O TRABALHO DE SÍSIFO - Ykhar
Passada mais uma noite em claro estudando a história de Eldarya, Clitia percebeu-se naquele que seria o dia 1º de Maio. ''Oh, certo, aqui eles não saberiam o que isso realmente significa'', pensou a ninfa. Afinal, a criação destas terras precede, em muito, a realidade que as Revoluções Industriais trouxeram aos homens. ''Por estes distanciamentos da exploração e outras angústias, agraciados são...'', concluiu a breve epifania. Bem, se estava desviando assim de seu foco, já era hora de parar o estudo. Guardou todos os manuscritos que Ykhar emprestara e foi em direção à biblioteca.
- Que novidade, ela não está aqui... - ironicamente sussurrou para si mesma.
- Que rude, falar pelas costas dos outros! - de forma estridente aparece a brownie, sorrateiramente encostando um pergaminho na cabeça de Clitia. - Ainda que seja EXATAMENTE isso o que eu estou fazendo. - disse agora em um tom mais moderado, visto que ainda era manhã.
As usuais conversas paralelas tomam forma, e a atmosfera humorística logo envolve as duas, que se dão bem desde que Ykhar procurava auxílio nos estudos de história - afinal, gregos são os mestres em história. Contudo, essa leveza matutina logo é abruptamente cortada pela ansiosa faery.
- Certo, preciso terminar essas traduções URGENTEMENTE! Não sei o que será de mim caso não termine os outros 2 volumes sobre os mascotes endêmicos da Costa de Jade... Maldito monstro destruidor de livros... - diminuiu o tom da reclamação, ao lembrar do errôneo julgamento que fez à Clitia durante o dito episódio.
- Desculpe, sei que não é culpa sua, mas eu estou ficando louca com tanta coisa, e aparentemente nem o Kero aguenta mais as minhas reclamações.
- Ele nunca aguentou - disse a ninfa, tirando um esbaforido riso da amiga desesperada. - Sabe, no mundo dos homens, o dia hoje seria um feriado para os trabalhadores descansarem e relembrarem seus direitos, acima de tudo, como seres vivos.
- Tudo bem que você normalmente é muito eficiente em me acalmar, mas citar história não é bem a cura em um momento desses... - a brownie já voltava a apresentar as preocupações em sua feição, quando Clitia prosseguiu:
- É apenas um contexto para lhe convencer a relaxar e deixar isso comigo. Os dialetos da Costa de Jade você me ensinou, certo? E, como sua assistente aqui na biblioteca há tempos, já conheço os procedimentos.
- Mas você ainda é apenas uma assistente! Clitia, não duvido da sua capacidade, mas todo esse acervo é minha responsabilidade. - novamente estridente, Ykhar revelava cada vez mais seu nervosismo. A jovem estava uma pilha de nervos, em seguida deixando cair alguns outros pergaminhos que levava consigo.
- Veja bem, Ykhar, não duvido da sua eficiência como membra da Guarda Reluzente, assim como ninguém deste QG o faz. - pegando os papeis, Clitia continuou a tentativa de apaziguar a teimosia da superior - mas esse evento foi especialmente uma tragédia, algo fora de nosso controle, e o que você necessita é de apoio. Hoje eu estou livre de compromissos. Mal começou o dia e inclusive pressinto quão monótonas serão as tarefas de todos hoje. É injusto com você mesma investir tanto esforço enquanto se deteriora. E, não importa quão eficaz você seja, chegará um ponto em que nada mais será eficiente, apenas frustrante - um verdadeiro trabalho de Sísifo. Descansar é fundamental ao trabalho! É sobre isso que se trata o dia 1º de Maio.
Após um momento de silêncio, o qual a brownie prostrou-se séria, começou a balbuciar. - Ora... - as orelhas de Ykhar inclinaram-se levemente. "Lá vem choro..." pensou a ninfa, que permanecia resoluta em sua argumentação final.
- MUITO OBRIGADA!!! Acho que esse foi o esporro mais gratificante da minha vida nesse lugar. - Aos soluços, a faery ia dissolvendo seu pânico. - Ou em qualquer outro emprego que tive. Mas, se precisar de ajuda, não hesite em me procurar! Eu vou ficar no...
O silêncio pôs Clitia em alerta. Talvez, poderia desistir do descanso. Porém, Ykhar continuou.
- Na verdade, não sei ainda. Apenas agradeço.
Com uma fungada propositalmente cômica da moça agitada, a ninfa ria da amiga. "Que personalidade... Mesmo convivendo há meses com ela, nunca sei quão efetiva conseguirei ser lidando com seus oitos ou oitentas", pensou, convertendo essa introspecção em um novo riso.
- Eu estava SURTANDO pelo tanto de trabalho e agora você está rindo por ter mais trabalho. Clitia, você é louca!
- Talvez. É cedo demais pra começar a sentir o peso desses mascotes todos.
- Que comoção é essa logo de manhã? - Miiko, ainda que sonolenta, apresenta a mesma postura de líder diante das duas ruivas.
Imediatamente, a assistente adota uma feição séria. - Hoje, Ykhar me permitiu um treinamento excepcional de organização de alguns volumes da sistemática de Eel. Como minha superior preparou-me extraordinariamente em relação à biologia e aos dialetos destas terras, estarei organizando este serviço em detrimento da perca parcial de nossa biblioteca. Creio que em breve terminarei, enquanto minha superior continua a gerenciar a reposição. - Clitia terminou a defesa incisivamente.
Espantada, a kitsune parabeniza a aparente eficiência da brownie:
- Uau! Nunca duvidei de ti, Ykhar, longe disso. Porém, é reconhecível quão bem você está contornando esta crise... Meus sinceros parabéns! Ainda assim, acho que você deveria descansar um pouco depois de tanto trabalho, certo? Aproveite que o Festival de Mascotes acabou há algumas semanas, os purrekos estão bem generosos devido o sucesso. Coisas à preço de Broto de Bambu, além dos jardins estarem belíssimos com a decoração restante. Há até mesmo alguns Liclions por lá, nunca vi tão bem cuidados. Agora, moças, tenho os meus afazeres. Com licença.
- P-pode deixar, chefe. - Vermelha, Ykhar enfim transbordava calma, ainda que constrangida pela exposição positiva.
Após Miiko adentrar o Corredor das Guardas, Clitia logo devolve o diálogo amigável:
- Viu só, não vá desobedecer as ordens de nossa grandessíssima líder!
- Que mulher engenhosa, essa Clitia! Vejo que agora me venceu. - Finalmente, as risadas retornam a ser desprovidas de preocupação. Entretanto, urgia uma nova responsabilidade. - Agora as instruções serão sérias. Muito bem lembrado por parte da Miiko em mencionar os purrekos. Ainda que tenhamos todas as informações teóricas necessárias, nos falta um catálogo anatômico. E isso, apenas o Purreru possui. Ainda, para replicar essas figuras, o Purroy possui uma ferramenta que faz o serviço. Como é relativamente cara, não usamos ela para a parte da escrita. Mas ele nos concede pra esse tipo de coisa, por não termos outra alternativa. Você não precisa necessariamente fazer isso por primeiro.
- Certo. Organizo os mascotes em ordem alfabética? - "Ao menos isso facilitaria", pensava a ajudante. Por meio de características comuns exigiria um estudo muito mais aprofundado, e Clitia não queria aborrecer Ykhar.
- Isso, é o suficiente.
"Por Zeus, que alívio". - Entendido. Bem, então vejo que é a hora de começar. Caso veja Karenn por aí, explique que hoje estarei ocupada. - Ainda que gostasse da vampira, interrupções não seriam agradáveis. Queria deixar o serviço menor possível para sua amiga. E, para isso, teria que ralar duro.
- Com certeza! Ainda estou em dúvida no que faço, mas aproveitarei esta preciosidade de dia. Fico até mesmo um tanto nervosa ao pensar na variedade de possibilidades do que posso fazer...
- Ykhar, RELAXE!
- Certo, certo. Até logo, então! Não hesite em tirar dúvidas, viu???
- Vi e ouvi. Sem querer ser inconveniente, mas o tempo é precioso. Principalmente para você.
Finalmente livre da brownie, Clitia sentiu borboletas na barriga com a responsabilidade que assumira. Ou talvez, fosse fome. De qualquer maneira, comeu uma pequena refeição que requisitou a Karuto e foi diretamente à loja de mascotes. Lá, Purreru alimentava um lustroso O'oluray enquanto a jovem entrava no estabelecimento.
- C-Clitia! Esse bebê é lindo, n-não? Eu p-particularmente amo O'olurays. S-são meus orgulhos!
- Bom dia, Purreru! Compartilho de sua opinião, inclusive tenho um. Porém, vim hoje em nome da Guarda. Gostaria de algum livro seu que tivesse a anatomia de alguns mascotes. Mais especificamente, aqueles da Costa de Jade.
- Oh, t-tenho alguns exemplares d-desses. Em l-livros separados, mas t-tenho. T-também são meio v-velhos...
- Perfeito! - Na verdade, a ninfa já esperava que não fosse um volume único e conservado. - Me emprestaria, brevemente?
- S-sem problemas, minha c-cara. Esse é o t-tipo de c-coisa que interessa apenas a v-vocês, mesmo.
- Obrigada. Logo devolvo!
Dirigiu-se novamente à biblioteca, onde finalmente começava o seu trabalho. Ao menos até ser surpreendida pela presença da jovem brownie.
- Ykhar! Descansar! Relaxar! Apenas isso!
- Calma, Clitia! Eu já entendi o recado. Só que, como fico na biblioteca por muito mais tempo do que no resto dos outros lugares do QG, já me sinto confortável aqui. Por exemplo, agora tenho o privilégio de sentar nessa poltrona sem a pressão das crescentes responsabilidades me esmagando! E que poltrona confortável, viu?
Inacreditável. Clitia nunca parará de se surpreender com a amiga. Se não fosse inacreditável, no mínimo seria peculiar.
- De certa maneira, tudo isso é incontestável, não é? Pode descansar aqui, mas se eu, de relance, ver você arrumando algo, já monopolizo a biblioteca inteira e te expulso. Entendidas?
- Que cruel...
- Sua compreensão é uma dádiva. Agora, que eu tenha um bom trabalho!
Pôs-se a trabalhar. Como tem gosto pelo saber e uma inata facilidade na linguística, a tradução não foi tão complicada. Ainda assim, por ter madrugado a noite anterior, o peso de suas pálpebras a castigava. Ao seu lado, Ykhar já dormia - e inclusive roncava - na infame poltrona. O que poderia ser uma tentação, um sinal divino para que Clitia dormisse, foi um incentivo para continuar. Era bom ver a amiga despreocupada, visto o tanto que ela fazia pela Guarda. Logo mais, estava terminada sua parte no primeiro volume, e organizadas as imagens. O céu já assumia sua configuração vespertina quando Clitia foi a Purroy finalizar de vez o primeiro fruto de seu trabalho.
- Olha só, quem é a moça que adentra? - Devido não pertencer à Guarda Absinto, Clitia nunca necessitou ir à loja de alquimia.
- Boa tarde Purroy, meu nome é Clitia, e sou uma assistente da biblioteca. Vim transcrever estas imagens nestes manuscritos.
- Ah, sim! A outra garota ruiva, mas com orelhas, vem direto requisitar esse serviço. Que tragédia, todos aqueles livros no limbo! É gratificante ver que ela está descansando.
- Sim, concordo. - Clitia esboçou um sorriso com a memória da moça dormindo desajeitadamente na biblioteca.
- Enfim, dado o número de páginas, não será um processo rápido, mas também não será tão demorado assim. A senhorita gostaria de esperar?
- Perfeitamente. Muito obrigada pelos serviços.
Aguardar ociosamente fermentava ainda mais o crescente cansaço da ninfa. Estava quase cochilando quando o purreko exclamou:
- Pronto, senhorita. Aqui está seu livro.
A satisfação deu lugar à sonolência da jovem, que novamente agradeceu e retirou-se em direção à biblioteca, enquanto o crepúsculo tomava forma. "Agora, a outra metade". Ao voltar, percebeu que Ykhar não estava mais lá e se aliviou com o fato que a amiga estava realmente descansando.
As palavras progressivamente passaram a embaralhar-se, por mais laboriosa que Clitia fosse. Foi-se um quarto, um terço, a metade do segundo capítulo... Quando Morfeu repousou-a em seu merecido sono.
Quando finalmente acordou, foi em um solavanco, com o barulho do atrito do papel ao seu lado.
- Calma, flor! Já é um novo dia de trabalho. Você fez muito bem. Ainda que seja inexperiente demais para aguentar o tranco. - A brownie, que havia retornado, finalizava a obra com uma expressão de deboche no rosto. Deboche, mas muito mais aliviada. Era visível o contentamento não só de Ykhar, mas de ambas.
Descansada e novamente entregue às necessidades da carne que o foco lhe havia ocultado, a ninfa aderiu ao tom de deboche:
- Será que consigo convencer o Karuto a preparar alguma comida especial? Que fome!
- Com certeza, afinal, ele te adora. Antes, apenas preciso transcrever as imagens com o Purroy, devolver os exemplares para o Purreru...
- Ykhar...