a uma falsa conclusão. Você treina pois tem habilidades, e treiná-las ajuda no seu desenvolvimento. Nós não a forçaremos a batalhar. - Senti os dedos dele cederem na pressão e entregarem um carinho suave no meu pulso. Algo que me fez querer sorrir, mesmo chateada com a ideia de lutar. - Mas e se o QG for atacado? Se você for atacada? Suas habilidades, como o escudo, são muito úteis para proteger os inocentes. Vidas podem ser salvas graças ao seu escudo. Mas para isso, ele precisa ser estável.
O desgraçado tinha razão, e ele ter razão me irritava.
- Você não entende...
- Então me explica.
Suspirei alto.
- Quando você atinge o escudo, eu sinto o golpe, na minha mente. É quase doloroso. É extremamente desagradável.
- Essa é uma sensação comum entre os que podem projetar magia. Treinar seu escudo a deixará mais resistente a essa sensação desagradável, Mia. Eu não gosto de fazer isso, de saber que você sofre, mas sua sobrevivência pode estar em jogo.
Encarei o dragão desgostosa, com uma dor de cabeça se anunciando, como nos treinos anteriores.
- Podemos parar por hoje? Minha cabeça está começando a doer. - Fiz um beicinho para ele, dengosa.
- Claro, Pequena. Podemos sim. Você já resistiu mais do que ontem.
- Excelente! - Encarei ansiosa a cesta que ele trouxe para o treinamento.
Notando a direção do meu olhar, Lance se aproximou e falou no meu ouvido, me causando um arrepiozinho gostoso:
- Curiosa? - Senti um arrepio percorrer meu corpo e tentei disfarçar esfregando os braços e saindo de perto dele. Que voz tinha sido aquela? Baixa e quase acariciando minha orelha.
- Muito! O que tem ali?
- Pode abrir.
Encarei ele rapidamente, para confirmar a permissão, depois fui rápida até a cesta e abri uma das abas.
- Suco! Qual o sabor? E Bolo de chocolate com morango! Que delícia! Aquilo são pãezinhos adocicados? E sanduiche?
- Suco de Morangos Pistaches e Açaí, uma fruta da Terra e, pelo que verifiquei, do Brasil. - Encarei ele surpresa. Eles conseguiram açaí? Abracei o braço dele e dei um beijinho, feliz.
- Eu adoro açaí. Creme ou suco, é sempre bom.
- Fico feliz em acertar.
- Combinado com Morangos pistaches deve ficar ainda melhor!
Ele sorriu, parecendo satisfeito.
- Que tal irmos para o Jardim de Música e comer?
- É um piquenique? - Perguntei ainda abraçada a ele.
- Só se você quiser.
- Eu quero, quero muito. Tô morta de fome.
- Aqui. - Ele me estendeu um pequeno vidro com um líquido amarelado. - Remédio para dor de cabeça. Eu vi que os últimos treinos você parecia terminar com dor de cabeça, então conversei com a Ewellein. Ela me deu o remédio que te daria quando você a visitasse mais tarde.
Aquela informação encheu meu coração de felicidade. Ele realmente prestava atenção em mim, nas minhas necessidades.
- Você é o melhor, Lance.
- É minha responsabilidade manter você bem.
- Pode ser, mas nem todo mundo nota essas coisas.
Respondi sorrindo e tomei o remédio para a dor de cabeça que começava. Chegamos ao Jardim de Música e Lance espalhou um belo tecido azul claro, com flores bordadas nas laterais, no chão, bem ao lado de uma árvore frondosa. Na hora me questionei se não deveria ter vindo mais arrumada para o treino. Mas como ficaria arrumada depois de correr, pular e lutar? Alisei minha camiseta e shorts pretos, e tentei garantir que meu cabelo estivesse minimamente domado.
- Você está linda. - Escutei Lance comentar com um sorriso, agachado, arrumando as coisas para o piquenique. Meu rosto queimou por ter sido pega me arrumando, e pelo elogio.
- Obrigada.
Observei enquanto ele distribuía o suco, dois sanduíches, fatias de bolo recheado, pães doces, uma garrafa térmica e salada de frutas. Tinha comida demais ali. E estava tudo do mesmo lado do tecido no chão, sobrando apenas um lado para nós dois nos sentarmos. Tirei meu tênis e meia e gostei da sensação da grama nos meus pés. Lance se sentou depois de tirar a bota, encostado na árvore e estendeu a mão para mim. Devagar, me juntei a ele, tentando decidir onde sentar. Ele solucionou minha dúvida rapidamente.
- Pode encostar em mim, se quiser.
- Posso?
- Claro. - Ele se ajeitou e me encostei nele.
Ficamos assim um período longo, apenas descansando, em silêncio. Me senti confortável em seus braços. Até que a fome me fez abandonar seus braços em busca de comida. Encarei as opções e decidi que queria o sanduíche primeiro.
- Sanduíche? Com suco? - Perguntei, me oferecendo para pegar o que ele desejasse.
- Sim, obrigado.
Servi o suco em dois copos bonitos e entreguei ambos para ele, assim ficaria mais fácil. Peguei os dois sanduíches e voltei para os braços dele. Ignorando a timidez que me mandava sentar sozinha. Me aconcheguei e começamos a comer.
- Você já conhecia açaí, Lance?
- Não. Mas uma plantação dessas frutas apareceu ao norte, e como você e Elise reconheceram a fruta e nos disseram como é usada na Terra, colhemos e Karuto está testando receitas com ele.
- Tem um sabor frutado e terroso que é muito saboroso. É uma fruta forte.
Ele bebeu mais um gole e gastou um tempo saboreado.
- É muito bom mesmo, mas eu gostei mais dele cremoso e gelado, com outras frutas.
A imagem do Lance marombeiro, puxando ferro numa academia e comendo açaí, me fez rir.
- O que foi? - Ele perguntou curioso.
- Nada é que... Ok. Não me julgue. Mas você tem esse visual... - Cometi o erro de olhar o corpo dele, e a cena no banheiro veio com tudo à minha mente, me deixando vermelha na hora. Instintivamente me virei de costas, evitando que ele visse meu rosto.
- Mia?
- Ahhhh. Eu ia dizer que acabei imaginando você comendo açaí numa academia da Terra, se exercitando.
- Entendo. As pessoas se exercitam nessas academias, na Terra?
- Sim, e muitos dos que fazem isso gostam de comer açaí. Claude é apaixonado por açaí.
- Faz sentido. é uma fruta que realmente te dá energia. Faz sentido quem se exercita gostar de comê-la.
- Né? - Respondi, comendo um grande pedaço do meu sanduíche e tentando desesperadamente apagar as imagens devassas da minha mente.
Terminamos de comer o sanduíche, enquanto eu falava das academias da Terra para ele. Depois disso apenas eu comi, uma fatia de bolo de chocolate com morangos pistache e um pão doce. Ele tomou o que estava na garrafa térmica, que eu descobri ser café sem açúcar, eca. Lance me contou sobre o clima de Eldarya, as festas que eram comemoradas ali, descobri que ele não sabe a data exata do seu aniversário, mas que ele e Valkyon costumavam comemorar em 26 de fevereiro, bem distante do meu, que é em setembro. O sol se pôs e seguimos conversando.
- Você não tem insônia, tomando café tão tarde? - Perguntei curiosa, me sentando de frente para ele.
- Eu tenho insônia de qualquer maneira, Mia. - Ele me respondeu encarando os céus.
- Mas café piora a insônia, você sabia?
- Não. Você acha que eu deveria reduzir o café?
- Talvez tentar o descafeinado à tarde e à noite. Pelo que aprendi, é a cafeína do café que pode prejudicar o sono, quando consumida menos de 12h do horário de dormir.
- Descafeinado?
- É. Cafeína é um componente químico do café. O pessoal da Alquimia deve saber como tirar a cafeína.
- Eu falarei com a Ewie.
Ele acariciou meu rosto gentil. Meu coração se agitou e umedeci os lábios.
- Eu adoraria beijá-la, Mia. Eu posso? - Senti meu coração se acelerar e sorri, tímida.
- Eu adoraria, Lance.
Estranho, mas eu poderia jurar que os olhos dele estavam levemente mais escuros. Senti o rosto dele se aproximar, o coração a mil. Sua respiração estranhamente fria confundindo meus sentidos. O cheiro de pinheiro gelado mais forte. E quando seus lábios tocaram os meus, um arrepio percorreu meu corpo. Talvez pela aura fria que ele carregava, pela barba crescida, ou apenas pela minha ansiedade em beijá-lo. Impulsivamente o abracei, me descobrindo sedenta por mais. Os lábios dele eram macios, mas me conduziam com firmeza, explorando os meus. As mãos dele envolveram minha nuca, firmando minha cabeça, seus dedos acariciando delicadamente meu pescoço. Apertei meu corpo no dele com firmeza e sem pensar em nada realmente me sentei em seu colo, desejando me fundir a ele.
Aquele beijo seguiu outros, que eu sabia que deixaram meus lábios inchados, acho que devido à aspereza da barba crescida dele, mas tudo que passava por mim era o quanto eu queria mais e mais. Perdi completamente a noção do tempo e do espaço, me dedicando inteiramente às sensações que ele me despertava, intensas. Meu corpo queimando pelo toque dele, que nunca parecia me satisfazer completamente.
Estávamos deitados, na semi escuridão que aquela parte do jardim proporcionava, quando uma mão dele deslizou pelo meu pescoço, numa carícia gentil, que me queimava de desejo, quando uma imagem invadiu minha mente. A sensação da mão do meu padrasto apertando meu pescoço contra a parede, sorrindo, nojento, e sua outra mão passeando pelo meu corpo, o bafo de álcool me atingindo, causando uma repulsa imediata, que me fez empurrar o Lance com certa violência.
- Não! - Falei e me sentei, ofegante. Me localizando como Ewie e outros psicólogos já me ensinaram. Identificar visualmente cinco coisas, escutar quatro, tocar três, cheirar duas e lamber uma. Como ele ousava invadir meu momento de felicidade? - Uma lágrima quente rolou no meu rosto e me ajoelhei, me afastando do Lance, que me chamou.
- Mia? Está tudo bem? Se eu avancei rápido demais, me desculpe, eu não...
- Não é com você. Não é culpa sua, ok? - Me abracei, de costas para ele e de joelhos no chão, triste.
Em silêncio, ele se aproximou devagar, e me envolveu em seus braços, com calma e tranquilidade.
- Me desculpe por ter feito você se lembrar...
- Não, Lance, não ouse pedir desculpas! - Bati no braço dele, irritada. - Ele não merece que você peça desculpas por erros que não são seus. É apenas... - Baixei o tom de voz e encostei minha nuca no peito dele, respirando fundo algumas vezes. - Eu só queria não lembrar do passado. Só isso.
- Tudo bem. Eu estou aqui com você. O passado já foi. Não pode mais te fazer mal.
- Eu sei, eu sei. Desculpa te empurrar, só que...
Ele colocou o dedo nos meus lábios.
- Não precisa pedir desculpas. Você precisou de distância, eu entendo. Eu espero. Sem pressa, Mia. Você tem todo o tempo do mundo para se sentir confiante. Eu só quero estar ao seu lado, Pequena. E ajudar no que puder.
Ficamos abraçados um longo tempo. Até que ele começasse a encher o topo da minha cabeça com beijos silenciosos, dissipando a sensação ruim em mim com seu carinho. Meu olhar perdido no horizonte revelava minha mente tentando apagar o fel que me inundava.
- Está tarde, Minha Pequena. Vamos jantar?
- Vamos, sim.
Organizamos tudo juntos, com uma sincronia agradável. E voltamos caminhando devagar para o Salão de Jantar.
PDV Lance
Eu começava a desconfiar de algumas possibilidades sobre o passado de Mia. Novamente ela agiu com medo, assustada. Sem querer acariciei o pescoço dela, e acredito que isso foi o gatilho. Alguém a machucou, mais de uma vez, no pescoço. A ideia de que alguém ousou enforcar minha Pequena, me causava fúria, me dava ânsias de arrancar algumas cabeças, queimar os desgraçados com fogo invernal.
Segui de mãos dadas com Mia até o Salão de Jantar, orgulhoso. Ela não me rejeitou em nenhum momento, na realidade parecia gostar de estar comigo. Envolvendo meu braço com os seus enquanto caminhávamos. Recebemos muitos olhares curiosos e divertidos, e alguns enciumados. Sorri lembrando do sabor dos lábios dela, misturado com o sabor do suco e do bolo de chocolate. Simplesmente perfeito.
Ela se entregou completamente em meus braços, me obrigando a conter a vontade de abraçá-la e voltar a beijá-la nesse instante. Ela devia estar com fome, pois já havíamos avançado pela noite, e se me recordo bem, ela sempre dorme bem cedo.
Assim que entramos no Salão, percebi que a Mia ficou tensa, e me questionei se ela estava desconfortável em aparecer diante de tantas pessoas me abraçando. Eu não a julgaria, não com o meu passado. Mas ela não fez questão de soltar meu braço. Levei até o Karuto a cesta e entreguei, grato por ele não ter me punido neste lanche. Acho que ele percebeu que eu levaria alguém para comer comigo e foi gentil.
- Correu tudo bem? - O Sátiro perguntou sorrindo, olhando a Mia. Curiosamente ele não me olhou com desprezo.
- Estava tudo delicioso, Karuto! Se havia qualquer dúvida de que você é o melhor Chef do mundo, não existe mais!
O Sátiro ficou vermelho com o elogio, mas encheu o peito orgulhoso.
- Você vai gostar mais ainda do jantar que eu preparei, Menininha.
Mia não o respondeu, olhando séria para algo atrás de mim. Busquei a direção do olhar dela e vi alguns membros da Obsidiana reunidos. O que estava incomodando ela?
- Mia? - Chamei suavemente, e um par de olhos cinzentos e assustados me encararam.
- Uma sombra, Lance. Está no Mateus.
Meu corpo imediatamente entrou em modo de combate. Músculos tensos e posso sentir a adrenalina começar sua jornada em meu sistema, acelerando levemente meu coração. Não vejo o que ela vê, mas Mia sempre viu as sombras de maneira mais ostensiva que todos os demais. Encaro o Mateus e o vejo irritado, brincando de queda de braço com outro membro da Obsidiana, Islam. Um faeliano que ainda não descobrimos a raça. Essa é uma cena corriqueira. Encaro Huang Chu, que estava sentada em um canto do Salão, jantando enquanto lia algum livro e quando vou chamar a atenção dela, ela me encara e depois à Mia, depois observa o Salão. Se levanta e vem até nós. Não me acostumo com as curiosas habilidades dessa feng huang.
- Mia, Lance, tudo bem?
Mia me olha primeiro, depois confidencia à Huang Chu.
- Há uma sombra sobre o Mateus, e apenas nele.
- Será que você consegue prendê-la, Mia? Eu preparei uma cela feita com prata, luar, maana, e um pouco do pó das asas de vocês, e podemos tentar prender essa criatura.
- Acho que sim. - Escutei a dúvida na voz dela, e decidi incentivá-la.
- Vamos tentar. Você tem treinado muito e avançou muito no uso da sua magia.
Vi o queixo da minha Pequena Fada se erguer, e ela me encarou com mais segurança.
- Como faremos isso?
- Para evitar chamar a atenção, podemos... - Huang Chu começou a elaborar um plano, quando o Mateus partiu para cima do Islam, de quem havia perdido a queda de braço, brandindo uma adaga afiada e assustando a todos. Vi a sombra se mover ao redor do Mateus de forma fantasmagórica, sumindo e aparecendo no meu campo visual. - Esquece o plano, capture agora, eu vou buscar a cela. - Disse a Huang Chu, antes de sair correndo do Salão.
Sem hesitar, Mia ergueu um escudo ao redor do Islam, evitando que este fosse esfaqueado. Em seguida, ela criou tentáculos de luar que circularam ao redor de Mateus, que gritava impropérios contra Islam. Logo os tentáculos começaram a formar uma espécie de cela, que continha algo invisível para os meus olhos, exceto por um ou outro movimento escuro que aparecia para mim.
- O que é esse ser sombrio? - Escutei Leiftan perguntar, tenso, encarando a jaula de luar preparada por Mia.
.。.:*☽*59 - Ele vê?*☾*:.。.
PDV Leiftan.
Encarei o ser sombrio que hora aparecia e hora desaparecia, dentro da cela mágica criada por Mia, com curiosidade e apreensão. O que era esse ser? Erika já havia comentado comigo que Elise a atacou sob influência de uma sombra, e também soube do ataque ao Nevra e Irina. Me lembro da Mia falar sobre essas sombras, em uma de nossas muitas conversas. Mas nunca havia visto uma ao vivo. Embora agora, ao ver como ela se comporta, percebo que já havia notado em duas ocasiões uma sombra que se mexeu de maneira ilógica anteriormente.
A primeira vez foi antes do ataque à Érika, na direção da Cerejeira Centenária. Vi uma sombra se mover sem ninguém por perto. Na ocasião imaginei ser cansaço. A segunda vez foi no Salão das Portas, ontem, quando vi, pela visão periférica, uma sombra se mover na direção oposta do Mateus. Em ambas ocasiões, ao focar na sombra ela desapareceu e não voltei a vê-la, o que me gerou a falsa ideia de que eu havia visto coisas. Mas agora, perante uma delas iluminada pelo poder da Mia, fica claro que meu campo de visão percebeu esse ser. Analiso o ser e percebo que ela se parece com o que já encontrei de corpos em estado avançado de decomposição, sem o odor característico. Além de aparecer e desaparecer, de forma fantasmagórico, com uma boca aberta a gritar sem emitir nenhum ruído.
- É cansativo manter isso preso, Lance.
Mia reclamou e observei o rosto dela, contorcido em uma careta, as mãos curvadas em garras, como se ela estivesse controlando a jaula com as mãos. A curiosa marca no pescoço dela, brilhando prateado, como uma cicatriz refletindo o luar. Vê-la em sofrimento partiu meu coração. Assim como não suporto a ideia da Érica sofrer, tampouco gosto de ver Mia chateada. Ela é uma alma boa demais para ser deixada sozinha. Não que eu não tenha notado a intimidade com que ela entrou abraçada ao dragão de gelo, que duvido que a mereça.
- Talvez eu possa ajudar. - Falei baixo.
Projetei, ao redor da jaula dela, um escudo com meu próprio poder, regozijando no prazer de sentir o maana fluir pelo meu corpo, intoxicando meus sentidos. Mia não costuma usar as próprias habilidades, então deve ser cansativo para ela manter uma jaula por períodos mais longos. Uma das capacidades de um aengel é o de dar suporte à magia de outros seres. Usei, assim, minha magia para ancorar a dela.
- Como? - Ela exclamou surpresa e me buscou com o olhar. - Leif? - Ali está ela, me chamando de um apelido que apenas a Érica ousava usar.
- Aengels podem dar suporte a outras magias. - Expliquei com calma, buscando analisar o ser sombrio.
- Está muito mais leve, e não sinto mais a necessidade de aplicar tanta força mental para impedir as tentativas de fuga.
- Que bom, Mia. Fico feliz. - Respondi sincero.
Mateus foi contido pelos companheiros, ainda irado, e agora gritando coisas sem sentido, como se ele estivesse preso. Huang Chu entrou correndo no Salão com uma jaula prateada e, obviamente, mágica. Postou sobre uma mesa e abriu um frasco no rosto do Mateus, que se acalmou e quase desmaiou no chão. Em seguida abriu a jaula e nos gritou para colocar a sombra dentro. Mia me encarou com um olhar sério.
- Vamos?
- Claro. Você conduz, eu apenas dou o suporte.
- Certo.
Observei como minha magia era diferente da dela. Usualmente a magia dos aengels é invisível, mas é como se a magia dela iluminasse a minha, tornando a minha brilhante. Já a dela tem a cor da prata mais brilhante, quase como prata líquida, semitransparente e luminosa. Colocamos o ser dentro da jaula e, assim que Huang Chu fechou a jaula, vi o ser aparecer completamente diante dos meus olhos, revelando uma aparência completamente putrefada. Recebi o abraço apertado da pequena Mia, e a acolhi em meus braços, acariciando seus cabelos e me deparando com um dragão sério, me encarando com suspeita. Ciúme. Eu sei como é.
- Obrigada, Leif. Eu não teria aguentado tanto sem sua ajuda.
- Eu nunca a deixaria sozinha para lidar com isso, Mia. Nunca. - E falei sério isso.
Ela me abraçou firme mais uma vez, antes de deixar meus braços e envolver o dragão ciumento que finalmente se lembrou de respirar ao tê-la nos braços. Patético. Algo que eu compartilhava o suficiente para ignorar.
- Você está bem, Pequena? - Fiquei satisfeito ao ver a forma protetora com que Lance abraçou e falou com a Mia. Não sei o motivo de gostar tanto dessa menina, mas ela me enche de ternura. Se pudesse ter uma irmã, eu a escolheria para estar ao meu lado.
- Vamos para o Laboratório de Alquimia. - Huang Chu nos chamou.
Percebi que alguns membros da Reluzente surgiram, Nevra carregou a gaiola para Huang Chu, e Jamón pegou Mateus no colo. Enquanto Mateus foi deixado na enfermaria, o resto de nós seguiu para o Laboratório, onde contemplamos com desconforto, a sombra silenciosa, em seu corpo putrefado. Essa parecia ter pertencido a algum homem, já que era possível ver seu membro, flácido, feito de sombras. Ele gritava, mas de seu corpo de sombras, não saía nenhum som. Seus gestos, alguns conhecidos e outros não, direcionados a todos.
- Leiftan, obrigada por ajudar a Mia. - Huang Hua falou comigo e assenti. Eu nunca planejei voltar a usar meus poderes, mas Mia precisou de ajuda. - Agora, quanto a esse espírito. Huang Chu, quanto tempo a jaula poderá conter esse ser?
- Não tenho nenhuma ideia. Foi algo que fiz depois do último evento, baseado no que pude observar dos poderes de Elise, mas não tenho referências quanto à durabilidade.
- O que torna o ser visível para nós? - Lance questionou.
- Provavelmente a magia da Mia e da Elise, que possui basicamente componentes de luar, em uma mescla desconhecida de energia clara e escura. - Huang Chu respondeu, enquanto usava alguns instrumentos, junto com a Ewellein.
- Sabe o que eu acho estranho? - Escutei Mia falar, e todos se viraram para ela. - Na Terra, eu via sempre essas sombras, rondando as pessoas. Quando vim parar aqui, na Balsa, a sombra rondou quase todo mundo, exceto eu e o Claude. Aqui no QG a sombra estava fixa na Elise, e agora no Mateus. - Ela então encarou Huang Chu e Ewellein, e pude ver as engrenagens rodando a todo vapor na cabecinha dela. Ewellein, qual a função do maana no organismo dos faeries?
- Diversos. É uma energia vital para nós. Nutre nossas células, ativa nossos poderes, até compõe nossa aura.
- Aura? - Mia perguntou, com um tom desconfiado.
- Sim. - Huang Hua respondeu. - O maana é um componente básico da aura. Os estudiosos do tema apontam que ele compõe mais de 80% da aura dos faeries. Por que?
- Algum faerie aqui do QG vê auras? - Mia questionou, em tom desconfiado.
- Eu vejo, Mia. - Huang Hua respondeu gentil.
- Você vê minha aura e da Elise? - Mia questionou.
- A sua sim, mas na Elise nunca consegui visualizar.
Vi Mia ficar pálida, encarar o ser na jaula, e então sair se desculpando e resmungando coisas incompreensíveis, enquanto corria para longe. Todos encaramos a saída dela abismados. No meio daquele silêncio, me lembrei de questionar uma dúvida que tinha há um tempo e que, agora, fazia sentido levantar.
- Ewellein, vocês já investigaram a marca prateada de mordida que a Mia tem no pescoço e que reflete durante o luar?
No mesmo instante, todos os olhos daquele ambiente se voltaram para mim, incluindo a da sombra presa, que sorriu um sorriso disforme e grotesco na minha direção, causando algo que não costumo sentir em minhas entranhas: medo. Em seguida estourou as defesas da jaula e escapou da prisão, sem tirar os olhos de mim em nenhum segundo.
.。.:*☽*60 - Noite de Lamentações *☾*:.。.
PDV Mia.
Desperto imersa entre os meus, no lugar onde devo estar. Me sinto acolhida e bem vinda aqui, onde todas dormimos pela eternidade. A paz do coletivo é envolvente, como ondas do mar, cálidas, amorosas e suaves envolvendo todo meu ser, sem que eu consiga determinar se recebo as ondas ou as emito. Não sinto os limites do meu corpo ou da minha mente e ainda assim me espreguiço, sonolenta. Eu dormia... Há quanto tempo? Não sei dizer. Eu deveria despertar? Também não sei dizer. Minha ausência de forma é confortável e tento retomar meu sono.
Há algo errado.
Sinto garras afiadas arranhando, rasgando um lugar que não deveria ser rasgado. O que está errado? Antes que eu consiga entender o que está acontecendo sinto o oceano me abandonar, deixando um vazio infinito em seu lugar, dentro de mim. A escuridão cega meu ser. Sou imersa em confusão. Uma dor vinda de lugar nenhum e de todo o meu ser me preenche e ouço por todos os lugares um som agudo de algo se partindo. Não deveria se partir... Mas o quê? Não me lembro. Me contorço em mim mesma, desconfortável, tentando entender o que está acontecendo.
Tudo que sinto é a ausência deixada em mim, e sinto de forma tão dolorosa... Tento me mover mas não encontro meu corpo. Onde está meu corpo? Tento pedir ajuda mas não tenho voz. Me sinto abandonada, ansiando por voltar para o oceano coletivo amoroso que me envolvia. O desespero começa a me atormentar. Vejo por todo lugar que não têm forma a rachadura causada por minha ausência e anseio por retornar. Falho. Há escuridão no buraco. E a escuridão olha. E a escuridão sorri. E a escuridão se deleita.
Me esforço, me contorço, mas não consigo me mover nem gritar, nem falar, nada. Me sinto inútil e quero chorar, mas não sei como sem meus olhos. Onde estão meus olhos? Permaneço imersa em confusão, em busca de partes do meu corpo que não existem até que a Lua tem piedade de mim e usa o luar para me envolver e me levar embora. Vejo o oceano ficar distante e tento pedir à Lua que me devolva para o oceano mas não tenho voz e ela não me ouve. O vazio que o oceano deixou em mim cresce, tomando conta de tudo que sou. A escuridão, um ponto no meio do oceano de luz, me olha com ódio. Olhos e olhos e olhos se somam aos primeiros, de forma que me causa agonia. De onde vem tantos olhos? Tenho medo de tantos olhos e me encolho em mim mesma. A lua me aconchega e me leva até sua luz me cegar e me deixar inconsciente.
Um grito agudo e estridente me acorda com violência. Me sento na cama sentindo meu corpo agir como se estivesse no automático. Os sons parecem vir de milhares de pessoas sendo torturadas, sentindo dor imensurável. Gritos humanos e não humanos. Sem saber como eu sei que vêm de fora do QG. Olho rápida para o relógio. Passou da meia noite. É quase uma da manhã. Um arrepio percorre minha pele eriçando meus pelos enquanto a sensação de deja vú me acomete.
- Ela não pode entrar no QG ou a morte virá e eles nem saberão o que aconteceu. - As palavras saem dos meus lábios antes que meu cérebro pense nelas.
Minha retina se preenche com uma visão fotográfica, em preto e branco, de corpos faeries e humanos mortos, torturados e desmembrados em um acampamento distante no tempo e no espaço. Milhares deles espalhados, o sangue inocente e abundante manchando tudo que tocava, deixando a água do mar rosada após lamber a areia rubra e encharcada. Sacudo a cabeça espantando a memória que constrange meu coração. Olho ao redor tentando entender o que está acontecendo enquanto os gritos continuam.
No horizonte vejo uma escuridão diferente da noturna, e isso prende minha atenção. Minhas pálpebras não ousam piscar. Uma escuridão que se movimenta, lambendo o ar ao seu redor de forma nojenta, como uma fumaça negra e corrupta. Mesmo no horizonte noturno é possível diferenciá-la. Um arrepio passa pela minha coluna e meu corpo sai da cama com urgência. Um único pensamento me obceca: preciso impedi-la de entrar no QG. Saio do quarto e descubro várias pessoas no corredor. Não sou a única ouvindo os gritos, ainda bem. Percorro com rapidez meu caminho em direção à saída.
- Mia! - A voz de Lance grita meu nome e enquanto sua mão firme segura meu braço, bem quando estou na saída da Sala das Portas, logo no início da escadaria. - Onde você está indo?
Olho em direção à sombra gigantesca que segue se aproximando do QG e a certeza de que preciso encontrá-la se fortalece dentro de mim. Respondo sem olhar para ele, meus olhos com medo de abandonar a visão que oprimia meu coração e alma, enquanto solto meu braço, ansiosa, e desço as escadas.
- A sombra, Lance. Preciso impedi-la de entrar no QG. - Respondo descendo as escadas com pressa.
- Descalça? De camisola? - Ele volta a pegar meu braço, sem machucar mas paralisando novamente minha descida urgente. Encaro meus pés e minha camisola indiferente.
- Aquilo é mais importante. - Indico com o dedo a direção do Portão do QG e volto a descer as escadas. Ela está se aproximando rápido. Rápido demais. A certeza de que não chegarei a tempo piora a sensação de horror.
Sinto a mão do Lance tocar novamente meu pulso, paralisando meu caminhar pela terceira vez. Eu não tenho tempo para isso. Começo a mentalizar meu escudo para afastá-lo quando o vejo se agachar na minha frente e falar, com pressa na voz.
- Eu posso te levar mais rápido. Sobe.
Não espero um segundo convite. Subo em suas costas, abraçando seus ombros e me deixo levar como uma mochila humana. Ele desce as escadas em uma velocidade muito maior que a minha e corre como eu não conseguiria. Quando nos vi próximos ao portão e antes da sombra, pensei que ficaria tudo bem. No mesmo segundo o Grande Portão foi destruído. A estrutura de metal se rasgando como papel, atacada por nada além de sombra. Pedaços de metal contorcido e afiado voando em todas as direções, junto com partes dos muros. O corpo de alguns guardas foram lançados pelos ares, alguns visivelmente feridos, atingidos pelo metal. Do lado de fora, uma figura que nunca vi, mas reconheci. Dela saiam os pavorosos gritos agudos e estridentes, embora seus lábios estivesse regiamente fechados. Seu rosto estava relaxado, o queixo levantado e o olhar altivo e cheio de tédio para dentro o QG.
O que era aquilo? De sua cabeça sem cabelos ou pelos, várias estruturas queratinosas deformavam levemente a superfície de seu rosto, despontando no formato de pequenos chifres nas laterais superiores de sua cabeça. Dois pares de grandes chifres se destacavam, um virado para cima, saindo de onde deveriam ficar suas orelhas, e outro virado para baixo. O seu corpo emitia sombras como ondas de fumaça que não me permitia ver com total precisão seu corpo, mas conseguia distinguir seis pares de braços anormalmente gigantes, de tamanhos levemente diferentes, com mãos absurdamente grandes que mais pareciam garras. Seu corpo lembrava a forma feminina, mas não consigo ver seus pés em toda essa sombra, e eu acho que ela tem asas, como baratas. Como ela para de pé e ereta com essa estrutura corporal, é um mistério para mim.
- Droga, Lance, chegamos atrasados. Ela abriu os portões. - Encarei o escudo do QG, rasgado onde ela o ultrapassou, e murmurei. - O escudo do QG não conseguiu impedi-la.
- O que você vê, Mia? Para mim é apenas uma sombra gigantesca. Nada além.
- Merda.
Se o Lance não via, isso significava que restava a mim enfrentá-la. Onde estava Elise? O que era essa coisa? Como ela havia ultrapassado o escudo do QG? Me disseram que é uma magia extremamente potente e reforçada diariamente. E até onde eu sabia, as sombras nunca interagiram com objetos físicos ou seres vivos. Eles dependiam da influência que exerciam para fazer qualquer coisa. Podiam até dominar alguém, num caso de obsessão severa, mas mesmo nesses casos, dependiam da sintonia do obsediado. A última sombra não tinha conseguido se aproximar de Elise, pois ela estava se tratando com a Ewelein. Mas essa não parecia ser uma sombra. Não uma como as que vi anteriormente.
- Vejamos... - Quando a criatura abriu os lábios para falar, o som causou agonia em todo meu corpo e fez com que eu tapasse meus ouvidos com as mãos, tentando amenizar o som afiado emitido. Em nenhum segundo ela perdeu a calma, era como se seu rosto fosse incapaz de qualquer expressão além da arrogância. Um som que rasgava minha sensibilidade auditiva como faca quente na manteiga. - Onde estão as Filhas da Lua que deveriam estar mortas? - A criatura percorreu o ambiente com displicência e arrogância até parar o olhar à minha esquerda e sorrir. Busquei o que ela viu e me deparei, surpresa, com Elise, o que me encheu imediatamente de alívio. Diante dela estava o Nevra, em posição de defesa, mas ele não parecia ver muita coisa pelo seu olhar perdido, buscando na sombra o que deveria ser atacado e falhando miseravelmente como o Lance. - Dois pelo preço de um. Excelente.
Nem tive tempo de pensar, pois a criatura se moveu rapidamente em direção da Elise. Tudo que consegui fazer foi erguer um escudo de proteção diante dela e do Nevra, impedindo o ataque da criatura pavorosa. Furiosa, a criatura tentou usar as garras várias vezes para ferir ambos, o ruído de suas garras contra meu escudo soava como metal sendo arranhado dentro da minha mente. Assim como no treinamento, senti cada ataque em minha mente, e aquilo era milhares de vezes pior do que os ataques de Lance, me revelando a gentileza com que ele me treinava. Após minutos de ataque agradeci mentalmente ao Nevra pela ideia de treinar meu escudo. Eu nunca aguentaria tanto tempo antes. Nem mesmo o kraken foi tão difícil de conter.
Finalmente a criatura parou e encarou o escudo. Vi o Nevra atacá-la, sua espada e adaga cortando o ar com velocidade impressionante. No entanto ele não apenas não a feriu, como ela nem pareceu notar o ataque, ignorando-o completamente. Ela voltou a olhar em volta até se deparar comigo. Nossos olhos se cruzaram e eu tive certeza de que essa não era a primeira vez que nos víamos. A cena de corpos mutilado na praia voltaram a preencher meu cérebro e a certeza de que ela havia causado isso me encheu de coragem e disposição para enfrentar esse ser.
- Então aquela criatura patética estava falando a verdade... Uma de vocês sabe usar suas habilidades... - Ela me analisou de cima para baixo e de baixo para cima, como quem analisa um ser inferior. - Mas sabe o quanto?
Em menos de um segundo ela já estava desferindo golpe sobre golpe, tentando me atingir, mal me dando tempo de me proteger. Receber golpes em um escudo mental é quase fisicamente doloroso, enfraquece o escudo a cada golpe. Percebi que estava começando a fraquejar e, em breve, não conteria os ataques daquele ser. Eu precisaria lutar. Respirei fundo lembrando dos treinos com Valkyon, Lance e até mesmo Nevra. Eu podia lutar com aquele ser, eu precisava ser capaz, ou a cena na praia se repetiria.
Percebi pelo meu campo de visão que, enquanto eu vinha me defendendo do ser, os Guardas que não haviam se ferido já haviam retirado os poucos seres noturnos que estavam ao redor, e os feridos também não estavam mais ali. Seria o suficiente? A imagem em preto e branco, de corpos feridos, voltou a me angustiar. Cenas de pessoas que um dia conheci, em algum lugar do passado distante.
- Meu escudo vai ceder a qualquer momento! - Gritei, para que eles soubessem e se preparassem.
Assim que senti que ele ia ceder, mentalizei minhas asas e uma espada de luar, a mesma que usei contra o Nevra. A certeza de que aqueles seres não podiam ser feridos por armas comuns me atingiu em cheio. Cedi o escudo preparada para o ataque, mas ela mudou a direção subitamente, atacando o Lance, que reconheci estar na forma de dragão. Um belíssimo e gigantesco dragão azulado, com várias escamas prateadas e brancas, como se ele fosse uma escultura de gelo primorosa.
Não tive tempo de apreciar a beleza e majestade de estar diante de um ser lendário. A ideia dele ser fatiado por aquelas garras fez com que meu corpo agisse de maneira insensata. Voei a toda velocidade na direção do dragão de gelo para protegê-lo, mas sem um plano, não fiz nada melhor do que me jogar na sua frente. Senti a pele da minha barriga e coxas serem rasgadas pelas garras daquela criatura.
Esperei novos ataques, mas ao invés disso, escutei gritos infames vindos da criatura, que estava presa dentro de uma gaiola de luar criada pela Elise.
- Eu não consigo mantê-la presa por muito tempo, Mia! - Elise gritou à distância para mim.
Lance estava posta à minha frente, sua pata direita traseira perigosamente perto do meu corpo e seu rabo estranhamente circulou ao meu redor, como se ele quisesse criar um escudo de proteção ao meu redor. Nevra estava do outro lado, provavelmente vendo a sombra mas incapaz de atacá-la. Seu rosto revelava uma frustração como nunca vi. Encarei a criatura na minha frente. Só havia um caminho. Ainda emitindo os pavorosos gritos, a criatura me encarou com o mesmo rosto arrogante, como se fosse extremamente superior a mim.
- Uma pitada de sorte. É o que vocês tiveram. Não contem com isso de agora em diante. Nós vamos matar vocês duas, e seus protetores. E então vamos expandir nossos domínios para esse pequeno universo de vocês. Começando por esses dois mundinhos inferiores que vocês chamam de Eldarya e Terra.
Ciente de que em breve eu iria desmaiar devido à ferida, materializei tudo que consegui de raios de luar como lâminas e comecei a destroçar aquele corpo sombrio. Os gritos se tornaram piores, me causando dor de cabeça e um incômodo auditivo que me deram a impressão de estourar meus tímpanos. Logo seu corpo se desfez como um tecido sombrio destroçado e as sombras que se acumulavam ao seu redor, deixaram de existir. Um zumbido irritante permaneceu comigo, teimoso em me abandonar.
Relaxei meu corpo e me dei conta que estava nos braços do Lance, que corria para o QG. Cada passo doía como um inferno, mas não fiquei inconsciente como esperava. Aquelas garras deveriam ter rasgado meu abdômen e coxas. Evitando olhar, deitei a cabeça nos ombros do Lance e me deixei levar, fechando os olhos. Chegamos à enfermaria e ele me colocou delicadamente na primeira maca. As vozes soaram ao meu redor mas o zumbido me atrapalhava. Segurei suas mãos ainda com medo de olhar minha ferida. Devia ser horrível.
- Fica aqui comigo? - Pedi ao Lance.
Um silêncio se formou no ambiente. Os olhos do Lance estavam grudados na parte baixa do meu corpo. Pálido. Ele estava pálido. Estava tão feio assim? Eu não sentia tanta dor assim. Estava ardendo, mas aquelas garras... É, o estrago deveria ter sido horrível. Vi o Lance desviar o olhar e o movimento recomeçar na Enfermaria.
- O ferimento foi leve, Mia. Vou apenas fazer um curativo. - Consegui distinguir a voz da Ewelein no meio do zumbido.
- Leve? - Repeti como um autômato. As palavras dela demorando a encontrar eco na minha alma assombrada com a ideia de minhas coxas fatiadas até os ossos e de meus órgão escapando de meu ventre aberto.
- Nem deve ficar cicatriz. - Eu não sabia se estava escutando bem, mas aquilo me parecia incoerente com a ferida extensa que eu sentia ter, com a violência do ataque que sofri.
Levei um tempo para a informação entrar no meu cérebro. Como assim? Tentei me mexer mas ela estava limpando, e aquilo ardia. Fiz uma careta e levantei a cabeça para olhar e vi minha camisola rasgada do abdômen para baixo. Retalhos da parte de baixo da minha camisola e da minha calcinha não fazendo nenhum esforço para me cobrir dignamente. Mas não foi isso que chamou minha atenção. Minha barriga tinha um ferimento longo e largo, que atravessava meu ventre desde a cintura, assim como dois rasgos no alto da minha coxa direita que seguia se afunilando na direção do meu joelho esquerdo. Mas abaixo da pele arrancada, onde deveriam estar órgãos, músculos, veias e nervos dilacerados, estavam minúsculas escamas, algumas pretas e vermelhas, a maioria prateadas, intactas, refletindo o vermelho do meu sangue.
- Mas o quê? - Estendi a mão, mas a Ewelein não me deixou tocar. Um leve desespero me preencheu e voltei a tentar tocar as escamas. - O quê? - Ewelein seguia me impedindo de tocar as escamas, então sem nem pensar usei o escudo para afastar todos e toquei finalmente as escamas que protegiam meu corpo. Eram quentes e não doeram nada quando toquei, embora eu tivesse sensibilidade nelas, como se fossem minha própria pele. Percebi que a dor vinha das bordas de pele ferida, não das escamas.
"E escamas de dragão são o melhor escudo que existe em qualquer dimensão que você vá."
As palavras de Valkyon ressoaram na minha mente junto com a imagem do meu corpo coberto de escamas vermelhas, na única vez que o vi como dragão.
"Você vai ficar boa logo. Mas tudo será diferente para você a partir de agora. Nada poderá continuar como era. O que vai se tornar? Só o tempo dirá."
As palavras daquela que me disseram se chamar Ofélia vieram no meu pensamento. Encaro as escamas prateadas na minha pele. O que raios está acontecendo comigo?
Última modificação feita por Rayvena (30-11-2023, às 11h22)
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Última modificação feita por Rayvena (30-11-2023, às 11h23)
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.。.:*☽*RESERVADO *☾*:.。.
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Tsuki-Hime escreveu:
toc, toc, toc.
Pode entrar aqui já?
Essa historia... Está bem misteriosa.
Estado de coma? Plano astral? O que é que está acontecendo?
"Nada será como antes" e tem como as coisas voltarem ao que eram depois de uma experiência estranha dessas?
E... do jeito que minha mente é meio agitada, acho que iria deixar todo mundo com dor de cabeça com os meus pensamentos se eles fossem um livro aberto desse jeito aí.
"Até que todos os seus corpos estejam devidamente estabilizados"?? Corpos?? No plural? Como assim minha gente!?
Aguardando por mais, com a curiosidade muito bem acordada. Já, já coloco o segundo capítulo!
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Grishɑ escreveu:
⺌
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ᴘ ᴀ ᴘ ᴇ ʀ · ꜰ ᴀ ᴄ ᴇ ꜱ × ᴏ ɴ · ᴘ ᴀ ʀ ᴀ ᴅ ᴇ
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Antes de mais nada, seja bem-vinde ao fórum de Eldarya.
É sempre bom ver rostinhos novos por aqui, principalmente
quando trazem um pedacinho da vossa criatividade pro nosso
fórum. (≧◡≦)
Eu amei a maneira como dividiu os capítulos conforme as
fases da lua, o que casou super bem com o título da
história. Ah! Para não mencionar a descrição que vem logo
após o Lua Minguante. Além de ser super instigante, também
foi condizente ao conteúdo desse primeiro capítulo.
Você conseguiu deixar a leitura fluída e bem imersiva. A
narrativa vai acontecendo e despertando cada vez mais
curiosidade nos curtos períodos em que a protagonista
desperta, e pouco a pouco absorve o que acontece aos seus
arredores. E quando ela descobre seu estado... boooom!!
Meu Deus, eu fiquei em choque. Real não esperava por esse
plot.
E o Valkyon!! Ai, como um amo ele... é um neném. (ღ˘⌣˘ღ)
Você o resumiu muitíssimo bem com essas três palavrinhas:
calmo, sereno e firme.
AAAAA!! E temos aqui uma protagonista brasileira. Por mais
que o final do primeiro capítulo tenha me deixado
tristonha já que ela aparentemente não tem memória do que
viveu em Memória (ba dum ts), mas se não estou
mucho doida é a primeira fanfic de Eldarya que leio
com uma protagonista br. (,: Amei a representatividade.
A profissão dela também é muito interessante. Ourives, que
chique. Onde faço minha encomenda? KJWKA
Sobre o final: S O C O R R O
Quando postar o capítulo 3, não deixa de publicar um aviso
aqui no tópico. Vou ficar de olho, porque eu
preciso dessa continuação!!
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Tsuki-Hime escreveu:
Oh, minha nossa!
Se não fosse pela Grisha, sabe-se lá quando eu veria que há capitulo novo!
Mas seguindo...
O poder de sentir as emoções dos outros... Não sei se a ideia me agrada, não.
Quero dizer, é um ótimo poder para saber como lidar com as outras pessoas (assim como a protagonista deixou bem claro), mas ter dificuldades para entender o que é seu e o que é dos outros deve ser consideravelmente torturante.
Ouvires... Uma das profissões mais antigas, complexas e belas (dependendo do gosto) que eu conheço.
Amo assistir vídeos em que moedas e outros metais são transformados em obras de arte.
Numa tentativa de relaxamento... Acontece um terremoto?! E que quase faz nossa garota se afogar no próprio banho?!?
Que horror!
Depois de conseguir fugir da agua é hora de conferir o estado de tudo, que graças à Deus está tudo bem.
Bora conferir a cidade e...
CADÊ A CIDADE????
Aguardando o próximo <3
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Última modificação feita por Tsuki-Hime (11-08-2022, às 21h09)
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Tsuki-Hime escreveu:
Eba!
Estamos em estado de choque.
Uma experiência tecnológica surpresa?
Alucinação devido a uma batida na cabeça?
Outra possibilidade surrealista?
E nenhum sinal de nada para pedir socorro?
O que raios está acontecendo?
Bem, eu não devia, mas quase me engasguei de rir da Elise quando ela foi conferir o corredor pela primeira vez.
Corre para se aquecer e decidir o que fazer!
Com o calor recuperado, a mente tranquilizada, e as primeiras decisões tomadas, vamos meio que esvaziar a própria mala e encarar a situação.
Uma coisa que eu sempre aprendi logo com a minha mãe: nunca ignore uma intuição!
E Elise fez bem ao ouvi-la quando avistou o elevador. Seja qual for a situação de emergência, JAMAIS use o elevador. Por mais longas que sejam, usem as escadas.
(e aproveitem que é descida, pois para descer todo santo ajuda)
A ideia dos lanches e da agua foi sensata. E acho que eu ficaria com o coração na boca toda vez que ouvisse um grito como aconteceu com a nossa garota...
Finalmente alcançado o térreo, sem qualquer reserva sobrando na bolsa, é hora de analisar a situação junto de todos os outros hóspedes/funcionários.
Com alguns entrando em pânico e outros esfriando a cabeça (mas sem congelar o corpo!)
Diante de tão inesperada situação, os mais experientes tomam a liderança do grupo. Se organizam para manter a segurança e decidem tirar todo mundo do hotel congelante no dia seguinte.
Após tudo estar bem organizado (apesar de algumas insatisfações e trapaças), hora de enfrentar a difícil jornada.
Mas... Será que essa foi mesmo uma boa ideia?
Estou tremendo (80% de frio) de ansiedade pelo próximo capitulo. <3
P.S.=Muito obrigada fadinha da tradução. Inglês não é o meu forte
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Tsuki-Hime escreveu:
Oba! Mais um capitulo!!
Uuuuhhhh... Mais um grupo que está a Deus dará...
E justo quando nossa amiga está dando uma regarregada nas baterias?
Oh dureeeeza... :rolleyes:
Ainda bem que a garota tem alguém com quem contar!
E com algumas informações que com toda a certeza a podem salvar :D
Isto é, se ela se recordar direitinho de tudo o que aprendeu durante o coma. Que por sinal... O que foi que ela aprendeu?
Eles com toda a certeza tiveram mais sorte que a gente quando estávamos indo para Genkaku em missão.
E agora? O que o povinho dessa balsa de agua doce vai fazer?
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Última modificação feita por Rayvena (04-09-2022, às 08h54)
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Tsuki-Hime escreveu:
Eita!
Deixei um capitulo passar!
Bem , vamos lá.
Ai... Mia está mareada ou só sobrecarregada de emoções alheias? Ou os dois?
Que situação horrível...
Ter alguém com quem contar é sempre um alívio. Uma luz dentro de um túnel em completo breu.
Bora tomar um pouco de ar fresco livre de mentes conturbadas!
Medo de multidões? É, essa é uma boa desculpa para que um telepata possa evita-las.
Hahahahaha! Que discussão divertida a que ela teve com o Valkyon!
Mas ela precisa reconhecer, qualquer habilidade pode ser uma benção ou uma maldição.
Depende do dono o que essa habilidade se tornará.
Mas bem que ela podia ter feito algum esforço para tentar se privar das emoções dos outros antes, não?
Bom, aparentemente a dica que ela recebeu durante o coma foi útil.
Mas após um merecido descanso, que tal encher a barriga?
Opa! Um grupo de melomanthas passou pela barca?!
Que visita mais agradável!... (*°○°*)♡
E minha querida, a essa altura eu já me convenceria de que a Terra ficou para trás a muito tempo. ( T_T)\(^-^ )
Bom, a desculpa da falsa fobia realmente é uma ajuda para a Mia, Claude conseguiu dar um jeito de deixar as coisas mais confortáveis para ela na balsa.
Mas isso não ameniza em nada o verdadeiro problema...
Com o tempo seguindo, todos aprenderam a conviver e a dividir (por enquanto).
E mais, e mais sinais de que eles deixaram a Terra vai aparecendo...
De quanto tempo a Mia precisa para se dar conta de que ela está no mesmo mundo de seu coma e que tudo o que ela "sonhou" não foi sonho coisa nenhuma?
Hãm... Porque eu tenho a sensação de que essas "sombras" fazem uma diferença e tanto??...
P.S.= também tenho o mal hábito de deixar erros para trás (T_T). E a postagem de meus capítulos acabou sendo mais rápida que a escrita dos seguintes (tinha uns 50 prontos na época, e agora fico correndo para terminar os novos quando posso). E vire e mexe acabo encontrando erros que passaram despercebidos pelos meus olhos (mesmo já tendo relido a história não sei quantas vezes (ToT)). Não deixe de me avisar também caso encontre algo grave, ok?
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Última modificação feita por Rayvena (09-09-2022, às 18h16)
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